Orçamento dos recursos não reembolsáveis desaba para pouco mais de 500 mil reais, e nenhuma chamada pública para novos projetos é lançada desde a posse do atual presidente, em 2019
O governo do presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) desidratou quase que totalmente o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC, mais conhecido como Fundo Clima). O orçamento do fundo em 2019, 2020, 2021 e 2022 foi o mais baixo desde 2011, quando começou a funcionar um dos pilares da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC).
Pouco mais de meio milhão de reais foi reservado para o Fundo Clima em 2021 e 2022, suficiente para apoiar somente um ou dois projetos de mitigação das emissões de gases de efeito estufa e adaptação de regiões vulneráveis a eventos climáticos extremos.
Na prática, o FNMC tem funcionado apenas pró-forma desde que seu comitê gestor foi reativado em julho de 2020 pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, após a modificação de seu comitê gestor para assegurar seu controle pelo Poder Executivo.
Dos R$ 7.427.417 empenhados (reservados) no orçamento federal para o Fundo Clima entre 2019 e 2021, 84% foram destinados ao “Lixão Zero Rondônia”, projeto aprovado em 22 de dezembro de 2020 pelo comitê gestor do FNMC. Três reportagens exclusivas de ((o))eco, publicadas em 9, 21 e 23 de dezembro de 2020, revelaram ao menos 16 procedimentos suspeitos no processo de análise e aprovação da proposta, que não foi selecionada por meio de edital de chamamento público de projetos.
Se tivesse sido corrigido anualmente pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) desde que o FNMC começou a operar, em 2011, seu orçamento em 2022 deveria alcançar R$ 58,329 milhões. O valor é uma atualização do montante executado no primeiro ano de operação do fundo, quando o governo federal destinou R$ 30,317 milhões aos projetos financiados pelo instrumento. Considerando a última projeção do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para a variação anual do IPCA em 2022 (6,5%), publicada em 14 de abril passado, a inflação acumulada desde 2011 deverá alcançar 92,4% no fim de 2022. Índice oficial de inflação no Brasil, o IPCA é calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A verba do mecanismo em 2022 atingiria perto de R$ 8,712 milhões, 17 vezes mais que os R$ 502.095,00 alocados, caso o governo Bolsonaro houvesse ao menos corrigido o magro orçamento de 2018 pelo IPCA. O orçamento do Fundo Clima no último ano do mandato do presidente Michel Temer (MDB-SP) havia sido até aquele momento o segundo menor desde que o FNMC começou a funcionar.
Como vem ocorrendo com a maioria das solicitações de ((o))eco à assessoria de imprensa do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a pasta não respondeu às questões enviadas a respeito do Fundo Clima. Limitou-se a enviar respostas às questões remetidas via Lei de Acesso à Informação (LAI).
Notas
* O Relatório de Execução do FNMC em 2017 apresenta os pagamentos e os restos a pagar em colunas distintas, diferentemente do que mostram as tabelas de outros relatórios anuais. Portanto, o relatório de 2017 informa que havia R$ 2,644.570 como restos a pagar naquele ano, além do valor de R$ 3.612.315 destinado aos pagamentos relativos ao orçamento empenhado (reservado).
** Inscritos em restos a pagar.
*** Restos a pagar de 2017, 2018 e 2019.
**** Os pagamentos incluem a liquidação de restos a pagar de exercícios anteriores.
***** Considera a projeção do Ipea para o IPCA de 2022 (5,6%), publicada em 14/4/2022.
Fonte: Relatórios Anuais de Execução do FNMC / Elaboração: ((o))eco
Para Alexandre Prado, diretor de economia verde do WWF-Brasil, o Brasil poderia simplesmente ter feito o caminho contrário, o que lhe posicionaria numa situação muito mais confortável no que concerne à implementação de sua política climática e participação na discussão sobre perdas e danos que acontece no âmbito da UNFCCC [Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima] e dos acordos bilaterais e multilaterais.
