A repercussão dos ataques aos direitos indígenas sobre os investimentos internacionais no país e um novo olhar sobre o conceito de desenvolvimento são alguns dos temas da entrevista com Sônia Guajajara, coordenadora-executiva da Apib.
——Por Instituto Escolhas——-
A disputa de terras na Amazônia, as ameaças de grandes empreendimentos e a presença cada vez maior de indígenas – em especial, de mulheres indígenas – na política do país foram alguns dos temas do bate-papo de fevereiro do Instituto Escolhas. Para essa entrevista do mês, a convidada foi a coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara.
Formada em Letras e em Enfermagem, especialista em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão, Sônia foi candidata à Vice-Presidência do Brasil em 2018, na chapa de Guilherme Boulos, tornando-se a primeira pré-candidata indígena à presidência da República. Já participou de várias Conferências internacionais de Clima (COPs) e eventos internacionais, sempre levando a bandeira das causas indígenas, em especial a demarcação de terras e a defesa dos direitos humanos. Em 2020, foi eleita pelo grupo Latinos por la Tierra uma das 100 personalidades mais influentes da América Latina.
Em sua conversa com o Escolhas, Sônia falou da necessidade de trabalharmos para uma “sociedade de envolvimento” – em contraposição ao des-envolvimento – e da necessidade do movimento indígena estar cada vez mais articulado com diferentes setores da sociedade brasileira (movimentos ambientalistas, de direitos humanos e artistas). Esperançosa, acredita que um futuro diferente é possível e vê um aumento do número de pessoas interessadas na causa indígena. Segundo ela, essa pandemia trouxe um legado: “por mais que uns tenham mais condições do que outros, o vírus chegou para todo mundo. Então, todo mundo sentiu a mesma dor. Apesar de todos os prejuízos, tantas perdas, as pessoas puderam repensar seu modo de vida e, principalmente, a sua solidariedade”.
Leia a entrevista completa abaixo.
ESCOLHAS – O desenvolvimento do Brasil é um dos argumentos usados para justificar grandes obras, como hidrelétricas ou atividades de mineração, apesar das ameaças ao meio ambiente e à vida das pessoas. O conceito de desenvolvimento é amplo, mas, especialmente em um país altamente desigual como o Brasil, ele muitas vezes se confunde com crescimento econômico. Assim, como você entende que deveria ser o desenvolvimento justo para o Brasil?
SÔNIA – Acho que a primeira coisa aqui é avaliar o conceito de desenvolvimento. Desenvolvimento, quando vem do interesse político econômico, está totalmente alinhado com a intenção de deixar de envolver. Quando fazemos uma análise, no sentido conceitual da palavra, desequilíbrio é o contrário de equilíbrio; descuidar é o contrário de cuidar; desproteger, de proteger; e, quando você chega em desenvolver… aí é bom? Não é. Desenvolver segue o mesmo conceito das outras palavras nessa mesma linha, de [se transformar em algo negativo] quando acrescenta o “des”, mas que a gente acabou concebendo como uma coisa boa.
Para nós, é totalmente contraditório falar em desenvolvimento. Nós não queremos deixar de envolver. Nós queremos um mundo cada vez mais envolvido, envolvido com a proteção ambiental e a inclusão social. Queremos um crescimento econômico que chegue para todo mundo. É um projeto de envolvimento que nós temos, mas a forma como as coisas são feitas hoje tratam o desenvolvimento a partir da destruição. Afinal, está no conceito da palavra, não é?
Então, o que acho é que a palavra desenvolvimento precisa ser mudada. Nós precisamos discutir um novo projeto de envolvimento que garanta a proteção ambiental e a justiça social. Aí, sim, nós estamos falando de um bem-viver, que não é o contrário de um desenvolvimento econômico. Estou falando do bem-viver que pensa nas pessoas, pensa no equilíbrio econômico, na participação e no acesso, seja com políticas públicas, seja com políticas sociais. O bem-viver é isso: pensar na igualdade, na fraternidade, na solidariedade e na empatia. O que nós pensamos para o cenário de desenvolvimento não é nada do que está aí hoje: é um novo projeto de um outro mundo possível, como já diz o Fórum Social Mundial.
