No Cerrado brasileiro, onde os estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia se encontram, onças-pretas são surpreendentemente prevalentes, desafiando conceitos ecológicos e inspirando pesquisas. Esses felinos, embora ricos em mistério e ligados às obras de Guimarães Rosa, enfrentam ameaças crescentes de caçadores e desmatamento.
As onças-pretas, envoltas em enigmas semelhantes aos sertões retratados por Guimarães Rosa, desafiam o entendimento ecológico e governam uma região nomeada em homenagem ao renomado escritor brasileiro. Estes animais, extremamente raros e vistos como fantasmas, predominam no Cerrado, onde os estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia se cruzam, e ainda carecem de uma explicação para tal fenômeno.
População e distribuição
Estimativas sugerem que as onças de coloração preta ou melânica, devido à alta presença de melanina, formam cerca de 9% do total de onças-pintadas (Panthera onca). Contudo, no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, em Minas Gerais, uma região nomeada em referência à notória obra de Guimarães Rosa, e nas proximidades da Pousada Trijunção, na junção dos três estados, elas compõem entre 40% e 48% da população desta espécie.
Esforços de pesquisa
Essa revelação veio através da dedicação e fascinação do biólogo Eduardo Fragoso, coordenador científico da ONG Onçafari, por estes felinos. O estudo é uma colaboração entre a Onçafari, a Trijunção e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), utilizando tanto armadilhas fotográficas quanto radiocolares com GPS.
Surpreendente concentração
Embora a área fosse já identificada como um possível habitat para essas panteras negras, o que realmente surpreende, conforme destaca Fragoso, é a concentração ser quase quatro vezes maior que as estimativas iniciais. Fragoso comenta: “Sempre quis estudar o Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Estava ciente da presença de onças lá, via seus rastros.”
De acordo com Guimarães Rosa, a região é descrita como o lugar onde a “cangussu preta pisa em volta”. “Cangussu” é uma das denominações para as onças-pintadas. Fragoso iniciou seu estudo gradualmente em 2020, ouvindo os sons emitidos pelas onças. No entanto, foi apenas em 2021 que ele avistou sua primeira onça-preta, através das imagens capturadas por uma armadilha fotográfica.
Em 2022, com a ajuda de 34 armadilhas fotográficas, os primeiros resultados do trabalho de Fragoso começaram a surgir. Durante o período de janeiro de 2022 até agosto de 2023, foram registrados de 25 a 31 animais. A incerteza deste número ocorre devido à dificuldade em identificar as onças-pretas. Cada onça-pintada pode ser distinguida por suas rosetas ou “pintas”, que são tão únicas quanto impressões digitais. No entanto, em onças-pretas, essas rosetas são difíceis de identificar durante o dia. Curiosamente, é à noite que as onças-pretas se tornam mais visíveis, pois as rosetas são claramente visíveis no espectro infravermelho, captado pelas câmeras das armadilhas.
Genética e adaptação ao meio ambiente
As onças-pretas têm rosetas, mas uma mutação genética causa uma maior pigmentação em seu pelo e pele. O gene responsável por essa coloração escura é dominante, o que significa que pelo menos um filhote de uma onça-preta acasalada com uma onça de coloração normal será preto. Isso levanta a questão de por que elas são tão raras. Uma razão é que a coloração escura não favorece aspectos ambientais, como a temperatura e a alta radiação solar, que aumentam o estresse térmico. Além disso, em campos abertos, elas se tornam mais perceptíveis para suas presas, comprometendo sua habilidade de caça por emboscada.
O enigmático Guirigó
No sertão de Rosa, no entanto, as coisas são diferentes. Os pesquisadores têm observado de perto um macho chamado Guirigó. Contrário ao personagem negro de “Grande Sertão Veredas”, a onça Guirigó não é um jovem, mas sim um macho mais velho e vigoroso.
Assim como o jovem personagem de Guimarães Rosa, Guirigó vive à margem das regras e se acomoda ao ambiente que o rodeia. Apesar de seu tamanho impressionante de 81 quilos, ele prefere os campos abertos e é uma visão marcante, com uma cabeça quadrada e olhos dourados que se contrastam com sua pelagem escura.
Guirigó representa a onça-preta, ou pixuna, um personagem recorrente nas obras de Rosa. Em “Meu tio o Iauaretê”, que se passa em um sertão similar ao que Guirigó habita, as onças-pretas desempenham papéis significativos, com várias delas sendo mencionadas e descritas com características distintas e personalidades marcantes.
Onças no Cerrado
Guirigó e as demais onças do Cerrado, devido à sua raridade e misticismo, trazem à vida real o mundo imaginário de Rosa, desafiando cientistas e conservacionistas a decifrar o enigma das panteras negras do sertão.
— “Não temos certeza se o comportamento de Guirigó é representativo de todas as onças da região, mas é certamente intrigante,” observa Fragoso.
Surpreendentemente, a refeição favorita de Guirigó é o tamanduá-bandeira, um formidável e vistoso predador de formigas e cupins. Apesar de seu tamanho e garras afiadas, Guirigó, devido à sua robusta saúde, parece não ter problemas ao enfrentá-lo.
Distribuição das Onças-Pretas
Existem registros desses felinos em outras regiões do Cerrado, como Pirenópolis e Chapada dos Veadeiros, ambas em Goiás, e também há relatos no Jalapão, em Tocantins. Fragoso considera promissor o potencial de encontrar onças-pretas em áreas protegidas como o Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu (MS), o Refúgio da Vida Silvestre das Veredas do Oeste Baiano (BA) e a Reserva do Desenvolvimento Sustentável Veredas do Acari (MG). Acredita-se também que haja uma considerável população desses animais na Amazônia, mas os estudos são escassos.
— “O problema principal é a contínua caça às onças em todo o Brasil. A impunidade é um grande desafio. No Cerrado, existem muitos caçadores, e as onças são frequentemente vistas como troféus. Embora o ICMBio combata essa prática, os caçadores são bem equipados e organizados, com armamentos caros”, salienta Cardoso.
Diante da constante ameaça de caçadores e do crescente desmatamento, animais em risco de extinção, como as onças-pintadas, encontram refúgio principalmente em áreas de conservação restrita. Como bem expressou Guimarães Rosa, para esses animais, “viver é muito perigoso”.
Matéria original de Um Só Planeta
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