Um dos elementos fundamentais para diferenciar os regimes de desigualdades entre países e regiões são as condições de vida das famílias. O Papa Francisco afirma que: “os direitos humanos são violados não só pelo terrorismo, pela repressão, pelos assassinatos, mas também pela existência de extrema pobreza e de estruturas econômicas injustas, que originam as grandes desigualdades”.
Por Paulo Roberto Haddad
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A demana reprimida do consumo das famílias e a retomada do crescimento
O Brasil está imerso na “armadilha dos países de renda média”. Segundo Phillippe Aghion, um dos maiores especialistas em teorias do crescimento econômico, muitos países emergentes, em algum período de sua história, vivenciaram uma fase de crescimento acelerado, convergindo para o padrão de vida das nações mais ricas do Mundo.
Entretanto, a maioria desses países permaneceu como países de renda média. A existência da “armadilha” sugere que a transição de um país de renda média para um país de economia avançada não se processa como um subproduto cronológico de uma sequência de ajustes macroeconômicos ou de inovações incrementais, que não têm intensidade suficiente para modificar ou alavancar o patamar de desenvolvimento de uma economia. E que, se a permanência no status de renda média se prolonga, aumentam as chances de ocorrerem crises e instabilidades cíclicas .
Aghion cita o caso da Argentina, em confronto com o caso da Coreia do Sul que conseguiu dar o salto para as economias avançadas. Em 1890, o PIB per capita da Argentina era aproximadamente 40 por cento do PIB per capita dos EE.UU., o que tornava o país uma economia de renda média, três vezes superior ao PIB per capita do Brasil e da Colômbia, e um pouco maior do que o PIB per capita da França. A partir de 1938, o PIB per capita da Argentina vem declinando em relação ao PIB per capita das economias avançadas.
A economia da Argentina entrou no rol dos países de baixo crescimento, em um processo recorrente de decadência econômica, provocando uma sequência interminável de crises sociais e políticas. Fica a pergunta: como evitar que a população brasileira vivencie os atuais dramas sociais e econômicos da população argentina e possa seguir a direção de uma economia avançada como fez a Coreia do Sul?
Uma resposta negacionista seria que a economia brasileira é diferente. Um argumento que se adotava em relação à superinflação da Argentina nos anos 1980, antes que ocorresse a do Brasilnos anos 1980, o que ficou conhecido como “efeito Orloff”.
As fragilidades do capitalismo brasileiro em muitos contextos são semelhantes às experiências históricas do capitalismo norte-americano ou europeu. Em outros, são específicas do nosso subdesenvolvimento político e do caráter emergente do nosso progresso econômico e social. Essas fragilidades se tornam visíveis em assimetrias e dissonâncias no processo de desenvolvimento do bem-estar social sustentável na vida dos brasileiros, particularmente nas assimetrias sociais que historicamente vêm do período escravocrata.
Incapacidade para equacionar o problema da pobreza persistente e para reverter um processo de crescentes desigualdades na distribuição da renda e da riqueza. Incapacidade para conter o uso predatório da base de recursos ambientais do País. Incapacidade para eliminar a tendência de imiscuir interesses privados com interesses públicos na gestão governamental, dentro do estilo de capitalismo de compadrio associado às práticas de corrupção.
Incapacidade para controlar a vocação imanente de nossos protagonistas políticos para ações de populismo econômico que criam ciclos de instabilidade econômica, que resultam quase sempre em elevadas taxas de desemprego, de inflação etc. Uma lista semelhante à que Philip Kotleridentificou para o capitalismo norte-americano em seu livro “Confronting Capitalism”.
Precisamos promover uma descontinuidade ou uma ruptura nesses processos de empobrecimento dos brasileiros, de degradação dos nossos ecossistemas e de baixo crescimento da economia e dos mercados de trabalho.São cerca de 1700 dos 5565 municípios que se caracterizam como áreas economicamente deprimidas.
