Tais áreas são cruciais para a sobrevivência das onças; esse é mais um dos vários motivos da urgência de ações que combatam o desmatamento e a destruição ambiental como o garimpo nessas áreas
Cientistas listaram as unidades de conservação e as terras indígenas (TIs) mais importantes para populações de onças-pintadas (Panthera onca) na Amazônia brasileira. Essas áreas são alvo de crimes como desmatamento e extração de ouro e merecem atenção urgente do poder público.
Alvo de intenso garimpo ilegal e derrubadas, a Terra Indígena Yanomami (RR/AM) abriga cerca de 27 mil indígenas de 8 povos. Também resguarda um dos maiores grupos de onças-pintadas da floresta equatorial brasileira, revela um estudo publicado na revista Nature, em fevereiro.
O território Yanomami é uma das 10 áreas chave listadas no trabalho para manter os grandes felinos, além das TIs Cachoeira Seca, Apyterewa, Kayapó, Marãiwatsédé, Uru-Eu-Wau-Wau e Araribóia, a Estação Ecológica da Terra do Meio e os parques nacionais Indígena do Xingu e Mapinguari.
“O estudo reforça a importância dessas terras para proteger a biodiversidade e as confirma como santuários para onças e outras espécies”, destaca Marcelo Oliveira, líder do Programa de Proteção de Espécies Ameaçadas da ong WWF-Brasil e um dos co-autores do trabalho.
A análise pesou a situação e ameaças em 447 terras protegidas na Amazônia brasileira – 330 reservas indígenas e 117 unidades de conservação. O conjunto abriga estimadas 26.680 onças-pintadas. Nas 10 áreas prioritárias viveriam 3.511 onças-pintadas, ou 13,2% do total. Há felinos fora dessas terras, claro.
Chefe do Centro Nacional de Pesquisas e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP) do ICMBio, Ronaldo Morato avalia que os números
são razoáveis para a espécie nesses ambientes e, sobretudo, consolidam a Amazônia como o maior abrigo global das onças-pintadas.
“As estimativas devem ser aprofundadas, pois foram baseadas em pontos amostrados em estudos científicos. Há lacunas na Amazônia toda [para o número de onças-pintadas]”, destaca o veterinário e pós-doutor pelo Smithsonian Conservation Biology Institute (Estados Unidos).
Rede de conflitos
Grupos de onças encolhem quanto mais perto de áreas afetadas por produção rural, urbanização e obras de infraestrutura, mostra o estudo na Nature. A floresta amazônica é derrubada e queimada especialmente para a formação de pastagens para gado. Para a soja, há uma moratória desde 2006.
A maioria das 10 áreas prioritárias para pintadas é vizinha do Arco do Desmatamento, de onde a agropecuária avança sobre a floresta. De 2019 a 2022, só a TI Apyterewa e a Estação Ecológica da Terra do Meio perderam somados 445 Km2 de florestas, indica o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). A área é similar a ⅓ do território de São Paulo (SP).
Enquanto isso, um sistema de alertas do INPE aponta que o desmatamento na Amazônia nesse fevereiro foi de 322 Km², crescendo 61,8% em relação aos 199 Km² do mesmo mês do ano anterior e batendo um recorde histórico. Os líderes em destruição foram Mato Grosso, Pará e Amazonas.
Uma análise publicada na revista Conservation Science and Practice em junho de 2021 descreve que 1.422 onças-pintadas foram mortas ou afugentadas de onde viviam pela derrubada e queima da floresta equatorial brasileira, apenas entre 2016 e 2019. A média anual foi de 355 animais afetados.
Em média, 150 onças pintadas e pardas são mortas a tiros ou por comerem carcaças envenenadas após atacar rebanhos em regiões de pecuária na Amazônia. “As espécies são ameaçadas de extinção e não podem ser abatidas sob qualquer motivo”, lembra Morato, do Cenap.
Miguel Monteiro é pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e faz parte de um grupo que pesquisa há 15 anos a conservação de felinos na Amazônia. Ele avalia que os conflitos entre pessoas e onças mudam conforme as distintas realidades socioeconômicas da floresta.
“No Arco do Desmatamento, a espécie é pressionada por desmate e fogo associados à grande agropecuária, que pode arcar com prevenção e prejuízos, enquanto que em áreas preservadas poucas cabeças abatidas por onças podem significar um grande prejuízo para pequenos produtores”, diz.