“É muito triste para quem acompanha esta questão já há quase duas décadas, porque quem sofre são as pessoas menos responsáveis por isso. E que não conseguem nem olhar o tamanho da vulnerabilidade em que se encontram e a responsabilidade que esse governo tem no aumento dessa vulnerabilidade”, conclui Prado.
“Os valores disponibilizados pelo governo Bolsonaro na parcela não reembolsável do FNMC, gerida pelo Ministério do Meio Ambiente, são mais uma demonstração de que a opção, desde janeiro de 2019, é a não política pública em matéria ambiental”, critica Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima (OC). Para ela, os recursos do FNMC deveriam ser aplicados em ações que não conseguem ser cobertas com a parcela reembolsável gerida pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), como as voltadas ao atendimento das populações mais vulneráveis às mudanças climáticas.
“Tem-se nesse exemplo mais um teatro patético do atual governo. Fingem que estão trabalhando, mas na prática estão destruindo por dentro o sistema de proteção ambiental construído no país nas últimas quatro décadas”, arremata Araújo, que presidiu o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) entre 2016 e 2019.
“O Brasil poderia estar migrando rapidamente para uma matriz energética mais limpa e socialmente justa, melhorando o transporte público nas cidades e zerando o desmatamento. Ao invés de ir nessa direção, o governo promoveu um desmonte no FNMC, assim como no Fundo Amazônia, nos órgãos de fiscalização e em tudo que funcionou na nossa política ambiental, ainda que com problemas, nos últimos 15 anos”, afirma Ilan Zugman, diretor da 350.org na América Latina.
Origem do dinheiro
As fontes de recursos do FNMC estão previstas no artigo 6º do Decreto 9.578/2018:
• Até 60% de uma parcela de 34% da participação especial do petróleo, conforme tratado no inciso II do § 2º do artigo 50 da Lei nº 9.478/1997. A participação especial é uma compensação financeira extraordinária devida pelos concessionários de exploração e produção de petróleo ou gás natural para campos de grande volume de produção;
• Dotações da Lei Orçamentária Anual da União (LOA);
• Recursos decorrentes de acordos, ajustes, contratos, convênios, termos de parceria ou outros instrumentos congêneres previstos em lei, celebrados com órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital ou municipal;
• Doações realizadas por entidades nacionais e internacionais, públicas ou privadas;
• Empréstimos de instituições financeiras nacionais e internacionais;
• Reversão dos saldos anuais não aplicados;
• Recursos oriundos de juros e amortizações de financiamentos;
• Rendimentos auferidos com a aplicação dos recursos do Fundo Clima;
• Recursos de outras fontes.
Sem chamadas públicas
Desidratado financeiramente, o FNMC deixou de lançar editais de chamadas públicas para a apresentação de projetos interessados em seus recursos. O último edital foi lançado em 2018, conjuntamente com o Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA), voltado a iniciativas socioambientais de redução de vulnerabilidade climática em áreas urbanas. Foram selecionadas 16 propostas, todas da região Nordeste. Na ocasião, o comitê gestor do FNMC aprovou a liberação de até R$ 3 milhões para apoiar nove desses 16 projetos em complementação aos recursos do FNMA.
Em seus 12 anos de operação (incluindo 2022), o Fundo Clima destinou R$ 121,1 milhões em valores nominais a projetos selecionados em editais de chamadas públicas, exceto o Lixão Zero de Rondônia.
No primeiro ano da gestão Bolsonaro, 2019, foram empenhados R$ 718.094,18 para despesas correntes, completando parcelas remanescentes de convênios anteriores. Nenhum projeto novo foi selecionado para receber recursos do Fundo Clima.
