Em 25 anos, a CTNBio aprovou o uso de mais de 150 produtos geneticamente modificados no país
Todos os meses, um colegiado de 54 especialistas de diferentes disciplinas se reúne em Brasília para avaliar informações técnicas que frequentemente estão na fronteira do conhecimento da genética e da biotecnologia. Nesses encontros, eles tomam decisões que, ao longo dos últimos 25 anos, tiveram influência na economia do país e na alimentação e na saúde dos brasileiros. Os especialistas, com formação em áreas como biossegurança, biologia, medicina, veterinária e ambiente, integram a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), responsável por regular o uso de produtos geneticamente modificados, estabelecer normas para pesquisa e deliberar sobre a comercialização de transgênicos no país.
Entre 1998 e 2019, foram aprovados 152 produtos geneticamente modificados no país, entre plantas, vacinas, medicamentos, microrganismos e até insetos, como um mosquito transgênico para ajudar a combater a disseminação dos vetores da dengue (ver quadro abaixo). A agricultura foi um dos segmentos da economia mais beneficiados. Um levantamento feito em 2019 pela organização Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações de Agrobiotecnologia (Isaaa) mostrou que 53 milhões de hectares são cultivados no Brasil com transgênicos, extensão inferior apenas à dos Estados Unidos, com 75 milhões de hectares. Eles ocupam aqui no país quase 95% da área plantada de soja, 88% da de milho e 85% da de algodão e avançam em culturas como cana e eucalipto. “É praticamente impossível para um brasileiro não consumir ao menos algum derivado de planta geneticamente modificada todos os dias”, destaca o atual presidente da CTNBio, o engenheiro-agrônomo Paulo Barroso, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). “O consumo desses alimentos, avaliados pela comissão, não causou nenhum malefício à saúde, o que comprova o cuidado com que as deliberações da CTNBio foram tomadas nesses 25 anos.”
O impacto também é abrangente na pecuária. Cabe à CTNBio avaliar a segurança de vacinas geneticamente modificadas utilizadas para imunizar todos os anos centenas de milhões de animais cuja carne é destinada ao consumo humano, como frango, gado e suínos. Nos últimos tempos, o escopo do trabalho da comissão se ampliou. Foi aprovado em março de 2020 o primeiro produto para terapia gênica no país. Desenvolvido pela empresa Novartis, o medicamento corrige uma mutação genética que leva à cegueira.
Durante a pandemia, a comissão convocou nove reuniões extraordinárias para analisar a segurança de vacinas contra Covid-19 baseadas em transgenia. Dois imunizantes foram aprovados, os produzidos pela AstraZeneca e pela Janssen, e a Sputnik V, da Rússia, está em avaliação.
O papel da CTNBio não se limita a avaliar se produtos geneticamente modificados são seguros. O regulamento da comissão cita 22 atribuições diferentes, como autorizar importações, realizar avaliações de risco ou conceder certificados de qualidade em biossegurança para qualquer instituição que pesquise ou produza transgênicos. Os locais onde podem ser executadas as pesquisas de campo necessitam do aval da comissão, de modo a prevenir contaminações no entorno e impactos ambientais indesejáveis. “O vegetal não tem pernas, mas tem pólen e sementes, que podem ser dispersos por insetos, vento e chuva”, explica Barroso.
A pauta da última reunião plenária, realizada em 8 de abril, foi extensa, com destaque para discussões envolvendo processos de liberação de um tipo de trigo resistente à seca e de uma vacina contra dengue. Na pandemia, as reuniões passaram a ser virtuais. Foi preciso adaptar uma plataforma tecnológica para reproduzir o funcionamento da comissão segundo as regras exigidas nos encontros presenciais: os debates devem ser abertos, todos os 54 membros têm direito a voz, mas os 27 suplentes só podem votar se o titular respectivo estiver ausente.