Monteiro investiga esses incidentes nas reservas de desenvolvimento sustentável (RDS) Mamirauá e Amanã, no Amazonas. Junto com a Estação Ecológica de Anavilhanas e o Parque Nacional do Jaú, elas compõem um Sítio do Patrimônio Natural da Humanidade reconhecido pela Unesco.
Nas reservas vivem pescadores, agricultores familiares e extrativistas de produtos não madeireiros. A média anual de onças-pintadas mortas na região é de 70 animais. Elas atacam de galinhas a bois, sobretudo no início e no fim das cheias, quando os felinos buscam terras mais altas e até o topo de árvores.
Apesar das perdas, a população de pintadas se mantém estável ao longo dos anos por lá. Porções ainda mais íntegras e com poucas pessoas, sobretudo na reserva de Amanã e no parque do Jaú, são grandes abrigos desses animais que ajudam a equilibrar seus números na região.
A crise climática também assombra o maior felino das Américas. Uma pesquisa editada na revista Animal Conservation, em fevereiro, alerta que mamíferos terrestres na Amazônia brasileira são ameaçados pelas mudanças do clima e da vegetação regional, dentro e fora de áreas protegidas.
O trabalho destaca que o desmatamento contínuo fora desses territórios “é uma perspectiva preocupante para a conservação das espécies regionais. Além disso, a mudança no uso da terra fora das áreas protegidas pode afetar a vida selvagem dentro das áreas protegidas”.
Reduzindo pressões
Por ser um grande predador, a matança de onças pode desequilibrar os números de outros animais e plantas e comprometer a saúde da floresta. Assim, o futuro da Amazônia depende da proteção estrita dessa e de outras espécies que mantêm essa grande máquina natural funcionando.
“O desmate reduz os habitats da onça e forçará conflitos por espaço e alimentos entre esses animais. Ela é uma espécie guarda-chuva cuja conservação assegura a proteção de uma quantidade muito maior de biodiversidade”, reforça Ronaldo Morato, do Cenap.
Além das 10 áreas carentes de ações imediatas para proteger as onças-pintadas, outros 74 territórios foram listados na Amazônia para ações de curto prazo. Entre as medidas sugeridas pelos cientistas estão reforçar agências como Ibama e ICMBio, desmanteladas na administração Bolsonaro.
O governo investe menos de um dólar [hoje cerca de R$ 5,00] por km² em áreas protegidas na Amazônia, excluindo as terras indígenas. “A nova Presidência e a retomada de políticas públicas renovam as esperanças para a Amazônia e as onças-pintadas”, pontua Marcelo Oliveira, do WWF-Brasil.
O pacote de ações pede fiscalização e punição severas a crimes socioambientais, especialmente nas terras mais relevantes à proteção dos felinos. Garimpeiros já são removidos da TI Yanomami, mas esse e outros delitos ainda ocorrem em inúmeras outras áreas protegidas na Amazônia.
Agir conforme a dinâmica das ameaças sobre as populações de pintadas é uma boa estratégia, afirma o pesquisador Miguel Monteiro, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. “Isso vai melhorar a convivência de pessoas e onças em áreas vitais à sua conservação”, destaca.
Além de levar alternativas econômicas à criação de animais domésticos, é possível afastar onças com cercas elétricas ou sonoras e desenvolver um turismo associado à observação de animais livres na natureza. Essas experiências aumentam a tolerância humana à espécie.
“Não há uma prática isolada para conter conflitos entre humanos e onças. Por isso, não podemos pensar sua conservação sem envolver as pessoas que também vivem no complexo sistema da floresta”, reconhece Monteiro.
Ao mesmo tempo, uma iniciativa para perpetuar populações de onças-pintadas pode romper fronteiras. Governos, cientistas e ongs planejam conectar variadas áreas protegidas e preservadas vitais à espécie em países das Américas do Sul e Central, até 2030 (mapa abaixo).
A ideia é reduzir conflitos gente-onças, fortalecer os ecossistemas naturais e estimular um desenvolvimento econômico sustentável. “É uma agenda forte de conectividade e de restauração de áreas protegidas na Amazônia e outros biomas que começará logo a rodar”, conta Morato, do Cenap.
Onças-pintadas ocupam grandes áreas para se alimentar e reproduzir. Logo, sua preservação exige planos também de larga escala, com redes de áreas protegidas interligadas por corredores de biodiversidade. As estimativas são de que a espécie já foi extinta de 50% de sua distribuição histórica.
“O Brasil tem a responsabilidade de cuidar da maior população planetária de onças. Que não cheguemos numa situação limite para a espécie na Amazônia como há em outros biomas do país”, destaca Oliveira, do WWF-Brasil.
Fonte: O Eco
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