Caso que ficou famoso pelo Brasil de fazendeiro acusado de um chocante desmatamento químico no Pantanal recebeu financiamento milionário do Banco do Brasil
Resumo da notícia
Um fazendeiro do Pantanal, Claudecy Oliveira Lemes, foi multado em R$ 2,8 bilhões por suposto uso ilegal de agrotóxicos, incluindo o componente do “agente laranja”, em suas propriedades.
As investigações revelaram que ele obteve financiamentos milionários do Banco do Brasil, mesmo com um histórico de infrações ambientais. Os empréstimos foram concedidos antes de uma nova resolução que proíbe financiamento a propriedades com embargos ambientais.
Além disso, a falta de uma lista nacional de embargos ambientais centralizada pelo Ibama e outras lacunas legais foram destacadas como fatores que facilitam a ocorrência de desmatamentos ilegais.
Autoridades e especialistas estão pressionando por uma fiscalização mais rigorosa e melhor rastreabilidade dos recursos financiados para evitar danos futuros ao meio ambiente.
Recentemente, um caso notório de crime ambiental ganhou destaque nacional. A Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT) aplicou uma multa de aproximadamente R$ 2,8 bilhões a um fazendeiro do Pantanal por uso suspeito de agrotóxicos, incluindo o 2,4-D, um ingrediente do “agente laranja” empregado pelos EUA na Guerra do Vietnã. Estima-se que o fazendeiro tenha desembolsado ao menos R$ 25 milhões na aquisição desses pesticidas entre 2021 e 2023. O objetivo era desfolhar vegetação nativa, prática conhecida como “desmate químico”.
Até então, não era conhecido como lacunas na legislação sobre o crédito rural bilionário no Brasil permitiram que o Banco do Brasil, uma das principais instituições financeiras do país, fornecesse empréstimos substanciais ao fazendeiro. Este já possuía um histórico de multas ambientais de grande valor por desmatamento ilegal. Essas lacunas, de acordo com especialistas, só começaram a ser corrigidas no último ano, mas podem ter financiado danos ambientais em várias regiões do Brasil ao longo dos anos.
Dados levantados pela ONG Greenpeace Brasil, através de fontes públicas, revelam que, entre 2021 e 2022, o fazendeiro Claudecy Oliveira Lemes conseguiu R$ 10,07 milhões em empréstimos de crédito rural pelo Banco do Brasil. Ele é o fazendeiro que, conforme a Sema-MT, utilizou pelo menos 25 tipos diferentes de agrotóxicos em suas propriedades no Pantanal, conforme reportado no programa “Fantástico” da TV Globo, em 15/4. O crédito rural é um tipo de financiamento que beneficia de juros reduzidos pelo governo.
A defesa de Claudecy Oliveira Lemes, em comunicado, contesta a forma como as multas ambientais foram impostas, afirmando que ainda não existe acusação formal nem condenação, e que os empréstimos obtidos não têm relação com as investigações sobre o suposto uso de agrotóxicos em suas terras. Na declaração, os advogados de Lemes não confirmaram se ele usou o componente do agente laranja em suas fazendas, atribuindo a degradação das áreas a incêndios locais.
Consultado, o Banco do Brasil declarou que não comenta “casos específicos em respeito ao sigilo bancário”. A instituição também afirmou que “adota medidas proativas e voluntárias que cumprem todas as legislações e regulamentações pertinentes”, assegurando estar “confiante na conformidade de seus processos de concessão de crédito”.
Na época em que foram concedidos os empréstimos, em 2021, Lemes já estava sendo investigado em pelo menos três inquéritos civis e sete autos de infração emitidos por autoridades de Mato Grosso por desmatamento ilegal em áreas próximas àquelas posteriormente envolvidas no alegado uso da substância para “desmate químico”. Especialistas concordam que os empréstimos eram legais sob a regulamentação da época, que não proibia financiamentos nessas condições. Contudo, afirmam que, se a legislação atual fosse aplicada, tais valores não deveriam ter sido liberados.
Os especialistas também sugerem que o Banco do Brasil deveria ter adotado medidas adicionais que poderiam ter prevenido a concessão de financiamento a um produtor acusado de desmatar partes do Pantanal. Falando à BBC News Brasil, a promotora do caso, Ana Luiza Peterlini, informou que as autoridades investigarão se Lemes usou os recursos dos empréstimos para adquirir os agrotóxicos supostamente empregados em suas fazendas, o que poderia constituir um desvio de finalidade.