ESCOLHAS – Você acredita que esse outro mundo é realmente possível de ser atingido? Se sim, como?
SÔNIA – Eu estou achando que essa pandemia vai deixar um legado, sabe? Embora não seja uma totalidade, eu acredito muito que uma das lições aprendidas nessa pandemia foi as pessoas pararem para terem tempo: tempo de olhar para si mesmas, para o que estão fazendo e começar também a olhar para a dor do outro. É que todo mundo sentiu igual. Por mais que uns tenham mais condições do que outros, o vírus chegou para todo mundo. Então, todo mundo sentiu a mesma dor. Acho que isso fez com que essas pessoas pudessem olhar um pouco mais para seu próximo. Também… não é possível chegar uma pandemia dessa, avassaladora dessa forma, e não deixar nada de bom, né? Então, eu acho que, apesar de todos os prejuízos, tantas perdas, as pessoas puderam repensar seu modo de vida e, principalmente, a sua solidariedade.
Mas toda essa transformação que a gente quer só vai acontecer com a mudança de comportamento das pessoas. Não é o mundo que vai mudar, não é o governo sozinho que vai mudar. É uma questão de comportamento, uma mudança comportamental na humanidade e que se faz urgente. Assim como a vacina tem um princípio ativo que vai impedir o vírus de prosperar, o mundo está precisando de uma vacina com o princípio ativo da coletividade. E precisa ser urgente, para que a gente possa tratar a humanidade e assim curar a Mãe Terra. É preciso [haver] uma nova consciência política, ecológica e solidária das pessoas. É difícil, mas eu acho que tem aí um momento de transição que a gente está vivendo agora, que pode possibilitar às pessoas olhar com mais cuidado o seu futuro.
ESCOLHAS – Pensando especificamente na economia da Amazônia, vários especialistas defendem o fortalecimento de iniciativas locais, seja de agricultura familiar ou agroextrativismo, como forma de desenvolver incentivar a economia da região, gerar renda e proteger meios de vida e a floresta. Esse é realmente um caminho? Se sim, o que podemos fazer para promovê-lo?
SÔNIA – Eu acredito que é necessário fazer um investimento regional. Da forma como acontecem hoje, as políticas de investimento do governo – os subsídios – beneficiam apenas os grandes, as grandes empresas. É preciso que esse investimento primeiro valorize iniciativas locais, mesmo as de coleta ou de extração sustentáveis, mas que são vistas como pouco, que não geram lucro. Por isso, os governos desconsideram essas práticas de conhecimento tradicional.
O que importa é a empresa chegar, arrasar com tudo, trazer máquina do progresso e já destruir, porque o desenvolvimento tem esse sinônimo de desmatamento e destruição. Eles não conseguem aproveitar o que têm da natureza viva, a floresta em pé. Não conseguem ver isso como desenvolvimento porque são práticas diferentes: uma que só visa o lucro e a outra que visa o equilíbrio socioambiental.
Precisa ter um investimento para pesquisadores regionais, para valorizar o conhecimento tradicional, assim como um investimento para a adoção da produção da agricultura familiar – que prima pela agroecologia, pela economia solidária. Então, é preciso mudar, ter alguém que tenha essa outra visão. Tem que ter pessoas que tenham esse papel político, de fazer esse outro investimento.
ESCOLHAS – Enquanto essa mudança não acontece, como podemos lidar com as atividades ilegais que hoje ocorrem na Amazônia, inclusive dentro de Terras Indígenas, como a grilagem de terras, o desmatamento ou a retirada de minérios e madeira? Que ações são necessárias para coibir esse tipo de atividade?