O Brasil precisa voltar a crescer de forma sustentada e sustentável pois,em um contexto de um ciclo de expansão, é menos difícil equacionar os seus problemas socioeconômicos e socioambientais.
No curto prazo, com a capacidade produtiva instalada, o crescimento econômico depende de se dinamizarem os componentes da demanda agregada de consumo e de investimento, assim como das exportações. O consumo das famílias representa mais de 60% da demanda agregada total o qual depende da expansão da massa salarial (wage led) e da capacidade de endividamento das famílias (debt led), impulsionado também pelos impactos distributivos das políticas sociais compensatórias*.
Atualmente, a expansão sustentada e sustentável do consumo das famílias brasileiras está condicionada pelo baixo crescimento econômico do País, pelo superendividamento dos brasileiros e pelo empobrecimento da classe média.O crescimento do mercado interno de uma nação ou de uma região depende do tamanho de sua população, do aumento da produtividade e da distribuição da renda e da riqueza.
Ocorre que a nossa população está convivendo com uma economia de crescimento pífio, com um meio ambiente degradado pela biopirataria e com uma das mais elevadas concentração de renda e de riqueza do Mundo. Com as incertezas sobre a expansão do consumo, a demanda agregada fica reprimida e o estímulo ao crescimento postergado.
A demanda agregada é composta pelo consumo privado, pelos gastos públicos, pelos investimentos e pelas exportações. Quando a demanda agregada se expande, ela poderá, se for bastante intensa e sustentada,gerar renda, emprego e arrecadação tributária adicionais, geralmente através de um efeito multiplicador.
Como o consumo das famílias é o agregado significativo mais relevante, pois representa mais de 60% da demanda agregada (63,07% em 2022), o acompanhamento de sua evolução é indispensável para a formação das expectativas sobre o futuro da economia, particularmente em relação ao ritmo do seu crescimento. As decisões que tomamos ao longo do tempo estão impregnadas de incertezas, de expectativas e de riscos, quando se pensa na construção do futuro.
Há certa perplexidade na opinião pública brasileira quanto à rapidez com que a retomada do crescimento econômico espraia os seus benefícios sobre todos os setores e regiões do País. Trabalhadores veem os seus empregos retomarem. Prefeitos e Governadores veem a sua arrecadação tributária e as suas transferências de recursos do Governo Federal aumentarem. Empresários veem suas encomendas e vendas se avolumarem. Fica a pergunta: quais são os principais mecanismos de transmissão do processo de crescimento entre setores, regiões e mercados de trabalho?
Em 1939, o Prof. Paul Samuelson, ganhador do Prêmio Nobel em Economia em 1970, analisou as interações circulares, no lado real da economia, entre os efeitos combinados do multiplicador de renda e emprego com o princípio da aceleração econômica. Esses efeitos são interdependentes tanto nas flutuações cíclicas de prosperidade econômica quanto nas de recessão.
A ideia é simples: os investimentos em bens de capital dependem, entre outros fatores, das mudanças sustentadas no nível da demanda agregada. Máquinas, equipamentos e galpões industriais são duráveis, e seria possível manter o nível do PIB sem novos investimentos, se a capacidade produtiva estiver adequada. Contudo, se a demanda cresce e o sistema passa a operar sem capacidade ociosa, há necessidade de novos investimentos em atividades diretamente produtivas e em infraestrutura econômica e social.
O princípio da aceleração estabelece um elo causal entre as variações na demanda agregada e o nível de investimento. Por outro lado, a redução de investimentos tem um efeito multiplicador negativo sobre o emprego e a renda da economia, através da demanda induzida dos consumidores.
Se as exportações brasileiras se desaceleram, projetos de investimento são cancelados ou postergados, reduzem-se as encomendas para as indústrias de construção civil e de bens de capital, que desempregam mão de obra de todos os níveis de qualificação. Caindo a renda e o emprego, reduz-se a demanda de bens de consumo cuja indústria irá adiar os seus planos de expansão.
