Por Márcio Holland
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Em um balanço geral, a reforma tributária aprovada em primeiro ano do terceiro mandato do Governo Lula é um feito histórico a ser celebrado, valendo menções e parabéns aos seus protagonistas mais ativos, a começar pelo próprio ministro Haddad; seu secretário Bernard Appy; seus relatores, deputado Aguinaldo Ribeiro e senador Eduardo Braga; todos os parlamentares que a aprovaram; e todos do CCiF, além de tantos tributaristas e acadêmicos que realizaram estudos sobre o tema.
Não há a menor dúvida de que a aprovação da reforma tributária, a partir da PEC 45/2019, pode ser considerada um feito histórico, em especial, para um país que não costuma gostar de reformas estruturais. Há muitos pontos positivos desta reforma que devem ser destacados e que, provavelmente, superam suas fraquezas. O desafio da sua regulamentação e da sobrevivência de seus pilares essenciais durante o período de transição são, contudo, enormes.
Entre mortos e feridos, o Brasil tem um encontro marcado com o imposto sobre valor adicionado (IVA), que começa a entrar em vigor em 2026, com alíquotas-teste para a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e para o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), para, enfim entrarmos na era do IVA (quase) pleno na tributação sobre consumo, em 2033.
Com o IVA, o País ganha um tributo de base ampla e alíquota única, com poucas exceções, incidente sobre bens e serviços, tangíveis e intangíveis. O IVA terá cálculo “por fora”, não compondo sua própria base, colocando fim ao método do imposto sobre imposto e à cumulatividade tributária que maltrata os negócios no País. Com o recolhimento no destino coloca fim à perversa guerra fiscal entre Estados.
Adicionalmente, cria-se a figura do cashback para devolução de tributos aos consumidores de baixa renda pela aquisição de alimentos, consumo de gás de cozinha e de energia elétrica. Conviveremos com alíquota zero para produtos da cesta básica nacional, como hortifrutis e ovos e alíquota de 40% da de referência do IVA para alimentos de consumo humano.
Nada que, com o tempo, não se pode observar se o mecanismo do cashback não seria mais efetivo do que alíquotas diferenciadas para mitigar a regressividade do IVA. Aqui vale o registro de que o texto aprovado prevê que regimes diferenciados serão submetidos a uma avaliação quinquenal de custo-benefício. Esperamos que sim.
A aprovação da reforma tributária não é ponto de chegada, mas apenas o começo desta história. O Brasil irá conviver com regime misto durante a transição. Ou seja, por mais alguns anos, as empresas terão de administrar tanto um manicômio formado pelo quinteto PIS, COFINS, ICMS, ISS e IPI, quanto o desconhecido mundo da CBS e do IBS.
Parte de sua atividade econômica terá crédito amplo, por fora, no destino; parte continuaria sob disputa com a administração fiscal sobre se tem ou não direito a crédito, qual melhor regime fiscal, ou como apurar tributos conforme a sua mutante legislação, que não deverá parar de se alterar enquanto o tributo vigorar. PIS e COFINS serão extintos em 2029, ICMS e ISS em 2033. Vão-se os tributos, mas não as disputas judiciais sobre “o que os contribuintes fizeram no verão passado”. Ao mesmo tempo, as empresas ainda terão de se entender sobre as legislações, não apenas legais, como as normas infralegais, do novo e encantado mundo do IVA.
A depender da regulamentação do novo Comitê Gestor do IBS, a nova sistemática de tributação sobre o consumo pode não conseguir extinguir o ativismo das instâncias subnacionais da administração fiscal em matéria de publicar instruções normativas e em autuações com sede de arrecadar. Idem para a Receita Federal e a CBS. A boa notícia é que, durante a transição, os tributos atuais e os novos tributos não irão compor a base de cálculo uns dos outros.
No texto aprovado, a expressão “lei complementar” aparece 77 vezes. Esse é talvez o caso mais notório de que o diabo mora nos detalhes. Será preciso acompanhar com lupa essa regulamentação, sob o risco de mais jabutis subirem na árvore. Será preciso regulamentar os novos tributos, CBS e IBS, o Comitê Gestor do IBS, que não terá iniciativa legislativa – sábia decisão -, e o Imposto Seletivo, que, nos termos do texto constitucional, prevê sua incidência sobre “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente“.
Aqui reside uma grande novidade para amplo debate nacional. Quais bens e serviços, além do cigarro e outros produtos do fumo e bebidas alcoólicas, são prejudiciais à saúde? E quais bens e serviços são prejudiciais ao meio ambiente? Incrível a falta de respeito para com a sociedade essa exclusão da lista de candidatos a incidência do IS as armas e as munições. Ou seja, o assunto aqui pode ser conduzido mais pelas forças dos lobbies do que de razões técnicas e éticas.
Por fim, mas longe de ser o menos importante e de qualquer pretensão de esgotar os desafios, tem-se a discussão sobre o tamanho, ao final da transição, da alíquota do IVA, somando aqui a alíquota da CBS com a do IBS. Documento do Ministério da Fazenda estimou que essa alíquota pode chegar a 27%. O ministro Fernando Haddad falou que, dadas as exceções que se adicionaram no meio do caminho, poder-se-ia adicionar outros 0,5%.
Como a economia é muito dinâmica, depende de alterações não apenas conjunturais, mas também estruturais, e de interações com outras economias, além dos virtuais choques de oferta e de demanda, potenciais crises políticas, econômicas e financeiras, é muito difícil antecipar se o Brasil terá o maior IVA do mundo, mas parece que caminha a passos largos para conquistar esse pódio.
Lembrando que a média não-ponderada do IVA nos países membros da OCDE é de 19,5% e a Hungria figura com o maior IVA atual, em 27%. É provável que quanto maior a alíquota do IVA maior tenderá a ser o apetite pela informalidade e sonegação; e com isso, maior deve ser a alíquota do IVA para garantir arrecadação suficiente para financiar os crescentes gastos públicos.
A propósito, deixemos para outra oportunidade a desagradável matemática de que as arrecadações tributárias devem ser suficientes para bancar os crescentes gastos públicos e, de sobra, garantir relação sustentável entre a dívida pública e o PIB.
Em um balanço geral, a reforma tributária aprovada em primeiro ano do terceiro mandato do Governo Lula é um feito histórico a ser celebrado, valendo menções e parabéns aos seus protagonistas mais ativos, a começar pelo próprio ministro Haddad; seu secretário Bernard Appy; seus relatores, deputado Aguinaldo Ribeiro e senador Eduardo Braga; todos os parlamentares que a aprovaram; e todos do CCiF, além de tantos tributaristas e acadêmicos que realizaram estudos sobre o tema.
Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde coordena os “Diálogos Amazônicos” e a Pós-Graduação em Finanças e Economia (Master)
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