“A participação dos suplentes é essencial para o desempenho da comissão. Eles analisam e relatam processos, e ficam a postos para votar se o titular respectivo não estiver disponível”, explica Flavio Finardi, pesquisador do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), que presidiu a CTNBio entre 2012 e 2014 e hoje é vice-presidente.
A rotina vai além das reuniões mensais. “As demandas da comissão me tomavam pelo menos uns 10 dias de cada mês”, diz a bioquímica Maria Sueli Soares Felipe, professora aposentada da Universidade de Brasília, que participou da comissão entre 2014 e 2020 e a presidiu por dois anos. Os membros se subdividem em quatro subcomissões, incumbidas de analisar processos nas áreas ambiental, vegetal, animal e de saúde humana e encaminhá-los para a deliberação das reuniões ordinárias. As tarefas são voluntárias – os membros não são remunerados. “É um trabalho extremamente interessante. Os processos envolvem o estado da arte da biotecnologia”, explica Soares Felipe.
Vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, a CTNBio começou a funcionar em julho de 1996. Na época, a inserção em um organismo de genes provenientes de outro criava perspectivas novas para o melhoramento de plantas e ao mesmo tempo despertava temores sobre efeitos de longo prazo relacionados à saúde e ao ambiente. Atentos ao potencial da inovação tecnológica, vários países logo regularam o tema, enquanto outros, notadamente na Europa, optaram por legislações restritivas.
Em 1998, liminar concedida à organização Greenpeace e ao Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) reduziu as competências da CTNBio. O pomo da discórdia foi a liberação para plantio da soja transgênica Roundup Ready, da Monsanto, resistente ao agroquímico glifosato. Em 2005, com o advento da nova Lei de Biossegurança, a CTNBio foi recriada com a configuração que tem hoje. Entre seus 54 membros, há representantes de vários ministérios, pesquisadores das áreas de saúde humana e animal, agronomia e meio ambiente, além de especialistas em saúde do trabalhador, direitos do consumidor e agricultura familiar.
O trabalho do colegiado seguiu sendo alvo de contestação promovida por entidades ambientalistas e, internamente, por membros indicados pelos ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário. Para eles, na presença de qualquer incerteza sobre seus efeitos a longo prazo, o produto transgênico deveria ser vetado. A ideia se baseia no chamado princípio da precaução, mencionado na Lei de Biossegurança.
Já os membros da comissão vinculados à academia e os indicados pelos ministérios da Ciência e da Agricultura alertavam ser impossível em qualquer empreendimento científico eliminar todas as incertezas. Mas sustentavam que uma rigorosa avaliação de risco poderia prevenir problemas, garantindo os benefícios da tecnologia. “A segurança que eles exigiam tornaria inviável qualquer pesquisa com transgênicos e era desnecessária, como se demonstrou posteriormente”, afirma o bioquímico Walter Colli, presidente da comissão entre 2006 e 2009 e professor emérito da USP. “A transgenia consiste simplesmente em pegar um gene de um ser vivo e pôr no outro. Cabe à comissão verificar se haverá problemas. Só isso.”
Na avaliação do economista Antonio Marcio Buainain, do Núcleo de Economia Agrícola e Ambiental da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o princípio da precaução foi evocado de forma abusiva. “É um princípio sábio, mas precisa ser usado com sabedoria. Qualquer inovação radical traz riscos. Se for possível controlá-los, vale a pena ir em frente. Se esse conceito fosse levado até o limite extremo, a sociedade não teria hoje inovações que salvaram milhões de vidas e foram importantes para a marcha civilizatória.”