Dessa forma, vai se configurando o circuito completo de uma expansão econômica, o qual fica melhor caracterizado quando, nessas interações, se coloca o papel das expectativas em torno de uma economia mundial que oscila entre um ciclo de prosperidade e um ciclo de retração.
Além do mais, em um ambiente econômico de rigoroso ajuste fiscal, com elevação das taxas de juros além de cortes nos gastos governamentais e de aumento da carga tributária, os investimentos tendem a cair de forma muito intensa em função de expectativas desfavoráveis sobre o futuro da economia. A economia de mercado é fundamentalmente movida por expectativas;e, no curto prazo, há uma dominância das expectativas do consumo das famílias e das exportações.
Desde o início do Plano Real, uma parte significativa dos fatores que vêm impulsionando o crescimento econômico do Brasil é a descompressão da demanda agregada reprimida. Uma vez realizada essa descompressão, tem se iniciado um ciclo de crescimento que pode ter maior ou menor duração dependendo das características estruturais dos fatores inibidores da demanda agregada.
Em um primeiro momento, quando o Plano Real conseguiu abortar o processo da superinflação que acompanhava a economia brasileira desde os anos 1980, a demanda agregada se expandiu significativamente graças à recomposição do poder de compra da massa salarial com o fim do imposto inflacionário.
A partir do segundo semestre de 1994, consolidou-se um novo patamar do consumo privado com a incorporação de milhões de famílias de trabalhadores aos mercados de bens de consumo duráveis e não duráveis. Esse ciclo expansionista vingou sem impactos inflacionários ou de desabastecimento, ao contrário do que ocorreu à época do Plano Cruzado, pois já se estava em um contexto da economia brasileira mais aberta e globalizada. A oferta global de bens e serviços se complementava com importações mais desregulamentadas e com tarifas médias significativamente menores.
Quando se trata do consumo agregado, há que se destacar também o papel das políticas sociais compensatórias implantadas a partir da Constituição de 1988. Como destacado, o mercado interno de um país depende de três fatores fundamentais: o tamanho da população, os níveis de produtividade e o perfil da distribuição da renda e da riqueza. Quanto maior a população, quanto mais elevados os ganhos de produtividade total dos fatores de produção e mais bem distribuída a renda e a riqueza de um país, maior será o tamanho de seu mercado interno.
Ora, desde o início dos anos 1990, vieram sendo implementados no Brasil os direitos sociais, muitos dos quais previstos na Constituição de 1988: a Previdência Social, a Lei Orgânica de Assistência Social, o Bolsa Família, o Salário Desemprego. Essas e outras políticas sociais compensatórias têm como referência do ajuste de seus benefícios o salário-mínimo, e esse subiu mais de 50 por cento acima da inflação no período pós-Plano Real.
Explica-se, assim, a mudança do novo patamar da demanda agregada via elevação do consumo de milhões de famílias localizadas nas áreas menos desenvolvidas do País e nas periferias das grandes metrópoles. O consumo dessas famílias ainda foi beneficiado por eventuais quedas nas taxas de juros que financiaram as compras de bens duráveis de consumo.
Famílias brasileiras nas finanças Ponzi
Charles Ponzi, nascido Carlo Ponzi, foi um estelionatário italiano radicado nos EE.UU., conhecido por ter elaborado a maior fraude do século 20, estimada em 50 bilhões de dólares. Enriqueceu e levava uma vida de luxo em Boston graças a um esquema de captação de recursos monetários dos imigrantes italianos e judeus, desde os anos 1910.
O “esquema Ponzi”, parecido com o que hoje denominamos de pirâmide financeira, se baseava na promessa de aplicações com 50 por cento de lucro em 45 dias. Pagava os primeiros investidores com o dinheiro dos novos investidores, ganhando assim a confiança dos imigrantes num primeiro momento. Envolveu-se em grandes negócios de um boom imobiliário na Flórida, onde chegou a vender terrenos submersos em áreas pantanosas.
