Em 1887, o botânico britânico Henry Nicholas Ridley percorria a ilha de Fernando de Noronha quando coletou um pequeno arbusto de casca acinzentada, folhas verdes reluzentes e diminutas flores brancas. Três anos depois, o naturalista descrevia a nova espécie para a ciência, batizada inicialmente como Palicourea insularis e atualmente recategorizada como Chiococca insularis. Em sua descoberta, Ridley encontrou apenas alguns exemplares distribuídos num único local, na floresta da Ponta da Sapata, extremo sudoeste da ilha oceânica, que na época estava longe de ser parque nacional e área de proteção ambiental, e era apenas um presídio em alto-mar. Por 133 anos, as observações do britânico era tudo que se sabia sobre este arbusto, que simplesmente desapareceu do radar da ciência. Em 2007, chegou a ser feito um inventário da flora na ilha, mas nem sinal da planta que, depois de mais de um século desaparecida, passou a ser classificada como provavelmente extinta.
Foi durante uma expedição em 2018 que realizava um levantamento de vegetação em Noronha, executado pelo Serviço Florestal Brasileiro, que a sorte sorriu – ou melhor, floriu – para o engenheiro florestal Maurício Figueira, que bateu os olhos num arbusto que exibia diminutas flores brancas e que não batia com a descrição de nenhuma outra espécie que ele conhecia na ilha.
“Vi esse arbusto de uns dois metros de altura no meio da floresta e eu tinha dado uma estudada na flora local e achei estranho, porque ele não se encaixava em nada da listagem. São poucas as plantas que ocorrem em Fernando de Noronha, justamente por ser uma ilha, a diversidade é bem baixa, são em torno de 210 espécies de flora. E eu falei pro pessoal que achava que aquela planta era algo interessante e aí fizemos a coleta. Quando voltamos, começamos a pesquisar e percebemos que a única possibilidade seria a Chiococca insularis, que nunca mais ninguém tinha achado”, conta o pesquisador Maurício Figueira, principal autor do estudo que descreve a redescoberta da Chiococca insularis, publicado na revista científica Checklist, em outubro de 2020.
A sorte dos pesquisadores não parou por aí. Ainda na fase de estudos e da elaboração do artigo, durante uma conversa casual em que Maurício descrevia a C. insularis a um outro botânico, Jomar Jardim, da Universidade Federal do Sul da Bahia, uma nova surpresa. “Ele falou ‘vocês não vão acreditar, mas eu estive lá e vi essa planta na beira da praia, um arbusto muito baixo, onde tem muito vento e sol’. Ele não fez coleta, porque estava de férias e não tinha autorização do parque, mas tirou várias fotos, onde a C. insularis também está com flor e dá para identificar mesmo sem a coleta. E numa conversa a gente tinha duas pessoas que tinham visto a planta em dois lugares diferentes da ilha”, relembra Maurício.
O relato de Jomar, que depois se tornou um dos colaboradores do estudo, trouxe não apenas o registro de uma segunda população da C. insularis, mas também uma informação importante sobre a abrangência de habitat da espécie. “O habitat dela é plástico, depende do lugar onde ela está na ilha. Pode ser um arbusto bem rasteiro, moldado pelo vento, perto da praia, ou até uma arvoreta dentro da floresta, com 1,5; 2 metros, na sombra”, explica o engenheiro florestal.
Ainda sem nome popular – afinal de contas, todo mundo achava que ela estava extinta – a C. insularis ainda tem muitas lacunas de informação a serem respondidas por futuras pesquisas, como características da sua floração e dos seus frutos, que na coleta feita na expedição do Serviço Florestal Brasileiro ainda estavam pequenos e imaturos.
“Como só temos duas coletas, não temos como saber muito. Teríamos que fazer um estudo mais aprofundado para saber a época que ela floresce. Porque a gente acabou passando na mesma época que o Ridley passou. Nós passamos em julho e ele em agosto-setembro. No clima da ilha chove muito no meio do ano e depois para, então eu acho que a planta floresce e frutifica na época mais favorável, que é quando tem água”, continua Maurício. Já o registro de Jomar, que também flagrou o arbusto em flor (e com frutos já maduros), foi em setembro.
Ou seja, em todos os três achados, desde o do britânico no século 19 até os registros recentes, o arbusto estava em flor, o que talvez tenha sido essencial para chamar atenção dos pesquisadores. Esse é um dos possíveis motivos pelos quais a espécie tenha ficado “desaparecida” por tanto tempo, já que fora do período de floração, a C. insularis não se destaca muito na paisagem. Outras razões possíveis, de acordo com Maurício, é a própria dificuldade de acesso à Fernando de Noronha, em si, e, uma vez lá, os desafios de circular em meio ao relevo acidentado da ilha vulcânica. Além disso, o engenheiro ressalta que os focos majoritários das pesquisas em Noronha são voltados para o ambiente marinho e há pouca pesquisa sobre a parte terrestre e, menos ainda, sobre a vegetação insular.