Financiamento e desmatamento
Informações sobre financiamentos foram adquiridas pelo Greenpeace Brasil, provenientes de um banco de dados do Banco Central que compila dados sobre o crédito rural no país. O crédito rural faz parte de uma política do governo federal que, anualmente, destina bilhões de reais ao financiamento de produtores rurais em todo o Brasil. Em 2023, foi anunciado pelo governo um total de R$ 364 bilhões em créditos, dos quais R$ 105 bilhões eram com taxas de juros subsidiadas pelo governo.
Os registros indicam que, de março de 2021 a março de 2022, Lemes conseguiu quatro empréstimos com o Banco do Brasil, somando R$ 10.017.930,00, todos destinados à mesma propriedade: Fazenda Soberana, localizada em Barão de Melgaço, Mato Grosso. Destes financiamentos, os três primeiros, totalizando R$ 7,8 milhões, foram utilizados para a compra de gado, enquanto os R$ 2,18 milhões restantes foram aplicados na aquisição de uma aeronave.
Contudo, quando os primeiros financiamentos foram realizados para a Fazenda Soberana, a propriedade já estava embargada pela Sema-MT devido ao desmatamento ilegal de 899 hectares, o que equivale a aproximadamente 900 campos de futebol. Naquela ocasião, a multa por essa infração foi estabelecida em R$ 6,8 milhões.
O primeiro empréstimo identificado pelo estudo do Greenpeace Brasil foi liberado pelo Banco do Brasil em março de 2021. Entretanto, a multa por desmatamento ilegal na Fazenda Soberana havia sido aplicada 13 meses antes, em fevereiro de 2020. Luciane Moessa, ex-procuradora do Banco Central e fundadora da organização Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), comentou à BBC News Brasil que os empréstimos para Lemes foram possíveis devido a lacunas nas normas de crédito rural. Segundo ela, exigências de conformidade ambiental para créditos rurais na Amazônia foram introduzidas em 2008.
No entanto, o problema, conforme explicado por Moessa, é que a regulamentação só se aplicava a propriedades localizadas na Amazônia e apenas a embargos feitos pelo Ibama, o principal órgão federal de proteção ao meio ambiente. Isso significava que propriedades em outros biomas, como o Pantanal, e que tinham sido penalizadas por órgãos ambientais estaduais, a exemplo do caso de Lemes, ainda podiam receber financiamentos do crédito rural.
Moessa destacou que havia “furos” na legislação e que tudo permaneceu relativamente desregulado até a introdução de uma nova resolução pelo CMN em junho de 2023, que só começou a vigorar em janeiro do ano corrente, e que passou a incluir exigências ambientais específicas para os outros cinco biomas brasileiros.
Reforço nas regras de crédito rural
A Resolução nº 5.081/2023 estabeleceu que os bancos não podem mais conceder financiamentos a propriedades rurais com embargos ambientais em qualquer bioma do Brasil, ampliando a restrição que antes se aplicava somente à Amazônia. Além disso, a norma exige que os bancos verifiquem os embargos tanto de órgãos estaduais quanto federais. Luciane Moessa apontou que, embora os empréstimos concedidos a Lemes tenham sido legais à época, o Banco do Brasil poderia ter adotado medidas adicionais para evitar financiar um produtor rural com um histórico de possíveis infrações ambientais.
“As regras então vigentes não proibiam os bancos de realizar verificações adicionais nas listas de embargos estaduais. Os bancos poderiam ter feito isso por iniciativa própria, especialmente considerando que existe uma norma mais abrangente que exige dos bancos uma política de responsabilidade socioambiental”, explicou Moessa.
Ela também mencionou que a lista de embargos ambientais de Mato Grosso está disponível online, facilitando consultas proativas, como sugerido por Thais Banwart, porta-voz da frente de Florestas do Greenpeace Brasil, que afirmou: “O banco poderia proativamente ter consultado se havia algum registro na Sema-MT”.
Investigação e implicações dos financiamentos
O Ministério Público de Mato Grosso, alertado pela obtenção de financiamentos por Lemes de um banco público antes do suposto uso de agrotóxicos, intensificou a investigação sobre o caso.