O valor total disponível no orçamento de 2020 do fundo, R$ 6.207.228,00, foi direcionado integralmente ao projeto Lixão Zero Rondônia. A iniciativa também conta com recursos do FNMA, sendo R$ 2.696.816 do orçamento de 2020 e R$ 3.136.306,64 de exercícios seguintes, como aponta o Relatório de Execução FNMC 2020. Assim, o valor total do Lixão Zero Rondônia soma R$ 12.040.350.
Sob cláusula suspensiva desde sua assinatura, em 28 de dezembro de 2020, o contrato de repasse dos recursos foi firmado entre a Caixa e o proponente do projeto, o Consórcio Intermunicipal da Região Centro-Leste do Estado de Rondônia (Cimcero). A Caixa é a instituição mandatária do MMA nos contratos com os proponentes dos projetos aprovados no FNMC que implicam obras de engenharia (o banco responde pelo cumprimento do contrato e sua gestão operacional).
Em 23 de março, ((o))eco publicou reportagem apontando procedimentos suspeitos da Caixa neste contrato, como sua não rescisão por conta da perda de prazo para o consórcio apresentar documentação necessária para o banco remover a cláusula suspensiva e a dispensa do plano de sustentabilidade do projeto, exigido pela legislação vigente. O deputado federal Nilto Tatto (PT-SP) protocolou requerimento de informações em 11 de abril último na Mesa da Câmara dos Deputados sobre os procedimentos suspeitos do MMA e da Caixa revelados pelas reportagens publicadas por ((o))eco desde 2020. A Mesa precisa aprovar o requerimento para que ele seja encaminhado ao MMA.
“Quem mais se prejudica com a escassez de financiamento a projetos de mitigação e adaptação à crise climática são as comunidades que já se encontram em situação vulnerável. Quando o governo desmonta estruturas que vinham funcionando, o impacto vai afetar, lá na ponta, quilombolas, povos indígenas e pescadores, que estão na linha de frente da crise climática. Não à toa, essas comunidades lideram muitas das manifestações mais importantes contra a política ambiental desastrosa do governo Bolsonaro”, destaca Zugman.
Apoio a um único projeto em 2021
Segundo informações obtidas por ((o))eco via LAI, houve empenho (reserva) de R$ 505.095 para fomento de projetos em 2021. Deste montante, R$ 342.760,91 foram destinados ao projeto apresentado pelo município de Fagundes Varela (RS) no âmbito do Edital de Chamamento Público nº 2, de 21 de setembro de 2021, do programa Cidades+ Verdes, visando à implantação, ampliação ou revitalização de parques urbanos. O edital foi lançado pelo MMA em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ), por meio do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD).
Os recursos foram inscritos como restos a pagar (despesas empenhadas, mas não pagas até 31 de dezembro) e serão aplicados no projeto de implantação do Parque Urbano Bem-Te-Vi em Fagundes Varela, que ficou em segundo lugar na seleção realizada pelo MMA entre as propostas apresentadas para o edital. Ou seja, não se tratou de edital específico do FNMC.
A maior parte da verba remanescente do orçamento de 2021 do FNMC foi direcionada a um projeto em fase final de execução visando ao aproveitamento da energia fotovoltaica (solar) e autossuficiência energética na Floresta Nacional da Restinga de Cabedelo, na região metropolitana de João Pessoa, capital da Paraíba.
Executado desde 2015 como estratégia de difusão da tecnologia fotovoltaica pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o projeto recebeu R$ 159.334 do orçamento de 2021 do FNMC, relativos ao pagamento da última parcela do Termo de Execução Descentralizada (TED 01/2015), que tem custo total de R$ 1.496.347,94. Este TED teve seu prazo de vigência prorrogado de 31 de dezembro de 2019 para 30 de junho de 2022, e não há mais recursos orçamentários previstos para a iniciativa, informa o Relatório de Execução FNMC 2021.