O negócio desmoronou e Ponzi terminou seus dias pobre e cego, no subúrbio de Engenho Novo,no Rio de Janeiro. Morreu em 1949, internado na ala de indigentes do Hospital São Francisco. Está enterrado no Cemitério do Caju na cidade do Rio de Janeiro.
Os livros de finanças incorporaram a expressão “Efeito Ponzi” para designar os imbróglios que ocorrem frequentemente em operações financeiras fraudulentas ou desequilibradas, as quais têm se tornado mais frequente com a evolução da internet e com a desregulamentação dos mercados financeiros.
Tecnicamente, Hyman Minsky* definiu três perfis de situação financeira: quando os fluxos de rendimentos prospectivos de um empreendimento financiado são suficientespara cobrir o principal e os juros; quando as receitas imediatas e de curto prazo são suficientes para cobrir apenas os juros; e, finalmente, quando esses rendimentos são insuficientes para cobrir até mesmo os pagamentos de juros, de tal forma que a dívida aumenta. Minsky denominou essa última situação financeira de “posição de Ponzi”.
É grande o número de famílias brasileiras que estão atualmente enredadas nas finanças Ponzi. É evidente que, quando a situação financeira de uma família vai se deteriorando na direção da posição de Ponzi, amplia-se o nível de estresse emocional das famílias. Se o nível de estresse é recorrente e se aprofunda, muitas situações mórbidas podem ocorrer. Podemos ilustrar o que pode ocorrer com indivíduos e famílias que entram em desespero quando enfrentam grave crise econômica e tendem a se endividar profundamente, como o caso dos EE.UU.
Em 2020, Anne Case e Angus Deaton*, Prêmio Nobel de Economia de 2015, investigaram a expansão vertiginosa das diferentes causas de mortes, as quais denominam “mortes de desespero”: suicídios, overdoses e alcoolismo. Analisaram, principalmente, o grupo de renda média na faixa etária de 45 a 54 anos da população branca dos EE.UU., dividindo-o por nível de educação.
O subgrupo com menor nível de educação perdeu, entre 1979 e 2017, 13 por cento de seu poder de compra, sendo que os salários dos trabalhadores norte-americanos ficaram estagnados durante meio século. Empregos não são apenas a fonte de renda e de projetos profissionais, mas a base de rituais, costumes, rotinas e hábitos de consumo da vida dos trabalhadores, os valores culturais que contribuem para o seu equilíbrio emocional.
No livro, os autores consideram que o EE.UU. estão experimentando uma verdadeira catástrofe através das mortes de desespero entre aqueles que não têm curso superior ou nível de especialização apropriada para os processos e as tecnologias das novas revoluções industriais.
Os seus empregos foram substituídos pelas importações de outros países (principalmente da China) ou pela automação robótica nas fábricas. Com a saúde abalada, esse grupo social se encontra diante do pior sistema de saúde pública entre todos os países mais ricos do Mundo, ao qual podemos contrapor o nosso SUS que tem demonstrado, apesar de inúmeras dificuldades financeiras e organizacionais, excelente desempenho institucional, particularmente durante a pandemia da COVID 19.
No caso brasileiro, os fatores que têm determinado o desemprego, o desalento e o empobrecimento de quase 30 milhões de trabalhadores formais e informaissão múltiplos e diferenciados, mas o seu nível de estresse emocional e psíquico é igualmente dramático. Assim, é muito importante estar atento às reações psicológicas desses trabalhadores e ao seu eventual desespero e, ao mesmo tempo, promover o fortalecimento da atuação de diferentes grupos de psicólogos na Atenção Básica do SUS.
A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Tecnologias (CNC) elabora a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic). Em 2023, a taxa anual de endividamento ficou em 77,8 % da população, apenas 0,1 ponto percentual menor que o desempenho de 2022.