SÔNIA – Olha, nós estamos vivendo um dos momentos assim mais graves de toda nossa história, considerando a democratização e a nova Constituição, onde, escancaradamente, um governo se declara inimigo dos povos indígenas, negando a demarcação dos territórios indígenas, que é um direito constitucional. O Território Indígena é um direito originário e a Constituição escreveu e reconheceu isso. Com essa negação da demarcação, aumentou muito o número de invasões, o número de ataques e o esbulho dos territórios, com as pessoas se sentindo respaldadas a praticar essas invasões, pelo próprio discurso do Governo Federal.
Em 2019, houve essa tentativa de aprovar a Medida Provisória 970, que tratava de grilagem de terra. Ou seja, legalizava as invasões. O movimento indígena assumiu ali uma frente diferente, com muita incidência de articulação, mobilização da sociedade e das entidades de apoio, como o movimento ambientalista. A gente conseguiu vetar essa votação no Congresso, mas antes da gente respirar, eles apresentaram uma nova proposta, já como projeto de lei (o PL 2633), com o mesmo conteúdo, que é o de “regularizar terras públicas”, como eles estão falando. O que estavam fazendo ali – o que eles estão fazendo, já que o PL anda existe, só está fora da pauta temporariamente1 – era tentar premiar os invasores e ainda contribuir para estimular as invasões: o cara está de fora, olha e percebe que é possível que haja uma titularização para que quem comprovar que está na terra e que já fez alguma benfeitoria. Então, todo mundo corre para lá, ocupa o lote, bota um trator lá dentro, faz um curral e aí pronto: fez uma feitoria. Ele vai ser premiado e vai ter um título de posse. Isso é muito grave.
Dentro dessas terras públicas, que estão sobretudo na Amazônia, existem mais ou menos 70 milhões de hectares, incluindo terras indígenas, unidades de conservação, áreas protegidas, regiões de quilombolas e uma boa parte que é área não-destinada. Mesmo as terras indígenas que estão dentro desse total são áreas que são não-regularizadas e que correm o risco de serem regularizadas ao inverso, para beneficiar quem invadiu e não quem está pedindo o reconhecimento de território tradicional. Então, o que temos que fazer é enfrentar essas medidas no Congresso Nacional. Acaba que isso não é só um problema ambiental, é um problema humanitário e as pessoas, incluindo a imprensa, precisam entender qual a sua parcela de responsabilidade nessa luta, que, na verdade, é uma luta pela vida.
ESCOLHAS – Recentemente, tem se discutido muito a questão da liberação da mineração, em especial na Amazônia. Como o movimento indígena tem se posicionado frente à exploração mineral, seja ela legalizada ou não, dentro dos territórios?
SÔNIA – O movimento indígena tem uma posição clara: nós somos totalmente contrários em relação à exploração mineral, seja ela de qualquer tipo, de mineração ou garimpo. A história já mostrou que não há benefícios para ninguém e nem para o meio ambiente e a gente tem se posicionado fortemente contra. Todo esse travamento que está ali, com pautas travadas no Congresso há mais de 20 anos, aconteceu por conta da luta dos povos indígenas. Nós estamos acompanhando, monitorando, articulando com parlamentares. A nossa consciência não deixa legalizar uma atividade que vai ser prejudicial para todo o mundo.
Quem que se beneficia com esses minérios? Somente as grandes empresas. No garimpo, o que fica para o garimpeiro é a doença, é o afastamento da família. Os que ficaram ricos não conseguiram manter essa riqueza por muito tempo e a maioria deles foi definhando ao longo dos anos. E a mineração deixou o que nos territórios? Rastros de destruição e um grande buraco na terra. Aí, vem junto o alcoolismo, a prostituição, o tráfico de drogas e a corrupção. Essas consequências são mais do que comprovadas e isso sem contar a mudança, o impacto no modo de vida. Toda essa chegada de pessoas e de recursos alteram o modo de vida. E, quando você pensa na mineração de empresas, triplica todos esses prejuízos, como os deixados pela Vale e pelas aliadas da Vale.