Também via LAI, o MMA comunicou que a verba autorizada para o FNMC na Lei Orçamentária Anual (LOA) 2022 é de R$ 545.980,00 na modalidade não reembolsável, o segundo menor orçamento da história do mecanismo. Serão aplicados integralmente em novos projetos, “a priori”. “Não há previsão de alocação de verbas para renovação de projetos atualmente em andamento”, informou a pasta. Não se sabe até o momento que projetos receberão recursos do orçamento de 2022 do Fundo Clima. Os critérios para a seleção de eventuais novos projetos em 2022 também não foram divulgados até o momento. Veja box sobre o assunto.
Ação aguarda julgamento no STF
Quatro partidos políticos – Rede Sustentabilidade, PSB, PSOL e PT – ajuizaram em 5 de junho de 2020 no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 708, que aguarda julgamento. O relator da ação é o ministro Luís Roberto Barroso.
Na ação, os pleiteantes pedem que seja “declarada a inconstitucionalidade do comportamento omissivo lesivo do Poder Público em não dar andamento ao funcionamento sistemático do FUNDO CLIMA, seja pela não liberação dos recursos autorizados na lei orçamentária, seja pela não apresentação do Plano Anual de Aplicação de Recursos, vedando-se novos atos omissivos que venham a ser feitos nas programações futuras, em respeito ao pacto federativo e aos direitos fundamentais relativos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e dos povos indígenas”.
O Greenpeace Brasil lançou em fevereiro passado campanha para que os governadores editem decretos de emergência climática e implementem ações de adaptação aos impactos adversos da mudança do clima sobre as populações mais vulneráveis a inundações, secas, ondas de calor e tempestades. No momento, a campanha prioriza os dez estados mais afetados por eventos extremos: Bahia, Minas Gerais, Pará, Goiás, Maranhão, Rio de Janeiro, Tocantins, Piauí, São Paulo e Rio Grande do Sul.
“Os esforços para implementar adaptação climática nos planos nacionais e estaduais ainda são tímidos, sem participação social e carecem de maior prioridade para a lei orçamentaria anual vide as intensificações dos eventos extremos de chuva e temperatura que o Brasil historicamente já vivencia”, lamenta Rodrigo Jesus, porta-voz da campanha de clima e justiça do Greenpeace Brasil.
Segundo ele, a campanha dos decretos de emergência visa influenciar os estados e o Distrito Federal a definirem metas e orçamento para as ações da política climática. A ampliação dos planos para as unidades da federação “apresenta uma maior possibilidade de intervenção para pressionar por medidas eficazes e que garantam a resiliência das populações em situação de vulnerabilidade frente à crise climática”.
“O descompromisso do governo federal na pauta ambiental, e em especial a agenda climática, vai desde o negacionismo científico ao orçamento do FNMC, que não foi priorizado enquanto um recurso necessário para investimentos em direitos básicos [das populações mais expostas aos eventos climáticos extremos]”, critica Jesus.
Inesc recomendou priorizar os recursos não reembolsáveis no orçamento de 2022
Em nota técnica publicada em outubro de 2021, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) recomendou ao Congresso Nacional priorizar no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2022 a destinação dos recursos do FNMC para sua linha não reembolsável, por meio da ação orçamentária “Fomento a Estudos e Projetos para Mitigação e Adaptação à Mudança do Clima” (20G4) em detrimento da ação “Financiamento Reembolsável de Projetos para Mitigação e Adaptação à Mudança do Clima (00J4)”, operada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Não foi o que ocorreu. O MMA atribui o derretimento do orçamento do FNMC ao contexto de restrição fiscal, que limita as aplicações na ação 20G4, “sujeita ao teto de gastos do governo federal e à meta de resultado primário do setor público”, justificativa que consta na ata da 31ª reunião do comitê gestor do fundo, realizada em 23 de março último por videoconferência. Houve no encontro indicação por parte do MMA de que será realizada reunião específica para discutir como os recursos serão aplicados, sem precisar quando ela ocorrerá.
Fonte: O Eco
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