“Desembarcar em Tabatinga foi aquele choque de realidade que passa como um trator sobre quaisquer questões existenciais que ficam latejando na cabeça. A realidade da internet e da comunicação muito precárias, da falta de gasolina nos postos, dos pagamentos só em dinheiro vivo, dinheiro este que às vezes falta no banco. O que a tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia tem de estratégica, tem também de precária”.
Ciro Barros
Alguns dias depois que o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips desapareceram no Vale do Javari, no Amazonas, a Agência Pública enviou duas equipes de reportagem para a região para investigar as circunstâncias do crime e informar o público sobre as ações das autoridades e instituições no caso.
Além de acompanhar as investigações, refizemos os passos da última viagem de Bruno e Dom – que não teve nada de “aventura”, como desdenhou o presidente Jair Bolsonaro –, contamos a história do assassinato sem solução de Maxciel Pereira dos Santos, outro ex-servidor da Funai morto a tiros em Tabatinga (AM) em 2019, e narramos como os moradores de Atalaia do Norte (AM) que conviviam com Bruno Pereira sentiram a perda do indigenista. Todos as reportagens estão publicadas no especial “Vale do Javari — terra de conflitos e crime organizado”.
Na newsletter de hoje, o repórter Ciro Barros, que há anos cobre conflitos na Amazônia, conta como foi investigar em tempo real e em condições precárias um crime terrível como esse, e reflete sobre os desafios pessoais que enfrentou: “Aquela sensação de que poderia ter sido comigo aparecia o tempo todo.”
A equipe da Agência Pública está na região para investigar e informar o público sobre as ações das autoridades e instituições no caso do assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira
Via Agência Pública
Manhã de terça-feira, 7 de junho. Cheguei para trabalhar na redação do jeito mais banal possível. Guardei a marmita na geladeira, meu plano do dia era desdobrar uma apuração aqui em São Paulo que eu acabara de concluir. Encontrei a Marina Amaral, diretora de redação da Agência Pública, inquieta. O assunto brotou do nada, não sei se da minha boca ou da dela. “Você está acompanhando o desaparecimento do Bruno Pereira e do Dom Phillips?”, lembro que ela perguntou. Quarenta e oito horas depois, eu estava desembarcando em Tabatinga (AM) para uma das coberturas jornalísticas mais marcantes da minha carreira.
Aquelas 48 horas foram intensas: contatos com fontes na região do Vale do Javari para fazer render a viagem, apresentações e reuniões de preparação com os colegas que estariam na pauta comigo, aviso a familiares e amigos, compromissos desmarcados e adiados. Começaram as mensagens no celular: “Caco Barcellos tá indo pra lá”; “Fabiano Maisonnave tá indo pra lá”; “Vinícius Sassine tá indo pra lá”. Eram muitas as referências e os nomes de peso que estariam nessa comigo. Mas eu também tive o privilégio de ir bem acompanhado.
Eu já posso contar nas mesas de bar que eu fiz essa cobertura com Rubens Valente. Ele já era para mim uma referência absoluta. Devorei seus livros, li muitas de suas coberturas e reportagens icônicas. Não é exagero algum dizer que o Rubens é um dos maiores repórteres do Brasil. Ele não liga muito para elogios e talvez até se incomode com essas linhas. Por isso, serei econômico: foi uma aula, Rubens. Também foi um prazer trabalhar com fotojornalistas afiados como Avener Prado e José Medeiros, dois caras incansáveis que têm aquela capacidade única dos bons fotógrafos de achar histórias, propor e discutir as decisões editoriais e não perder nenhuma imagem relevante.
No voo para Manaus, minha mente ansiosa fervilhava: “Minha pauta vai virar?”, “Vamos concorrer à altura dos profissionais que estão indo pra lá?”. As questões surgiam enquanto eu mastigava a dureza da história em si. Um jornalista e um indigenista até então desaparecidos. Quão comum não é, para quem cobre a Amazônia, viver situações de risco ou acompanhar pessoas ameaçadas? Aquela sensação de que poderia ter sido comigo aparecia o tempo todo para mim e para muitos colegas com quem conversei em campo. Era um papo muito presente na cerveja do reportariado, quando a cobertura permitia.
Desembarcar em Tabatinga foi aquele choque de realidade que passa como um trator sobre quaisquer questões existenciais que ficam latejando na cabeça. A realidade da internet e da comunicação muito precárias, da falta de gasolina nos postos, dos pagamentos só em dinheiro vivo, dinheiro este que às vezes falta no banco. O que a tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia tem de estratégica, tem também de precária.
E a precariedade se impõe às questões existenciais quando você tem que produzir pautas, se engajar numa cobertura internacional, prestar contas, pensar nos desafios logísticos para se deslocar por horas de barco de um lado para o outro e se hospedar em cidades onde boa parte da imprensa nacional, dos correspondentes internacionais no Brasil e das autoridades também estavam atrás de uma cama. Eu, que pisava pela primeira vez na região do Vale do Javari, contei muito com a sagacidade rondoniense do Avener para lidar com todos esses desafios e agradeço diretamente a ele: valeu, mano!
Olhando em perspectiva, me orgulho muito do trabalho que fizemos. Mesmo lidando com prazos apertados e outros desafios de uma investigação em tempo real, tentamos ouvir absolutamente todos os lados nessa cobertura de desaparecimento que virou cobertura de assassinato. Reportamos o relato de tortura daquele que depois confessou a autoria do crime, o clima na cidade que subitamente virou palco da investigação de um crime de repercussão internacional, ouvimos os indígenas, os pescadores. Retratamos o abandono da Funai na região. Mostramos em dois textos a dor da família de Maxciel Pereira dos Santos, indigenista e ex-servidor da Funai assassinado em setembro de 2019 em um crime ainda sem solução.
Mostramos como a última viagem de Dom e Bruno estava distante de ser uma “aventura não recomendável”, como descreveu o presidente Bolsonaro. Avener fez um registro exclusivo da prisão de um dos suspeitos. Rubens revelou em primeira mão as medidas administrativas da Funai contra Bruno. São, até agora, 21 textos publicados, a maioria deles enviados direto de campo, sobrepondo toda a precariedade que descrevi. Textos que não iriam ao ar sem a disposição e edição ágil de Marina Amaral e Thiago Domenici. Depois que a maioria dos repórteres já deixou o Vale do Javari, Rubens Valente e José Medeiros seguem lá apurando os desdobramentos do caso e indo contra a noção do fim do “ciclo da notícia”, como bem destacou no Twitter o jornalista Ricardo Senra, da BBC.
Quando o fogo da cobertura abaixou, voltaram à cabeça as questões existenciais. Foi muito duro, por exemplo, quando se confirmou que o desaparecimento de Bruno e Dom era na verdade um duplo homicídio. Muita coisa, porém, terei que elaborar agora, enquanto vou atrás de outras histórias. Ser repórter investigativo é esse eterno trocar o pneu com o carro andando. O foco é a pauta. Os parafusos da cabeça a gente aperta depois.
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