As empresas vêm com esse interesse de fazer pesquisa e de explorar. Eles não vêm com interesse de partilhar lucros, como eles falam no PL [PL 191/20, que trata da liberação da mineração em terras indígenas]. O que fica para os indígenas, nesse caso, é o trabalho braçal, o trabalho escravo e a mão-de-obra barata; e nada fica na região. O próprio estudo do Escolhas2 mostrou que o impacto [socioeconômico] da mineração é temporário. O único impacto persistente é o de trabalho e renda, mas é tudo ilusório. Chega como uma falácia, com uma promessa boa, mas é tudo passageiro, é rápido. As empresas vão e o povo continua na miséria, senão pior do que antes. Essa questão da tentativa de legalizar a exploração de minério, que está no Congresso Nacional, passa a ideia de que “agora pode explorar porque agora é legal”, mas é uma legalização imoral, porque vai continuar trazendo somente danos, prejuízos ao povo e ao meio ambiente.
ESCOLHAS – A construção de hidrelétricas na Amazônia é outro assunto polêmico e você foi uma das grandes vozes contra a usina de Belo Monte. Que ensinamentos te trouxe esse processo?
SÔNIA – Belo Monte foi uma luta grande e uma luta editada de outro governo. Em um governo de direita a gente conseguiu vetar a construção de Belo Monte e num governo de esquerda a gente não conseguiu. A obra foi feita e foi finalizada como um grande fenômeno do governo do PT. Isso nos entristece muito. As consequências de Belo Monte estão muito claras e ali foi uma luta que foi internacionalizada. A gente conseguiu transpor fronteiras e oceanos com a defesa da não-construção de Belo Monte, porque a gente sabia que o prejuízo seria imensurável e que o benefício para a produção de energia não ia ser como estava sendo anunciado.
Belo Monte foi uma das grandes lutas do movimento indígena, junto com outros que também estavam junto. Infelizmente, a gente foi derrotado porque construíram, mas funcionou como um grande impulsionamento para a gente seguir a luta, que a gente sabe que não é fácil e que a gente precisa sempre articular mais e mobilizar mais, engajar mais pessoas. Nós temos muita força, o povo tem muita força. A gente não consegue ter dimensão da força que a gente tem perante os governos, mas a gente fica com esse aprendizado de que é preciso sensibilizar, conscientizar mais pessoas contra esses empreendimentos dados como progresso, mas que, na verdade, não deixam nada para as pessoas. Belo Monte foi realmente uma das minhas primeiras grandes batalhas, mas que não me fez esmorecer, não me fez perder o ânimo, porque ali ficou dito que teria muita luta pela frente e enfrentar o governo Bolsonaro é um desses grandes desafios.
ESCOLHAS – A partir desse e de outros projetos, é possível tirar algum aprendizado do que se deve levar em conta no processo de aprovação de grandes empreendimentos?
SÔNIA – Primeiro, é tentar impedir que esses projetos cheguem. Nós temos que lutar, enfrentar medidas legislativas, travar no Congresso, impedir a aprovação, confrontar o governo, denunciar nas instâncias internacionais, como a gente está fazendo agora no Tribunal de Haia e já fizemos na OEA [Organização dos Estados Americanos]. Temos em que continuar denunciando esse desmonte e todos esses ataques – porque são ataques – ao meio ambiente e à vida das pessoas. Falar de adaptação ou de redução de danos é muito complicado para nós. Os programas de compensação podem até reservar um dinheiro para as pessoas na tentativa de reparar, mas como é que vai comprar uma arara-azul se ela se acabar? E um pé de árvore se ela for derrubada? Árvores seculares, animais, água, tudo isso não se compra. Muita gente até tem essa ideia de que se compra água mineral no supermercado e resolve, mas ela vem de algum lugar. Ela vem das nascentes, ela vem dos mananciais e que muitos deles estão dentro desses territórios que nós estamos fazendo a luta política para que eles continuem lá.