Em dezembro de 2023, a fatia de endividados que se declararam inadimplentes ficou em 28,8%, um pouco menor do que a de novembro (29%). No caso dos inadimplentes em condições de quitar dívidas, a proporção do último mês do ano passado foi de 12,2%, menos do que a de novembro (12,5%). Segundo o CNC, o endividamento caiu, mas a inadimplência bateu recorde, podendo se afirmar que tendeu a crescer o número de famílias em finanças Ponzi no Brasil ao longo da última década.
As famílias de menor renda estão mais vulneráveis às variações da economia, especialmente das taxas de juros, do que aquelas de maior renda.Um refinanciamento que apenas reduza os serviços da dívida é muito importante mas não impacta a renda discricionária (a renda disponível menos a parcela que não sofre restrições, como a de prestações) a ponto de expandir o consumo.
Uma questão básica está em que as políticas sociais compensatórias que abrangem quase 35 milhões de brasileiros (considerando apenas a LOAS, o Bolsa Família, e a Previdência Social) têm como referência básica o salário-mínimo. O reajuste do salário-mínimo, desde a entrada do Real, cobre a variação da inflação do ano que passou, acrescentando a variação do Produto Interno Bruto relativa também no ano que passou.
Se o salário-mínimofor a única fonte de renda de uma família de quatro pessoas, não há chance de se retirar essa família da pobreza. Se considerarmos a Pesquisa Nacional da Cesta Básica do DIEESE, em fevereiro de 2024, o salário-mínimo nominal foi de R$ 1.412,00 e o salário-mínimo necessário deveria ser de R$ 6.996,36. Já em 2019, o Brasil ocupava o 13° lugar entre os países da América Latina com o seu salário-mínimo em dólares.
O caso do empobrecimento da classe média média
Entre 2006 e 2012, ocorreu no Brasil um intenso processo de migração de famílias das classes D e E (as mais pobres) para a classe C, que cresceu 6,2 por cento ao ano formando um novo segmento de classe média na sociedade. Durante o período recessivo da economia brasileira, a partir de 2014, mais de quatro milhões de famílias que se encontravam na classe C retornaram para as classesD e E, revertendo o processo de mobilidade social do ciclo de prosperidade (2018).
Embora esse ritmo de migração entre classes esteja diminuindo recentemente, ainda poderá eventualmente ocorrer um empobrecimento da classe média se uma política econômica não evitar um novomergulho recessivo da economia brasileira.
É possível, ainda, que ocorraum deslocamento de famílias de renda média alta para a classe C, sinalizando um empobrecimento geral da sociedade brasileira. Esse processo de declínio no status social de diferentes grupos sociais é comum em países, como os EE.UU. que, desde 1980, passa por uma etapa de intensa concentração de renda e de riqueza.
No caso brasileiro, o mercado interno ainda é relativamente pequeno, tendo em vista que a nossa produtividade total é baixa quando comparada com a dos países desenvolvidos e emergentes. Não só é baixa, mas tem crescido muito lentamente. O impulso ocorrido no consumo privado se deu graças à melhoria na distribuição de renda em virtude das políticas sociais compensatórias previstas na Constituição de 1988, à política mais generosa do salário-mínimo que chegou a crescer 60 por cento acima da inflação e ao crescimento dos níveis de emprego formal.
Mas o estilo da política econômica de austeridade fiscal, que se iniciou de forma consistente a partir de 2014, sem um plano de desenvolvimento sustentável, gerou um conjunto de indicadores que sinalizam a presença de um tripé de desigualdades sociais: desigualdades de renda, desigualdades de riqueza e desigualdades de oportunidades*.
A atual desigualdade de oportunidades influenciaos padrões do tripé das desigualdades no futuro. Embora, em princípio, todos devam ter um ponto de partida em condições iguais para realizar seus projetos de vida, as oportunidades desiguais e a mobilidade social limitada fazem com que os beneficiários das desigualdades de resultados hoje (os mais ricos, os mais poderosos) continuem a transmitir vantagens injustas para os seus descendentes amanhã.