O próprio gênero à qual pertence a insularis, que já foi alterado mais de uma vez desde sua descoberta, pode mudar mais uma vez, de acordo com achados morfológicos feitos pelos pesquisadores com base no exemplar coletado.
“Tem ainda outras questões, quem é o dispersor dessa planta? Será que é um pássaro nativo que já desapareceu? A gente não sabe. Como é um fruto carnoso [com uma polpa em volta da semente], a dispersão é por algum bicho. Será que a planta está sendo dispersa ou o fruto está só caindo no chão?”, questiona.
No Livro Vermelho da Flora do Brasil (2013), a planta – na época associada a outro gênero e batizada de Erithalis insularis – é classificada como Criticamente Ameaçada de Extinção e possivelmente extinta. Apesar do seu reaparecimento diante dos olhos da ciência, os pesquisadores mantém o alerta de ameaça sobre a espécie.
“A principal ameaça é a perda de habitat. A população em Noronha está crescendo e a pressão por espaços para construir também. Fora isso, a introdução de espécies exóticas é outro problema muito sério, para as espécies nativas da ilha em geral. A leucena [Leucaena leucocephala], por exemplo, é uma super invasora que já está por toda ilha. E outra coisa é a questão genética, esse é um estudo que deveria ser feito. Será que essa espécie se mantém com a base genética que ela tem? Será que já não existe um declínio? Porque são tão poucas e pequenas as populações, será que há viabilidade no longo prazo?”, alerta Maurício. “O ponto positivo é que pelo menos ela está dentro de uma unidade de conservação de proteção integral”, acrescenta, em referência ao Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha.
O pesquisador destaca que em relatos históricos de pessoas que passaram por Fernando de Noronha, como o naturalista Charles Darwin (1832) e o navegador Américo Vespúcio (1503), conta-se que a ilha era dominada por floresta. Maurício relembra que, durante o período em que foi um presídio, muita dessa vegetação nativa foi cortada, para evitar que os presos pudessem fazer canoas e fugir, e isso alterou completamente a paisagem da ilha. “O que a gente vê hoje são pequenas áreas em regeneração. Provavelmente essa planta deveria ter uma área de ocorrência muito maior, mas que foi diminuindo à medida em que o ambiente foi sendo degradado e ficou restrita na faixa costeira e onde a floresta é mais conservada. Porque se a espécie é plástica, pode estar na borda do mar e pode estar dentro da floresta, ela poderia estar em toda ilha, porque Noronha é basicamente isso, borda e floresta”.
A flora invisível de Noronha
A Chiococca insularis não é a única espécie da flora noronhense ameaçada de extinção. Por ser uma ilha relativamente pequena – são apenas 26 km², uma área menor que o Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro – todas espécies endêmicas da ilha (ou seja, que ocorrem só ali) têm uma área de distribuição super restrita e isso, por si só, já as coloca em patamar de vulnerabilidade, mesmo com a presença de duas unidades de conservação no território.
A situação da árvore Combretum rupicola, por exemplo, é ainda pior. A espécie é conhecida apenas em uma minúscula população no Morro do Francês, uma localidade fora do parque nacional, e é considerada Criticamente Ameaçada de Extinção. “Suspeita-se que ela não sobreviverá na natureza”, alerta o Livro Vermelho, que sugere que sejam realizadas com urgência ações de conservação ex situ, ou seja, fora do ambiente natural, como em jardins botânicos e em bancos de DNA.
“Estamos falando de uma das ilhas mais importantes e conhecidas do Brasil e não há nenhuma grande pesquisa de longo prazo, de monitoramento, na parte terrestre do território sobre a vegetação”, alerta Maurício. “Nós mesmos quando fomos fazer essa pesquisa, não achamos quase nada de referência de pesquisa anterior”, acrescenta Maurício.
Maurício reforça que conhecer e proteger a flora terrestre da ilha é essencial para garantir a conservação da própria fauna. “São coisas integradas, uma fauna saudável depende de uma flora saudável. Tem relações que às vezes ocorrem só entre uma planta e um animal da ilha, esses estudos precisam ser feitos, nós não sabemos. E a gente tem notado o avanço das espécies de plantas exóticas, principalmente a leucena, até dentro de pontos mais remotos da ilha, tomando o espaço das nativas”.
“E a botânica e a taxonomia são a base, se você não tem aquilo bem feito, você não consegue aplicações. A C. insularis, por exemplo, pode ser uma espécie importante para restaurar a vegetação nativa de Fernando de Noronha ou para desenvolver um medicamento, mas você precisa ter o estudo básico e descrição da botânica primeiro”, conclui o engenheiro florestal.
Fonte: O Eco
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