Um outro grande risco que a gente está vivendo agora é o da agriculturação. Existe essa intenção do governo de implantar o agronegócio dentro dos territórios indígenas e, para isso, ele está cooptando lideranças indígenas para aprovar o seu projeto político. Esse também é um grande desafio para nós: conscientizar as lideranças de que as promessas do governo são passageiras e de que a intenção é destruir, acabar com a demarcação de terras indígenas e utilizar todas essas terras para a produção, para resolver a economia do país. Para isso, eles dizem que está previsto na Constituição que, quando for comprovado como relevante para a União, o Congresso tem que autorizar [o uso dessas terras], só que eles só estão considerando como relevante o interesse próprio, o que eles podem tirar disso nos acordos com seus aliados empresariais. Então, nós precisamos ter muito esse trabalho de base de conversar, de conscientizar, de mostrar para os parentes que o governo nunca traz nada de graça para a gente, que tudo tem um custo.
ESCOLHAS – A pressão internacional, seja pela mídia ou pelos governos, tem estado bastante presente na causa indígena, especialmente agora, com o aumento do desmatamento, das queimadas e dos ataques. Há vários anos você participa de Conferências do Clima e de outros eventos internacionais. Assim, você acredita que essa pressão externa tem sido importante para amenizar os problemas internos – isso mesmo com um governo que se mostra tão combativo às críticas externas?
SÔNIA – Olha, por mais que o governo finja que não, ele se incomoda e se incomoda bem. Com isso, um dos nossos objetivos está, sim, sendo alcançado, porque nós temos que incomodar, temos que abalar a estrutura do Estado, mostrar o que realmente está errado, o que está ruim e o que tem prejudicado a vida no planeta, porque Bolsonaro não é mais um problema do Brasil, não é mais o problema dos povos indígenas. Bolsonaro se tornou um problema mundial. Então, há a responsabilidade dos outros países de se manifestarem e pressionarem.
Nós temos aqui a Amazônia brasileira, que é a maior floresta tropical do mundo. É o lugar onde tem um dos maiores reservatórios de água doce. Nós não podemos deixar um presidente alienado, transtornado, fazer o que ele quer. A sociedade tem que agir e nós temos que pedir um apoio, nacional e internacional, para as pessoas também reagirem. Nos últimos anos, são vários os exemplos de articulações que a gente fez, seja nas estruturas formais, como OEA, além de articulações com outros setores também, com empresas e afins.
Em 2019, nós realizamos pela Europa a jornada “Sangue Indígena, Nenhuma Gota a Mais”. Esse tema era exatamente isso: denunciar a violação dos direitos humanos e o impacto ambiental. Com tantas mortes de indígenas, era o momento de dar um basta a toda essa violência. Por isso, na Europa, a gente fez conversas com representantes de empresas que compram produtos no Brasil, que financiam empresários aqui ou que produzem diretamente aqui, gerando vários resultados reais.
ESCOLHAS – E como foi a recepção?
SÔNIA – Durante essa jornada, nós conversamos com muitas empresas: de mercado, de frigorífico, de ouro, de celular, sempre perguntando se eles sabiam sobre o impacto que as empresas deles estavam causando aqui para os povos indígenas e para o meio ambiente. Aí, eles falavam que os produtos deles eram certificados, que era tudo legalizado. E a gente perguntava “por quem? Quem está legalizando esse produto e quais são os critérios adotados para ter esse selo, esse certificado?”, e eu dizia também que o fato de ser legalizado não quer dizer que está diminuindo esse impacto negativo. “É preciso saber o caminho da produção de vocês, de onde está produzindo, até onde chega o recurso”. A gente também conversou com os parlamentares da União Europeia, falando da importância dos países criarem uma lei de rastreamento das suas empresas e exigirem delas o cumprimento dos princípios ambientais e dos direitos humanos e dos povos indígenas.