Assim, vão se reproduzindo os padrões de desigualdades na sociedade. Não é difícil imaginar quais seriam as oportunidades que irão se abrir no futuro para uma criança de cor negra, de sexo feminino e de família de classe D ou E, quando comparadas com as oportunidades que se abrirão no futuro para uma criança de cor branca, de sexo masculino e de família de classe A ou B. É a loteria da vida definindo o provável futuro de cada um.
É indispensável, pois, que o Brasil, através de políticas públicas, amplie e flexibilize os canais de mobilidade social que continuam viscosos e congestionados. Como dizia Adam Smith, em 1776, “nenhuma sociedade poderá certamente florescer e ser feliz, se grande parte de seus membros for constituída de pobres e miseráveis”*.
Como se dá a trajetória de empobrecimento de uma família no contexto de uma recessão ou de uma semiestagnaçãoda economia já que a pobreza admite diferentes patamares? Uma recessão econômica gera a metamorfose do empobrecimento, conforme as perdas e danos das famílias e dos grupos sociaisque venham a ocorrer em termos de capital financeiro (poupança, aplicações financeiras, ações, etc.) e não financeiro (casa própria, terra, etc.) ou em termos de nível de renda real (salários, juros, lucros, aluguéis). Algumas das trajetórias dessa metamorfose podem ser observadas com frequência maior nesses anos de recessão econômica. Vejamos dois exemplos.
A trajetória de empobrecimento de famílias e grupos sociais da classe média (funcionários públicos, profissionais liberais, microempresários, etc.), cuja perda inicial pode se dar pelo desemprego, pelo apelo ao subemprego, pela fragilidade financeira ou pela perda de poder aquisitivo.
A trajetória, nesse caso, tem observado, frequentemente, o seguinte passo a passo: após a primeira queda de renda real, busca-se recompor o padrão de vida através da monetização dos ativos financeiros e não financeiros,esgotada essa alternativa ao longo dos meses, o efeito cremalheira (a resiliência do padrão de consumo já conquistado) induz a diferentes formas de endividamento (cartão de crédito, prestações, CDC, etc.), que pode ser fatal no momento seguinte.
Um novo passo ocorre quando se abre mão do padrão de consumo, migrando do plano de saúde particular para o sistema público de atendimento à saúde, do aluguel em residências localizadas em bairros de classe média para moradias em áreas periféricas, etc.
Nesse passo a passo, acumula-se o desalento, perde-se a autoestima, aumentam o estresse e a tensão emocional.
Um segundo caso se refere a grupos sociais e famílias pertencentes aos chamados segmentos D e E da sociedade (em geral, de trabalhadores de mão de obra não qualificada ou semiqualificada). Quando passam da situação de pobreza absoluta, da carência de recursos financeiros e de capital para atender às necessidades básicas de suas famílias diante do desemprego aberto, caminham, então, para a situação dos sem-teto, dos andarilhos, dos socialmente marginalizados e vulneráveis, da extrema pobreza..
Quanto mais a recessão se aprofunda, com risco de se tornar uma depressão econômica, mais se podem observar casos dessa pobreza andarilha e sem-teto a mendigar nos grandes centros urbanos das áreas economicamente deprimidas do País.
Emerge, então, a importância da preservação das políticas sociais compensatórias num contexto em que as portas de saída estão cerradas para os novos pobres. Trata-se dos benefícios sociais continuados para idosos e pessoas com deficiência física (LOAS), do programa bolsa-família, da previdência social. É um processo de redistribuição ou transferênciaque tem o salário-mínimo como referência básica sendo capaz de retirar famílias da extrema pobreza.