Ana Luíza Peterlini, promotora envolvida nas investigações desde 2023, destacou a segunda fase da investigação, na qual se busca verificar se os recursos de financiamentos rurais foram usados para a compra de agrotóxicos. “Se ele recebeu créditos rurais e usou esse dinheiro para essa prática [aplicação ilegal de agrotóxicos] nessas áreas, temos um problema grande nessa cadeia de concessão de financiamentos”, observou a promotora.
Um aspecto relevante para os investigadores foi a descoberta de notas fiscais de compras de agrotóxicos pela Fazenda Soberana, a mesma que recebeu os empréstimos do Banco do Brasil, com compras realizadas após a concessão dos financiamentos. O auto de infração, segundo a BBC News Brasil, revelou que a quantidade de agrotóxicos comprados pela fazenda tinha “alta correlação” com as “destruições que acumulam uma área de 138.788,66 hectares nos anos 2021/2022/2023”.
Outro ponto citado no documento enviado pela Polícia Civil à Justiça de Mato Grosso é a descoberta de embalagens vazias de diversos agrotóxicos, incluindo o componente do “agente laranja”, em fazendas de Lemes. A promotora Peterlini sugeriu que o uso de desmate químico por Lemes pode ter sido uma estratégia para evitar a detecção por satélites que monitoram o desmatamento mecânico.
“Acreditamos que seja uma forma de burlar os sistemas de satélites. Uma derrubada mecânica pode ser detectada rapidamente. Mas o desmatamento químico acontece ao longo do tempo e seus efeitos na vegetação parecem os das queimadas, o que despista a fiscalização”, explicou.
A estratégia foi documentada no auto de infração pela Sema-MT.
Estratégias de desmatamento e responsabilidade regulatória
De acordo com o auto de infração, as imagens aéreas mostram áreas bem definidas e delimitadas, indicando um planejamento meticuloso para a execução de um processo de destruição e morte da vegetação nativa. O plano era executado por meio de pulverização aérea, utilizando produtos químicos comumente conhecidos como ‘agrotóxicos’ para causar a perda das folhas, conforme descrito no documento.
A promotora Ana Luíza Peterlini enfatizou que o uso de substâncias como o 2,4-D, componente do agente laranja, deve ser restrito e nunca empregado para exterminar vegetação nativa, especialmente em áreas úmidas e próximas a recursos hídricos ou povoados. Embora o 2,4-D seja comumente usado como herbicida, seu uso na produção do agente laranja durante a Guerra do Vietnã destaca seu potencial tóxico significativo.
O agente laranja, conhecido por causar uma variedade de problemas de saúde graves, incluindo deformações, abortos espontâneos e doenças neurológicas, foi usado pelos militares americanos para desfolhar as florestas do Vietnã e expor soldados inimigos.
A promotora também observou que as multas de R$ 2,8 bilhões impostas a Lemes por suposto uso de agrotóxicos para desmatamento químico não refletem totalmente os danos causados, especialmente à fauna afetada, que precisariam ser mais precisamente estimados. O Pantanal, reconhecido como Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera pela UNESCO, é o maior ecossistema de planície inundável do mundo e está situado entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul no Brasil. Este bioma é de vital importância devido à sua biodiversidade excepcional.
Os advogados de Lemes (Valber Melo, João H. Sobrinho e Fernando Faria) alegaram que os desmatamentos nas fazendas de seu cliente foram causados por incêndios que afetaram o Pantanal nos últimos anos, incluindo um que se originou de um Parque Estadual. Eles criticaram a falta de ação por parte do Estado de Mato Grosso diante dos incêndios, que teriam causado prejuízos significativos. No entanto, essa alegação foi refutada pela promotora Peterlini, que realizou uma análise comparativa com os focos de calor na região, concluindo que os incêndios florestais não poderiam ter causado o desmatamento observado.
Conclusão do inquérito
O inquérito criminal sobre o caso envolvendo Lemes está prestes a ser concluído pela Polícia Civil, e uma acusação formal deverá ser apresentada à Justiça de Mato Grosso em breve. A decisão de prosseguir com o julgamento será do judiciário local. Enquanto isso, especialistas e a coordenadora da frente de florestas do Greenpeace Brasil, Cristiane Mazetti, argumentam por uma fiscalização mais rigorosa das instituições financeiras e reguladoras para prevenir o financiamento de atividades prejudiciais ao meio ambiente. Mazetti sugere que as instituições financeiras deveriam monitorar continuamente as áreas financiadas e tomar medidas corretivas se irregularidades forem identificadas após a concessão de créditos rurais.
Com informações da BBC
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