Como um dos resultados, dois meses depois que a gente voltou da jornada, a gente conseguiu paralisar uma empresa do ramo imobiliário que queria construir um resort na Bahia, em uma Terra do povo tupinambá. Era uma empresa portuguesa. Na época da jornada fomos em Portugal e deixamos lá uma denúncia que a gente protocolou no Ministério Público aqui no Brasil e na Procuradoria-Geral da República. Teve muita luta. Os Tupinambá foram a Brasília, foi uma articulação grande que precisou ser feita, mas dois meses depois, mais ou menos, a imobiliária desistiu da construção.
Outro resultado dessa viagem foi a votação da medida provisória e do Projeto de Lei 2633, que é essa da grilagem. A gente fez muita mobilização, muita pressão com artistas, mas o que barrou mesmo foi uma carta que veio de uma rede de empresários da União Europeia para o Rodrigo Maia, dizendo que se eles continuassem insistindo em leis que promovam a destruição ambiental, eles não iriam mais fazer negócios com Brasil. Foi direto para o presidente da Câmara e essa articulação que a gente fez com as empresas fez com que o projeto de lei fosse tirado da pauta e foi guardado na gaveta, para em algum momento ele voltar.
ESCOLHAS – A demarcação e a defesa das terras indígenas sempre foi uma luta antiga, mas que agora parece que tem sido ainda mais desafiante, com o aumento de casos de ataques a lideranças, enfraquecimento da Funai e de outros órgãos de proteção. Como você enxerga a luta pelas causas indígenas e pela própria causa ambiental hoje? O que mudou nos últimos anos e quais são os principais desafios atualmente?
SÔNIA – A luta só fica intensa a cada dia, porque nenhum governo nunca teve como prioridade a causa indígena ou a causa ambiental. Inclusive, vi nas disputas eleitorais que a questão ambiental é sempre secundarizada, nunca uma pauta prioritária. Em 2018, quando eu fui candidata à vice-presidência da República, a gente conseguiu trazer a pauta ambiental e a pauta indígena para o centro do debate político. A nossa chapa do PSOL colocou a questão ambiental como prioridade e os outros tiveram a obrigação de falar sobre o assunto. Veio a questão do desenvolvimento e o não querer se indispor com os empresários. Uns ficaram em cima do muro, outros assumiram uma posição mais radical, de “o que importa é o capital, a produção e questão econômica”.
Hoje, o movimento indígena tem como uma prioridade fazer essa incidência política; fortalecer candidaturas de indígenas, candidaturas de mulheres indígenas, nas instâncias municipal, estadual e federal. A minha candidatura já foi resultado dessa articulação. Na eleição de 2018, a gente conseguiu articular 130 candidaturas indígenas em todo o país. Como resultado, a gente conseguiu a vitória da Joênia Wapichana, como deputada federal no Congresso Nacional, e da Chirley Pankará, deputada estadual em São Paulo, compondo a bancada ativista. Só aqui são duas mulheres eleitas e, pela primeira vez na história, tivemos uma indígena, uma mulher indígena, compondo uma chapa presidencial, o que foi bem significativo. Para nós, não importou tanto o resultado eleitoral. A gente conseguiu trazer a questão indígena para um maior número de pessoas. Muitas pessoas despertaram para conhecer, para entender mais, e a gente conseguiu várias articulações. Até hoje, a gente ainda colhe os resultados dessa campanha.