Em 1798, o Reverendo Thomas Malthus* formulou uma análise da relação entre os ciclos de crescimento de uma economia e o aumento da pobreza social. Destacou diversos indicadores das desigualdades sociais que se acumularam na Inglaterra na virada do século XVIII para o século XIX, afirmando:
“Os filhos e as filhas dos camponeses não serão vistos nunca na vida real como rosados querubins, como são descritos nos romances. Não pode deixar de ser assinalado por aqueles que vivem muito no interior que os filhos dos trabalhadores estão muito sujeitos a ser prejudicados em seu crescimento e demoram para atingir o desenvolvimento pleno. Os rapazes que você julgaria estar com 14 ou 15 anos, após verificação, constata ter 18 ou 19 anos … circunstância que só pode ser atribuída à falta de alimento adequado ou suficiente”.
Entretanto, Malthus via com ceticismo as propostas de reformas sociais elaboradas por outros pensadores nas primeiras décadas após a Revolução Industrial na Inglaterra e atribuía ao descompasso entre o crescimento geométrico da população e o crescimento aritmético da produção de alimentos, a principal causa de a classe trabalhadora viver na pobreza e na miséria.
Mais de dois séculos após as previsões de Malthus, observa-se que a produção de alimentos cresceu com elevados níveis de produtividade e as taxas de fecundidade feminina despencaram em inúmeros países e regiões. A questão da pobreza e da miséria passou a ser considerada no campo das relações sociais de produção, especificamente nas relações entre os diferentes modos de acumulação e a distribuição de renda e de riqueza entre os diferentes grupos sociais.
Essas relações sociais de produção são construções político-institucionais da sociedade e podem ser reconstruídas a partir de políticas públicas socioeconômicas e socioambientais reestruturantes e não apenas de natureza compensatória.
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Hyman Minsky (1919-1996), um economista norte-americano que analisou as crises do capitalismo no pós-II Grande Guerra complementando a própria obra de Keynes, notabilizou-se por prever a crise financeira global ocorrida a partir de 2008, o que levou o New York Times à expressão “momento Minsky”. Minsky analisou como os governos nacionais saíram das diferentes crises desde 1929, destacando as políticas de auxílio emergencial e de bem-estar social, de um lado, e as políticas de geração de emprego e de renda através de investimentos públicos e privados, do outro lado.
Para ele, a justiça social se baseia na dignidade individual e na independência dos centros públicos e privados de poder político. A dignidade e a independência são mais bem atendidas por uma ordem econômica na qual a renda monetária é recebida ou por direito ou através de uma relação de troca justa.
A renda de transferência governamental é um direito social que assegura a sobrevivência de famílias em situação de pobreza, por meio de acesso à renda e à promoção da autonomia dessas famílias. Um direito que, no Brasil, é de natureza constitucional.
Para Minsky, a remuneração pelo trabalho realizado deveria ser a principal fonte de renda para todos. A dependência permanente de um sistema crescente de transferências de pagamentos que não foram ganhos é humilhante para quem recebe e destrutiva do tecido social. A justiça social e a liberdade individual exigem intervenções para criar uma economia de oportunidades na qual todos, com exceção dos deficientes e idosos, ganhem sua trajetória através de renda por trabalho. O pleno emprego é um bem econômico, assim como um bem social.
No caso brasileiro, a crise socioeconômica é particularmente dramática para os jovens de 18 a 24 anos. No início da atual década, a taxa de desemprego para esse grupo social era de 30 por cento; ou seja, de cada três jovens brasileiros um estava desempregado por falta de um campo de oportunidades para realizar os seus projetos de vida.
Enfim, as políticas sociais compensatórias (benefícios continuados, segurança alimentar, etc.) são absolutamente indispensáveis em uma sociedade profundamente dividida como a do Brasil. Mas, em respeito à dignidade das pessoas, é igualmente indispensável que o País estruture e implemente uma política de emprego formal e de qualidade como componente essencial dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU*.
