Agrotóxicos contra pragas resistentes ao glifosato contaminam e destroem plantios de uvas e outras economias no estado. Questão aguarda decisão judicial há mais de 1 ano
Uma ação civil pública de produtores contra os impactos de agrotóxicos como 2,4-D nas culturas de uva e de maçã no Rio Grande do Sul aguarda decisão da Justiça há mais de um ano. Viticultores estimam prejuízos anuais superiores a R$ 30 milhões e afirmam que as medidas adotadas pelo governo gaúcho são inócuas diante das repetidas contaminações. Os venenos também afetam a produção orgânica de pequena escala.
A aplicação anual de agrotóxicos nos cerca de 400 mil hectares cultivados com soja transgênica na Campanha gaúcha – área semelhante a de Bagé ou a 10 vezes a do município de Porto Alegre – tem prejudicado a produção de uvas há pelo menos 5 anos. Um dos venenos usados contra pragas nativas e exóticas, como a buva, é o 2,4-D. Espalhado pelo vento ou por usos incorretos, mata ou prejudica o crescimento de videiras jovens e reduz a produção de plantas adultas, cujas uvas servem para vinhos, sucos e consumo direto.
“Depois de esgotadas as tentativas de negociação com produtores, Ministério Público, Assembleia Legislativa e Governo estaduais, e vendo as perdas de produção crescerem ano após ano, a judicialização foi a saída para tentar garantir o nosso direito de produzir”, explicou Valter Potter, da vinícola Guatambu e presidente da Associação Vinhos da Campanha Gaúcha.
A denúncia assinada em dezembro de 2020 pela entidade e pela Associação Gaúcha dos Produtores de Maçã contra o Estado do Rio Grande do Sul quer o fim das aplicações do 2,4D até que sejam definidas zonas livres do veneno ou que sejam adotadas medidas efetivas para evitar a “deriva” de agrotóxicos. O caso aguarda uma decisão na 10ª Vara da Fazenda Pública, em Porto Alegre.
Conforme Potter, o governo não controla a ‘deriva’, a fiscalização é pífia e os prejuízos dos viticultores crescem anualmente. Vinhedos de municípios como Dom Pedrito e Santana do Livramento sofreram novamente em 2022 e, em localidades como Jaguari, alguns produtores perderam toda a produção.
“Cerca de 1 milhão de uvas foram destruídas na região da Campanha, somando R$ 30 milhões em prejuízos. A tentativa de recuperar plantas afetadas pelos agrotóxicos também eleva custos. Projetos de hotéis, gastronomia e enoturismo estão parados até uma solução para o 2,4-D. Os produtores não aguentam mais”, ressaltou o empresário.
Diretor do Departamento de Defesa Vegetal da Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul, Ricardo Felicetti reconheceu que a ‘deriva’ ocorre no estado todo e prometeu medidas mais duras contra as aplicações irregulares a partir de junho, como aumento da fiscalização e da orientação sobre uso de herbicidas para produtores de soja e outros grãos. Ele aposta mais em informação e monitoramento do que no veto a venenos.
“A ‘deriva’ não é intencional e gera prejuízos com a perda de agrotóxicos aplicados. O estado tem 400 mil imóveis rurais. Mais da metade não tem assistência técnica alguma. Simplesmente proibir agrotóxicos (como o 2,4-D) pode prejudicar a produção de grãos. Temos cerca de 1 milhão hectares com arroz, 6 milhões com soja e outros 800 mil com milho”, disse.
A secretaria estadual recebeu 102 denúncias sobre contaminações de frutíferas com venenos em 2021, alcançando 31 municípios. No ano anterior, foram 164 registros em 43 localidades. O órgão recomenda a aplicação de agrotóxicos com ventos de no máximo 10 Km/h, com umidade do ar maior do que 55% e termômetros indicando menos de 30ºC.
“É impossível garantir na prática que essas condições permaneçam constantes durante o lançamento dos químicos”, lembrou o doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina, Leonardo Melgarejo, parte do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.
Modelo prejudica cultivo de orgânicos
“A ‘deriva’ é comum também nos vizinhos Santa Catarina e Paraná, além de países como Austrália e Estados Unidos”, informou Ricardo Felicetti, da Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul. Com tamanho alcance, afeta cultivos de oliveiras, maçãs, ameixas, mandioca, melancia, pêssegos e hortaliças, além de plantas nativas no estado.
Produtores de orgânicos também são vítimas, como os de uma dezena de assentamentos em localidades como Guaíba, Viamão, Eldorado do Sul e Nova Santa Rita. Arroz orgânico cultivado no último município chega ao país todo. Frutas e hortaliças produzidas na região são consumidas inclusive na capital Porto Alegre.
“Famílias já perderam de 30% a 100% da produção orgânica e podem ficar sem suas certificações. Águas são contaminadas. Não há nenhum respeito por horários e distâncias na aplicação dos venenos, até mesmo com aviões. A ‘deriva’ ameaça a população toda, não só grandes produtores”, denunciou Emiliano Maldonado, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap).
Leonardo Melgarejo, do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, lembra que os efeitos dos agrotóxicos consumidos junto com alimentos podem se manifestar em longo prazo nas pessoas e que o risco cresce pelo uso no Brasil de substâncias vetadas em outros países. O 2,4-D foi enxotado de praticamente toda a União Europeia por causar alterações fisiológicas, câncer e problemas hormonais.
“A ‘deriva’ é um ‘fenômeno natural’ das monoculturas com agrotóxicos. Tudo piorou neste governo, que desmonta fiscalização e órgãos ambientais e autoriza ‘lixos tóxicos’ banidos no planeta para proteger a saúde ambiental e humana. E com menos mercado, seus preços caem e se tornam ainda mais atrativos no Brasil”, destacou. Agência Pública e Repórter Brasil contaram 1.552 agrotóxicos liberados em 3 anos de governo Jair Bolsonaro.
Sem mudanças no modelo agropecuário e aumento da capacidade estatal para controlar o uso de agrotóxicos no horizonte próximo, produtores de uva e de outras frutas e hortaliças em todo o Rio Grande do Sul temem uma escalada de prejuízos e até a quebra de produtores e empresas.
“O governo se rendeu à soja, muito forte no PIB e na política, mas deveria apostar na diversificação da produção. Isso traria mais desenvolvimento econômico e distribuição de renda. Com a soja e outras commodities, quem ganha mesmo são apenas as grandes empresas e produtores”, completou Valter Potter, da vinícola Guatambu e presidente da Associação Vinhos da Campanha Gaúcha.
Fonte: O Eco
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