Ano passado, em 2020, em plena pandemia, a gente conseguiu mais de 2000 candidaturas indígenas em todo Brasil e tivemos um número de mais de 200 indígenas eleitos. Desses, nós ocupamos dez prefeituras, 11 vice-prefeituras e tivemos 44 mulheres vereadoras. Nós estamos aqui para fazer diferente e mostrar a Terra como a Mãe Terra, esse bem sagrado, que precisa de cuidado, que dá o sustento e que garante a vida. Desde a chegada dos invasores da Europa, qualquer plano de desenvolvimento nacional, de crescimento econômico, sempre teve como base o extermínio e a expulsão dos povos indígenas, porque eram entraves. Isso não mudou muito. O desafio só cresce e agora é como se a gente voltasse de novo para o início, de retomar a briga pela demarcação dos territórios, que, para nós, é a bandeira de luta maior e principal dos povos indígenas.
ESCOLHAS – A sua candidatura à presidência da República, a eleição das deputadas Joenia Wapichana e Chirley Pankará (que você acabou de citar) mais outros fatos, como a Primeira Marcha das Mulheres Indígenas, de 2019, mostram um caminho de maior representatividade indígena dentro da política brasileira e, aparentemente, uma presença maior das mulheres dentro da causa indígena. Essas são, realmente, objetivos dentro do movimento indígena?
SÔNIA – A mulher indígena sempre teve um papel importante na sociedade indígena. Seja aquela que está na roça, seja aquela que está na escola como educadora, seja na saúde, seja a que está em casa como mãe, a mulher indígena sempre é a que orienta as decisões. Embora ela nem sempre teve o direito de falar nas reuniões, a mulher indígena sempre orientou as decisões, de qualquer povo. Nos últimos tempos, nós começamos a ter mais visibilidade porque muitas mulheres começaram a ocupar funções, papéis, para além das aldeias. Nos últimos cinco anos, a gente tem conseguido dar um salto de participação de mulheres indígenas nos diferentes espaços, seja das organizações indígenas, seja em espaços de controle social, dentro das universidades, em órgãos públicos.
Essa é a primeira gestão de uma mulher indígena à frente da Coiab, que é a Coordenação das Organizações Indígenas do Brasil: é a Nara Baré, que a gente fala que é a primeira mulher a comandar a Amazônia indígena brasileira. Isso foi fruto de uma luta, de uma articulação nossa, de 10 anos. Eu fui da coordenação da Coiab como vice-coordenadora e fiquei trabalhando duro para articular as mulheres, para poder colocar uma que pudesse assumir esse lugar. No Pará, nós temos uma mulher à frente da organização indígena do estado: a Puyr Tembé, que foi eleita agora. Ali já estava uma mulher, agora conseguimos colocar outra. De uma coordenação de oito pessoas, seis são mulheres. Aqui no Maranhão, de quatro pessoas, duas são mulheres e dois, homens. Na gestão passada, eram três mulheres e um homem, sendo que homem era o secretário, função que por muito tempo era dada às mulheres. Eu assumi a coordenação executiva da Apib; a Joênia é deputada federal; a Chirley Pankará, deputada estadual por São Paulo, e temos tantas outras mulheres que estão assumindo seu lugar.
Em 2019, nós realizamos a Primeira Marcha das Mulheres Indígenas. Foi um chamado que nós fizemos para que as mulheres pudessem participar de forma direta, em contato com outras mulheres e ali elas começaram a enxergar novas possibilidades. Cada mulher que veio na marcha voltou dizendo que nunca mais seria a mesma. Essa foi a primeira marcha das mulheres indígenas no Brasil e a primeira marcha das mulheres indígenas do mundo e que está sendo um exemplo para várias mulheres indígenas do mundo inteiro. Aos poucos, a gente vem desconstruindo essa ideia de que a mulher tem que ficar lá, guardada ou somente orientando. A gente saiu da janela, passou pela porta da frente e está lá no palco. E que a gente tem que ir, protagonizar cada vez mais.
ESCOLHAS – Atualmente, estamos vendo o movimento indígena ganhar visibilidade e receber o apoio de cada vez mais pessoas, incluindo muitas personalidades. Você sente que essa mudança está realmente acontecendo, que as pessoas estão se conectando mais nesta causa que, como você diz, não é uma luta somente indígena, mas uma luta pelo planeta?
