Localizado o que seria o melhor ponto, a umas três milhas da costa, o primeiro mergulhador desceu. A água estava escura, e a seis metros de profundidade a pouca visibilidade virou nenhuma
Quando foi realizado o primeiro exercício sério de determinação de áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade do Brasil, em 1999, a região do Albardão, no extremo sul de nossas águas jurisdicionais, já havia sido apontada como de extrema relevância. Todas as indicações, advindas de estudos da Fundação Universidade de Rio Grande e das capturas pesqueiras, permitiam inferir já àquela época uma altíssima biodiversidade, algo que estudos posteriores seguiram indicando.
Mas a gente queria ver de perto.
Foi assim que, na Expedição Tesouros do Albardão, organizada durante esta semana pelas instituições componentes do Projeto Un Solo Mar, e que contou com a participação de ambientalistas, pesquisadores e autoridades ambientais brasileiras e uruguaias, tínhamos planejado tentar realizar os mergulhos mais ao sul do Brasil já realizados – e também os mais kamikazes, segundo muitos mergulhadores experientes e que desdenhavam de nosso interesse em mergulhar para registrar vida num lugar de mar revolto, escuro, cheio de sedimentos na coluna d’água. Nunca ninguém quis tentar, até agora.
Foi preciso que o Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental – NEMA organizasse uma verdadeira operação de guerra para que os mergulhos acontecessem. Um mergulhador profissional de Rio Grande, Thiago Cardoso Ribeiro, o Pipi, conhecedor das dificuldades da região, foi recrutado e trouxe seu inflável South Shore e um jet ski para dar apoio à equipe do Instituto Baleia Jubarte, formada pelo Presidente do IBJ, Eduardo Camargo, seu Vice-Presidente Enrico Marcovaldi e o biólogo Sergio Cipolotti, todos com larga experiência internacional de mergulhos bons e ruins. O produtor audiovisual e marinheiro experiente Pablo Bech completou a equipe de malucos.
Nesta terça-feira foi tentado o primeiro mergulho, com um mar de almirante, pouco vento e uma saída do barco um pouco menos assassina pela barra do Arroio Chuí. O destino, pontos de supostos cabeços de pedra estudados durante meses. Confirmar a existência desses fundos consolidados na região era uma das missões da Expedição, já que sobre eles se supunha que se assentassem algas, esponjas, corais, uma diversidade de vida bentônica que atua como atrator das demais espécies marinhas. Como a maioria da nossa costa sul tem fundos marinhos de areia e lama, é nessas porções de fundos sólidos que se concentram os locais de alimentação, e também de reprodução, de tartarugas-marinhas, tubarões, raias, toninhas, golfinhos e outros.
Localizado o que seria o melhor ponto, a umas três milhas da costa, o primeiro mergulhador desceu. A água estava escura, e a seis metros de profundidade a pouca visibilidade virou nenhuma, permitindo apenas tocar o fundo de cascalho, mas sem enxergar absolutamente nada. Desce outro mergulhador e a mesma coisa: não dava nem para ler os registros do computador de mergulho no pulso, colocado grudado na máscara. Missão abortada e apenas o consolo de uma breve visita de um grande leão-marinho ao grupo, que retornou frustrado para a base da Expedição no Balneário Hermenegildo. No melhor dia possível de mergulho, não se viu nada.
Mas Pipi e Pablo, cascas-grossas gaúchos da melhor espécie, não desistiram. Com pescadores artesanais simpáticos, conseguiram a marca (posição geográfica) de outro suposto cabeço de pedra, bem mais longe da costa – nove milhas – e quase na divisa com o Uruguai. No café da manhã coletivo da Expedição, fizeram seu canto de sereia com a impressão de um mapinha da posição do cabeço, que logo se amarfanhou de tanto passar de mão em mão. Demorou pouco para os mergulhadores do IBJ se convencerem a fazer mais uma tentativa. E mesmo com o vento nordeste voltando a soprar, aumentando a ondulação do mar, lá foram os malucos de novo barra do Chuí afora.
Desta vez, porém, o desfecho foi outro. Em reunião na Prefeitura de Santa Vitória do Palmar para explicarmos ao Prefeito a proposta do Parque Nacional do Albardão, eu ficava um pouco discretamente conferindo o grupo de WhatsApp da Expedição para ver se havia novidades dos mergulhadores. No meio da tarde veio a notícia de que haviam localizado uma diferença grande de profundidade, indicativo possível de fundo rochoso. E o tempo passou sem mais notícias, até que veio a primeira foto, de um sorridente Sergio Cipolotti segurando uma pequena amostra de coral. Estava oficialmente registrada a vida bentônica dos fundos consolidados do Parcel Neutral, assim batizado pela equipe pela sua posição junto à divisa uruguaia. Segundo Enrico Marcovaldi, “um recife consolidado, e onde apesar da baixa visibilidade, apenas cerca de dois palmos, nos foi possível registrar uma grande riqueza de vida. Além dos corais, hidróides, algas calcárias e moluscos do fundo, que iremos enviar para identificação, vimos tartarugas, leões e lobos-marinhos, confirmando a importância da região”.
O diretor de Meio Ambiente do Departamento (Estado) de Rocha, Rodrigo García Píngaro, que participa da Expedição binacional, ficou maravilhado com as amostras. “O achado biológico neste parcel, justo sobre nossa fronteira marítima, tem enorme importância, confirmando a responsabilidade compartilhada de nossos dois países para proteger o patrimônio natural marinho. Precisamos fazer mais ações em conjunto, expedições binacionais, programas de cooperação que ajudem a gerir adequadamente nosso mar, que realmente é um só, sem conhecer fronteiras”.
Como o Parcel Neutral, certamente há muitos outros, verdadeiros imãs de biodiversidade marinha. Seria ótimo crer que estejam preservados. Mas a realidade é que esses oásis seguem ameaçados pela pesca industrial totalmente predatória que ocorre na região. Aqui, pesqueiros piratas, principalmente vindos de Santa Catarina, desrespeitam as proibições de arrasto de fundo, que arrebenta com os parcéis e sua vida, e invadem sistematicamente o Uruguai para roubar lá também o peixe que depredam aqui. Hoje, a pesca industrial é a maior ameaça a esse inestimável patrimônio natural costeiro-marinho que é o Albardão, e de cuja riqueza esse mergulho épico, histórico, recorde austral em nossas águas, apenas traz uma pequena amostra, abrindo uma pequena janela para esse mundo de seres que tentam sobreviver ante a indiferença de muitos e a ganância de outros tantos.
Criar o Parque Nacional do Albardão, e áreas marinhas protegidas adjacentes no mar uruguaio, é essencial para permitir que a vida que depende do Parcel Neutral e de todos os parcéis da região siga existindo, proliferando, nos beneficiando com sustentabilidade da pesca no seu entorno e outros serviços ecossistêmicos de um ambiente marinho preservado.
Fonte: O Eco
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