Grupos se fragmentaram em meio à floresta para fugir do genocídio e hoje têm os territórios cobiçados por desmatadores
A Amazônia brasileira abriga o maior número de povos indígenas isolados conhecidos no planeta. No Brasil, apenas um deles vive fora do bioma, os Avá-Canoeiro, que ocupam porções de Tocantins e Goiás. A Funai contabiliza oficialmente 114 registros da presença desses grupos no país, 28 deles confirmados.
O mais novo grupo foi confirmado em setembro do ano passado no município de Lábrea, no sul do Amazonas, por uma expedição liderada por servidores da Funai. O fato foi tornado público em fevereiro deste ano pelo Brasil de Fato e pelo site O Joio e o Trigo. A cúpula do órgão indigenista, no entanto, não reconheceu oficialmente a confirmação até a publicação desta reportagem.
Para denominar esses grupos que vivem de maneira autônoma, o Estado brasileiro usa o termo jurídico-administrativo “isolados”. No campo do indigenismo, porém, existem outros: “autônomos”, “resistentes”, “ocultos”, “não contatados”, “em isolamento voluntário” ou “povos livres”.
Por que eles se isolam?
O genocídio provocado pela colonização ajuda a explicar por que eles buscam viver longe da sociedade não indígena. Os povos originários do Brasil, por pouco, não foram completamente exterminados. Estima-se que a colonização tenha provocado a morte de 70% deles.
No ano de 1500 a população era de aproximadamente 3 milhões de habitantes, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai). O número mais baixo, de 70 mil, foi registrado em 1957. Desde então, a população vem crescendo e chegou a 897 mil pessoas, de acordo com o censo do IBGE realizado em 2010.
Diante da invasão violenta e do contágio de doenças trazidas pelos europeus, alguns adotaram a fragmentação e o isolamento como estratégia de sobrevivência, refugiando-se, principalmente, em áreas mais remotas com extensas porções de vegetação não desmatada.
Como já ocorreu no passado, o contato tem o potencial de dizimar essas populações, cujos sistemas imunológicos são mais suscetíveis a doenças infectocontagiosas.
Embora tenham adotado uma estratégia comum de evitar o contato significativo com a sociedade dos colonizadores, esses grupos vivem de maneiras diferentes. Segundo a ONG Survival, alguns não possuem moradia fixa e têm o hábito de circular permanentemente pelo território, sobrevivendo da caça e da coleta de alimentos.
Outros são mais sedentários e se alimentam através da agricultura, cultivando mandioca e outros vegetais em roçados preparados na floresta. Há grupos pequenos – ou até um único indivíduo – e outros mais numerosos, que estabelecem interações não regulares com povos vizinhos.
Genocídio da Coroa até a ditadura
No Brasil, o Estado é responsável pela proteção e pela preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e à reprodução física e cultural desses povos. Mas nem sempre foi assim.
Desde a época colonial até a o regime militar de 1964, o planejamento estatal, articulado a interesses econômicos privados, envolveu a ocupação forçada dos territórios, além da expulsão, aldeamento e aculturamento dessas populações. Esse conjunto de práticas e as ideias que as fundamentam são chamadas de política integracionista.
O integracionismo deixou de ter influência majoritária sobre o indigenismo brasileiro a partir da década de 1980, com o processo de redemocratização, quando foram expostas as violações aos direitos humanos dos indígenas praticadas durante a ditadura militar de 1964.
O marco dessa mudança foi a Constituição Federal de 1988, que reconheceu aos povos originários “sua organização política, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
A Funai, por meio Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC) e as atuais 11 Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), com 29 bases espalhadas pelo país, passou a ser pautada pelo respeito à autonomia e a autodeterminação dos povos, inclusive aqueles que optaram pelo isolamento.
Assim, as ações desenvolvidas com as populações indígenas no Brasil tornaram-se referência na elaboração de diretrizes internacionais.
Não por acaso, a política do governo de Jair Bolsonaro (PL) é acusada por indígenas e indigenistas de ser integracionista. Durante a campanha eleitoral de 2018, ele disse a uma emissora de TV: “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”.
Além de cumprir a promessa, ele foi adiante, e em 2021 foi o primeiro presidente brasileiro a ser denunciado por genocídio indígena no Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia.
Quais direitos eles têm?
Os povos isolados têm os mesmos direitos que todos os indígenas do Brasil, aliás, os mesmos direitos que qualquer brasileiro.
“A diferença é que, para se alcançar uma igualdade material e não apenas formal, existem normativas que levam em consideração peculiaridades dessas populações, como sua extrema vulnerabilidade socioepidemiológica e a sua decisão de adotar em um modo de vida com pouca ou nenhuma interação com pessoas que não sejam de seus grupos”, afirma a assessora jurídica do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), Carolina Santana.
Segundo a advogada, os mecanismos legais direcionados exclusivamente a esses grupos não são muitos e, além disso, são pouco conhecidos, o que resulta em uma vulnerabilidade política.
O principal dispositivo jurídico favorável a esses povos é a garantia territorial da Restrição de Uso, medida administrativa que deve ser tomada pela Funai para suspender todas as atividades econômicas e evitar o contato com não indígenas, que têm o potencial de dizimar a população.
Sob Bolsonaro, a Funai vem se recusando ou atrasando a renovação dessas portarias, pois, na prática, elas impedem a expansão da fronteira agrícola e o desmatamento nas regiões mais preservadas da Amazônia.
Na avaliação da assessora jurídica do Opi, o governo federal está institucionalizando a violência sofrida há séculos pelos povos indígenas que, embora existisse antes de Bolsonaro, vinha sendo combatida.
“O atual governo transforma as violações de direitos em políticas públicas. As consequências podem ser desde um assédio extremo aos territórios que resulte em danos à saúde mental e desintegração de suas organizações sociais, até um genocídio”, afirmou Carolina Santana.
“Nessa seara devemos operar sempre com o princípio da precaução, em virtude de tudo o quanto já ocorreu de degradante no passado com essas populações. Os governos brasileiros vinham aprendendo, mas agora retrocedemos 60 anos”, complementa a advogada.
Fonte: Brasil de Fato
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