SÔNIA –Eu acho que está tendo uma mudança real, aumentando a adesão de pessoas que estão se interessando mais pela causa indígena e, nesses últimos anos, isso tem sido mostrado de forma bastante evidente. Um exemplo é essa relação que existe com os artistas. Durante muito tempo, os artistas pareciam pessoas inalcançáveis, que existiam na televisão e que ninguém nunca conseguia chegar perto, mas a gente conseguiu fortalecer muito essa relação, porque a fala deles tem uma força impactante, de grande dimensão.
A live “Maracá – emergência indígena”, que a gente realizou ano passado para arrecadar recursos para a ação emergencial da Apib, trouxe mais de 230 artistas, que vieram falar na nossa live, e muitos ajudaram mesmo a construir a live. Teve especialista da saúde, não-indígena, médicos renomados, antropólogos e ambientalistas. Aliás, mesmo os ambientalistas por muito tempo faziam uma luta separada. Era a luta ambiental lá, sem nada a ver com indígena e isso também foi um ganho. Eu sempre dizia: “tem que parar de pensar só em bichos e árvore e pensar em gente”. Hoje, com a maioria das entidades ambientais, muitas que eram radicais e que ficavam só com meio ambiente, a gente tem uma relação muito boa.
Então, eu pergunto “até que ponto toda essa violência, essa destruição, não vai mexer com a sua sensibilidade?”. A pessoa tem que entender, tem que compreender a causa e o papel dos Territórios Indígenas. Quando você pega outras terras públicas e compara com terras indígenas, comprovadamente as terras indígenas são as mais preservadas – e não são só porque são demarcadas. Elas estão preservadas porque a presença indígena, com o seu modo de vida, preserva. É uma relação de cuidado e respeito e não de destruição. Nós, indígenas, somos hoje no mundo inteiro 5% da população mundial. E juntos esse 5% consegue preservar 82% da biodiversidade. Se nós, indígenas, formos destruídos, o modo de vida, a cultura e a biodiversidade também vão estar ameaçados. E se essa biodiversidade também está em risco, o mundo inteiro está em risco e população inteira está em risco, o planeta está em risco. Se a pessoa fizer essa conta, ela consegue entender qual o seu lugar na luta.
ESCOLHAS – O que podemos esperar do movimento indígena para este ano?
SÔNIA – Fortalecer ainda mais o papel das mulheres indígenas, aumentar a representação indígena na política brasileira, continuar a pressão internacional e o trabalho com artistas. Tudo isso são planos para este ano, mas o principal é conter essa pandemia e estimular os parentes a tomarem a vacina, para conseguir reduzir o número de mortes e de internações. Hoje, há uma campanha muito grande para os indígenas não tomarem a vacina, com muitas mentiras, muitas fake news, de cunho religioso ou político. São mensagens que estão sendo divulgadas nos territórios e que estão causando medo, pânico, dúvida nas pessoas e que, por isso, estão rejeitando a vacina.
Também é preciso continuar pressionando o governo para poder vacinar todo mundo, já que ele está querendo vacinar somente os indígenas que estão nas aldeias, nos territórios. O próprio governo, que nega a demarcação, agora quer vacinar só quem está dentro das aldeias. Isso restringe a população indígena à metade. A gente precisa continuar essa pressão contra o governo, tanto para garantir vacina para todo o mundo, como para não ficar negando identidades, pregando o integracionismo.
Então, a prioridade agora é conter essa pandemia. Fora isso, vamos seguir nessa luta pela nossa vida. Hoje é muito mais do que lutar por direito, é uma luta mesmo pela vida, pela nossa vida, e é por isso que fica esse chamado para as pessoas: para que entendam a luta indígena como uma luta sua também, porque, afinal de contas, a luta pela mãe Terra continua sendo a mãe de todas as lutas.
Fonte: Instituto Escolhas
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