Paredões de 50 metros de altura cercam uma vasta planície no interior dos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Há cerca de 550 milhões de anos, quando a América do Sul, a África e a Antártida ainda estavam ligadas entre si, ali havia um mar interno, sem conexões com um oceano. Sua área de cerca de 350 mil quilômetros quadrados (ver Pesquisa FAPESP no 220) era similar à do mar Cáspio, igualmente fechado, entre a Rússia, o Azerbaijão e o Irã.
A bacia sedimentar do São Francisco, onde ficava o chamado mar de Bambuí, tinha uma peculiaridade: a água salgada liberava gás metano, um dos responsáveis pela elevação da temperatura global, de acordo com estudos de geólogos das universidades de São Paulo (USP) e Federal de Minas Gerais (UFMG). Os pesquisadores cogitam que o metano, ao chegar à atmosfera, possa ter contribuído para amenizar o clima do planeta, reduzir a intensidade das glaciações e favorecer a diversificação de formas de vida entre 540 milhões e 520 milhões de anos atrás, com o surgimento de moluscos, esponjas, equinodermas e artrópodes. Eles, no entanto, ainda não estimaram o volume de gás liberado nem o quanto teria sido necessário para modificar o clima terrestre, informações importantes para fortalecer essa hipótese.
O geólogo Sergio Caetano-Filho, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, chegou a essa hipótese após examinar 520 amostras de rochas calcárias e 198 de material orgânico extraídas em outubro de 2017 de pedreiras de Januária, norte de Minas, e Santa Maria da Vitória, sul da Bahia, às quais se somaram informações de materiais similares extraídos de um poço de petróleo e de um furo de sondagem na região do município mineiro de Arcos. Esse trabalho é parte de seu doutorado, defendido no início de novembro deste ano. Concluídas em 2019, as análises registraram um predomínio da forma mais pesada do carbono, o isótopo 13 (13C), em comparação com o isótopo 12 (12C), em uma proporção até 15 vezes maior que a encontrada em rochas como as do grupo Corumbá, na região do Pantanal.
Segundo Caetano-Filho, o excesso de 13C pode resultar da atividade de um grupo de microrganismos primitivos, as Archaeas, que transformam matéria orgânica em gás carbônico (CO2) e metano (CH4). Em consequência, pode ter se formado um ambiente hostil para outros seres vivos, pobre em oxigênio e rico em enxofre, na forma de gás sulfídrico, muito tóxico para os seres vivos. Segundo ele, as rochas das bordas do antigo mar de Bambuí ainda exalam um odor de ovo podre, característico do gás sulfídrico. Essa composição explicaria a escassez de fósseis marinhos incrustados nas rochas do mar de Bambuí – nas rochas similares do grupo Corumbá, diferentemente, os fósseis marinhos são comuns. Ele e outros colegas da USP e de universidades de Minas Gerais e de Paris detalharam os resultados em um artigo publicado em abril na revista científica Geoscience Frontiers.
“O fato de o mar de Bambuí provavelmente ser um ambiente tóxico para os seres vivos explica a extrema escassez de fósseis na região”, diz Marly Babinski, do IGc-USP e orientadora do doutorado de Caetano-Filho. Ela identificou o predomínio das formas mais pesadas de carbono em seu próprio doutorado, há 30 anos, atribuindo-o inicialmente ao acúmulo de matéria orgânica, uma hipótese que não se sustentou.
“O mar de Bambuí não deve ter sido um caso isolado”, sugere Caetano-Filho, “porque existem outros mares fechados com a mesma idade geológica e sinais geoquímicos muito semelhantes”. Seria o caso, segundo ele, da bacia do Irecê, na Bahia, que integra a mesma unidade geológica, o cráton São Francisco, e da formação Hüttenberg, na Namíbia, sul da África, que poderiam reforçar a liberação de metano para a atmosfera.
Se a hipótese se mostrar correta, talvez esses mares fechados tenham sido a fonte de metano que ajudou a elevar a temperatura e a reduzir o impacto das glaciações. Além da maior oferta de oxigênio e nutrientes, a temperatura mais alta que nas épocas frias dos períodos geológicos anteriores pode ter contribuído para a gradual diversificação de formas de vida.
“Não existem análogos modernos ao mar de Bambuí, o que dificulta muito as análises”, diz o geólogo Gabriel Uhlein, da UFMG. Em estudo publicado em setembro na revista Precambrian Research, Uhlein argumenta que a erosão dos terrenos elevados nas margens do mar de Bambuí pode ter contribuído para o excesso de 13C nas águas; além disso, sedimentos de rios extintos poderiam ter alimentado o mar com carbonato, que pode formar metano ao se decompor. A seu ver, a liberação de metano deve ter tido um efeito local.
“Como Bambuí é uma bacia pequena, em comparação com as dimensões da Terra, ainda é incerto se poderia ter liberado metano em volume suficiente para interferir no clima global”, diz ele. Caetano-Filho contra-argumenta: “O mar de Bambuí provavelmente foi maior, antes de ser empurrado por montanhas e se isolar. E, se outras bacias também passaram por uma fase de produção intensa de metano, o impacto sobre a atmosfera pode ter sido considerável”.
Desde 2019, Uhlein e sua equipe têm coletado rochas orgânicas, calcários formados por cianobactérias, cristais de sal e outros sinais de variação de maré nos paredões rochosos de Januária e de Ubaí, no norte de Minas Gerais. Os achados levantam outras dúvidas: “Ou havia conexões do mar de Bambuí com o oceano que ainda não descobrimos ou a relação gravitacional entre a Terra e a Lua, que causa as marés, era diferente há 550 milhões de anos, resultando em marés mais altas que as atuais dos grandes mares continentais, como o Cáspio”.
“A distância entre a Lua e a Terra varia constantemente e era diferente meio bilhão de anos atrás”, comenta o geofísico Eder Molina, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. “Atualmente”, ele acrescenta, “a Lua se afasta da Terra a 3,8 cm por ano, aproximadamente.” Há 400 milhões de anos, a Lua girava mais rápido e estaria a uma distância da Terra 40% menor que a atual. Nesse caso, a maré subiria mais do que hoje e o mês – definido como o tempo necessário para a Lua realizar uma volta completa em torno da Terra – teria apenas nove dias.
Fonte: FAPESP
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