Os embates na CTNBio ecoavam uma controvérsia internacional. De acordo com Buainain, quando os primeiros produtos agrícolas transgênicos despontaram nos anos 1990, houve uma reação à multinacional de sementes Monsanto, que estava à frente na corrida tecnológica. “Na leitura que eu fazia na época, a reação, principalmente na Europa, tinha a ver com o temor de suas grandes empresas de ficar para trás”, afirma. Hoje, Buainain tem outra visão. “O que houve foi a formação de uma coalizão de interesses da sociedade contra os transgênicos e essa coalizão se fortaleceu na Europa. Reunia organizações ambientalistas e grupos que defendem o direito dos consumidores ou pregam uma alimentação saudável, em torno do fortalecimento da agricultura orgânica”, afirma. A tecnologia dos transgênicos não teve sucesso em superar barreiras levantadas por setores da sociedade. “Não basta que as tecnologias sejam boas. Elas precisam passar por um crivo social e na Europa o crivo se tornou rigoroso”, diz.
Para o economista agrícola Decio Zylbersztajn, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, a forma como a soja transgênica foi lançada quebrou práticas do mercado e produziu ruídos. “Tratava-se de uma venda casada de um pesticida e de uma semente transgênica tolerante a ele”, afirma. Os agricultores foram premidos a pagar uma taxa adicional. “Em vez de cobrar royalties na venda de sementes, a Monsanto identificava o uso da soja transgênica na colheita e cobrava uma taxa adicional pelo uso da tecnologia. Os produtores não gostaram da novidade.” Na sua avaliação, a forma imperial como a Monsanto introduziu sua tecnologia atrapalhou o desenvolvimento equilibrado da discussão sobre a transgenia. Um dos resultados, afirma, foi uma reação de consumidores, sobretudo na Europa. “Os consumidores no Brasil e nos Estados Unidos não manifestam a mesma preocupação que os europeus com respeito à transgenia. Mas os consumidores sempre têm de ser respeitados. Não se pode obrigá-los a adquirir aquilo que não querem.”
A visão de que é possível utilizar transgênicos com segurança é compartilhada pela maioria dos membros da CTNBio, mas a questão não está pacificada. Para o engenheiro-agrônomo Leonardo Melgarejo, do Programa de Pós-graduação em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que representou o Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio entre 2008 e 2014, seguem válidas as premissas sobre impactos dos transgênicos. “Quando se transfere um gene, isso pode afetar outras expressões além das características pretendidas e ter consequências de longo prazo, que precisam ser monitoradas”, diz. Segundo ele, ao contrário do que se prometia, os transgênicos não reduziram o uso de agroquímicos na agricultura. “Temos hoje plantas transgênicas resistentes a vários herbicidas e o lançamento no solo de misturas tóxicas sobre as quais temos pouca informação”, afirma. Na avaliação de Melgarejo, o uso de transgênicos pode produzir impactos que ainda estão por ser mensurados. “Imagine uma planta com um gene inseticida que mata lagartas. Quando você planta milhões de hectares, morrem as lagartas e seus inimigos naturais. Em um segundo momento, as lagartas podem adquirir resistência ao veneno e encontram um ambiente com poucos inimigos. Como os insetos não morrem, recorre-se a um novo nível de inseticida”, diz. Ele também chama a atenção para impactos sociais. “Para pequenos produtores, comprar sementes transgênicas impõe um custo adicional que não é compensado por um aumento de rendimento. O destino deles acaba sendo vender a terra para grandes produtores.”
Melgarejo critica o caráter deliberativo da CTNBio e afirma que a comissão deveria ter uma atribuição consultiva. “Temos ali cientistas, com formação em áreas muito específicas, fazendo recomendações que não levam em conta o seu impacto político e social”, afirma. “É difícil sustentar uma posição divergente na comissão. Há concordância ampla de que se trabalha lá com ciência de ponta, mas acho alarmante se pensar em uma ciência que não admite dúvidas.”
Barroso, presidente da CTNBio, ressalta que a comissão não tem como papel lidar com questões econômicas e sociais, mas com a análise da segurança para a saúde e o meio ambiente. Acima do órgão, há o conselho nacional de biossegurança, composto por ministros de Estado. O conselho foi convocado poucas vezes para avaliar recomendações da CTNBio e as referendou.