As famílias brasileiras, principalmente a classe média e as mais pobres, têm estado reféns de três tensões psicossociais e político-institucionais:o desemprego e a renda em queda conduziram ao seu empobrecimento;a perda de qualidade nos serviços públicos essenciais afetou o seu bem-estar social; e as incertezas quanto à realização de suas oportunidades futuras, as quais trouxeram-lhes fadiga e estresse emocional.
E o longo período de mazelas socioeconômicas sofrido pelas famílias brasileiras nos últimos anos não comprometeu, contudo, o seu inconformismo quanto ao processo cruel, difuso e silencioso de seu empobrecimento e de assimetrias sociais. Ao contrário, estão politicamente conscientes de que o País precisa passar por uma Grande Transformação, que dificilmente ocorrerá a partir de ideias e doutrinas historicamente superadas ou de governos que atuam casuisticamente de acordo com regras espúrias de sobrevivência no poder.
Preocupa-nos o baixoÍndice de Segurança Financeira das famílias brasileiras, que sinaliza o número de adultos que não têm capacidade de enfrentar despesas inesperadas de saúde, educação, alimentação, etc., a não ser cedendo algum ativo (ações, imóveis, poupança, etc.) que eventualmente possuam ou tomando alguma forma de dinheiro emprestado.
Assim, com os elevados níveis de desemprego e de subemprego e o pesado comprometimento das rendas disponíveis com o endividamento, não se pode esperar que a retomada do crescimento econômico venha do consumo das famílias, o qual é responsável por mais de dois terços da despesa nacional.
Um dos elementos fundamentais para diferenciar os regimes de desigualdades entre países e regiões são as condições de vida das famílias. O Papa Francisco afirma que: “os direitos humanos são violados não só pelo terrorismo, pela repressão, pelos assassinatos, mas também pela existência de extrema pobreza e de estruturas econômicas injustas, que originam as grandes desigualdades”.
* Lucio Baccaro, Mark Blyth and Jonas Pontusson – Diminishing Returns – The New Politics of Growth and Stagnation, Oxford, 2022.
* Hyman Minsky – Stabilizing an Unstable EconomyMcGraw Hill, 2008, chapter 3.
* Anne Case and Angus Deaton – Deaths of Despair and the Future of Capitalism. Princeton, 2018.
* Robert Skidelsky – Money and Government. A Challenge to Mainstream Economics,Penguin, 2018.
* A. Smith – A Riqueza das Nações (2 volumes) Abril Cultural,1983.
* Thomas Malthus – Ensaio sobre a População Abril Cultural, 1983.
* Paulo Roberto Haddad – Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Narrativas para a Construção do Futuro– Editora Caravana – e-Galáxia, 2023.
Paulo Roberto Haddad é um economista brasileiro. Formado em economia pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais em 1962. Fez curso de especialização em Planejamento Econômico no Instituto de Estudos Sociais em Haia Holanda 1965/1966. Professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. fundador e primeiro diretor do Centro de desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG. Publicou diversos livros e artigos em revistas especializadas no Brasil e no Exterior. O último livro: Crise social e crise ambiental é um apanhado crítico das políticas públicas do atual governo. Diploma de Língua Inglesa da Universidade de Cambridge. Professor das Nações Unidas em cursos no Chile, Uruguai e Brasil desde 1986. Primeiro secretário-executivo da Associação Nacional de Centros de Pós -graduação em Economia – ANPEC -. Professor convidado da Universidade de Vanderbilt – EUA. Exerceu o cargo de ministro e secretário de Planejamento e de Fazenda do Governo Itamar e do Estado de Minas Gerais de Secretário da Fazenda do Governo do Estado de Minas Gerais. Dedica-se à literatura econômica e militância pela brasilidade. Consultor, atualmente, da ONU para disseminação de plataformas de desenvolvimento regional para os países emergentes os Brics, e fundador do Fórum do Futuro, em parceria com o ministro Alysson Paolinelli, criador da Embrapa e com jovens intelectuais mineiros.
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