Em geral, os debates na comissão buscam esclarecer se o risco de um transgênico é maior do que o de um produto convencional. Recentemente, discutiu-se a liberação de um trigo resistente ao estresse hídrico desenvolvido na Argentina. Há incerteza envolvendo a chance de o trigo transgênico ser mais alergênico que o comum. “Concluímos que não há metodologia capaz de tirar essa dúvida”, diz Finardi.
Praticamente não há casos de pedidos de comercialização rejeitados. Quando os estudos requeridos pela comissão dão resultados desfavoráveis, os proponentes retiram os processos antes de sua conclusão. Foi o caso do sorgo resistente ao glifosato. Como é capaz de cruzar com vários tipos de gramíneas, poderia disseminar a tolerância ao herbicida a elas. “Isso também aconteceu com projetos de citros, arroz, alface, cana-de-açúcar, mamão, batata, milho, feijão e muitas outras espécies”, diz Paulo Barroso. Segundo ele, só chegam ao final projetos cujas provas de conceito garantem segurança e têm possibilidade de se tornar um produto. “Enquanto não há informação suficiente, um produto não é aprovado. Quando faltam dados, a empresa precisa fornecê-los ou repetir seus experimentos”, complementa Maria Sueli Soares Felipe.
A regulação de transgênicos no Brasil é diferente da de países com extensões territoriais e agricultura comparáveis ao Brasil. Nos Estados Unidos, não há uma comissão para avaliar a biossegurança de transgênicos. A avaliação é feita em separado por agências do meio ambiente, agricultura e saúde. “No sistema norte-americano é institucionalizada a consulta preliminar das empresas interessadas em liberar um novo produto”, explica Flavio Finardi. Elas devem mostrar que o produto tem ‘equivalência substancial’ ao de origem natural e isso é o bastante para poder comercializá-lo – na eventualidade de surgirem problemas, a responsabilidade é do criador da tecnologia. “O Canadá segue o mesmo padrão, com aprovação final pelo órgão de saúde”, diz. Na Argentina, há uma comissão para avaliar solicitações, com participação de representantes de empresas entre seus membros.
Uma das atribuições da CTNBio é acompanhar a evolução das tecnologias e propor normas adequadas para novas realidades. Em 2016, a comissão baixou a Resolução Normativa nº 16, estabelecendo que modificações em organismos feitas com ferramentas de edição gênica, como a técnica Crispr-Cas9, não constituem transgenia e não precisam de aprovação da CTNBio para serem comercializadas. Ainda assim, a comissão precisa fazer uma análise prévia dos produtos e atestar que não são mesmo transgênicos. Em 2018, pela primeira vez houve esse aval a uma planta modificada por edição gênica: uma variedade de milho que produz só um tipo de amido, a amilopectina. O milho normal produz dois tipos, a amilopectina e a amilose. Chamado de milho ceroso, é absorvido mais rapidamente pelo organismo e usado em suplementos alimentares.
O agrônomo Alexandre Nepomuceno, atual chefe-geral da Embrapa Soja que até o ano passado era representante do Ministério da Agricultura na CTNBio, explica que as modificações obtidas pela edição gênica são tão pontuais que poderiam ser alcançadas por uma mutação natural. “Mas a ferramenta faz isso com rapidez e eficiência”, explica. Na sua avaliação, a Resolução nº 16 deverá ajudar a disseminar tecnologias efetivas e mais baratas para os produtores. “O objetivo é democratizar o acesso a inovações na agricultura, algo que não foi alcançado pelos transgênicos. O custo para obter a regulamentação de uma planta é altíssimo”, diz. Não é por coincidência, ele observa, que as autorizações de comercialização de transgênicos se concentram em quatro grandes companhias de sementes com fôlego financeiro para bancá-las, e em grandes commodities como milho, soja e algodão. “Os produtores se tornaram dependentes dessas empresas e precisam reverter parte razoável do que ganham no pagamento de royalties.”
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP
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