Esta é a segunda parte da séries de matérias sobre grilagem de terras na Amazônia
Por Gabriel Cardoso Carrero, Robert Tovey Walker,
Cynthia Suzanne Simmons e Philip Martin Fearnside via Amazônia Real
Apropriação federal de terras do governo estadual
Quando a Amazônia brasileira se abriu para o desenvolvimento na década de 1970, o governo federal reivindicou terras dos governos estaduais para a colonização e conservação da biodiversidade. O órgão federal criado para a alocação de terras nesse período inicial foi o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Confira a parte 1 da série de reportagens contando tudo sobre grilagem de terras na Amazônia:
Na época, o INCRA tinha jurisdição sobre ~30% das terras do Brasil, que na Amazônia incluíam terras de governos estaduais em um buffer de 100 km em ambos os lados de todas as rodovias federais, incluindo também aquelas em planejamento (Decreto-Lei 1.164/1971). Ao longo das rodovias o INCRA demarcava terras para colonização, pois o governo militar considerava a ocupação essencial para integrar a Amazônia à economia nacional [1, 2].
A maior parte da imigração foi direcionada aos estados do Pará, Mato Grosso e Rondônia, todos mais próximos do centro econômico do país no sul do Brasil do que o estado do Amazonas. Muitos projetos de assentamentos rurais foram criados ao longo dessas rodovias, com pequenas propriedades de 50 a 100 ha; nos referimos a todos eles como assentamentos “convencionais”.
Nos anos 2000, novos assentamentos convencionais foram criados para acomodar as demandas políticas dos recém-chegados sem-terra [3]. Além disso, foram criadas novas categorias de assentamentos para conceder direitos de usufruto às comunidades ribeirinhas. Essas categorias envolvem a propriedade comunal e são orientadas para a exploração de recursos renováveis, como extração florestal e pesca e caça artesanal, com o objetivo de minimizar os impactos ambientais [4]. Nós nos referimos a eles como ” assentamentos comunais “.
Um segundo tipo de apropriação de terras, executado por órgãos governamentais de interesse público, compreende a designação de unidades de conservação para conservação da biodiversidade. As unidades de conservação (UCs) do Brasil são oficialmente agrupadas em duas classes. O tipo “proteção integral” permite apenas pesquisa e turismo. O tipo “uso sustentável” inclui categorias que permitem a extração de produtos florestais não-madeireiros, manejo florestal (para madeira) e agricultura de subsistência (por exemplo, reservas extrativistas, florestas estaduais e nacionais e reservas de uso sustentável).
O governo federal não se apropria de terras para destinar aos povos indígenas. Em vez disso, auxilia na formalização de terras indígenas oficialmente reconhecidas. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão federal responsável pela gestão dos assuntos indígenas, faz a identificação, demarcação e registro desses territórios.
Apropriação privada de terras públicas
Para fins de nossa análise, propriedades privadas lícitas são ( i ) propriedades em projetos de assentamento convencional (PAs)dentro da área máxima permitida(Lei 8.629/1993 com alterações posteriores), (ii) imóveis com Certidão de Registro de Imóveis Rurais (CCIR) (Lei 4.974/1966 modificada pela Lei 10.267/2001), e (iii) terras reivindicadas em terras públicas na Amazônia que são reconhecidos sob um conjunto de regras dadas pela Lei 11.952 de 2009 (conhecida como ” Lei Terra Legal “).
As terras públicas não destinadas à colonização ou conservação e que não são privadas são comumente referidas como “terras devolutas”, ou terras públicas não designadas (UPLs). Em tese, tais terras não podem ser de apropriação privada (Constituição Federal, artigos 183 e 191). A lei do Terra Legal contraria a Constituição e permite a titulação de terras ocupadas em UPLs, de acordo com certos pré-requisitos,concedendo anistia para grileiros.
No entanto, as UPLs do tipo B, conhecidas como florestas públicas não designadas, não podem se tornar propriedade agrícola privada, atendendo ao artigo 4º, inciso III, da Lei Terra Legal , que coloca tais terras nos termos da Lei 11.284 de 2006 que regulamenta o uso de florestas públicas. Essas mudanças estimularam a especulação imobiliária em toda a Amazônia brasileira [5], mas isso parece ser apenas o começo.
Existem inconsistências devido às múltiplas modificações e emendas que foram aprovadas para regular a propriedade privada no Brasil, especialmente na Amazônia [6]. Em suma, essas mudanças favoreceram a legitimação da apropriação ilegal de terras públicas para atividades produtivas em detrimento da reforma agrária [6-8].
Interesses privados não apenas reivindicam terras públicas não designadas, mas também terras indígenas e áreas alocadas pelo governo para conservação da biodiversidade [9. 10]. A lei federal proíbe completamente tais reivindicações de terras. Apropriações de propriedades privadas têm sido amplamente documentadas, por exemplo, quando fazendeiros de grande escala desapropriam violentamente camponeses [11]. Aqui, consideramos apenas terras públicas (tanto UPLs quanto terras que o governo federal ou estadual reservaram com restrições de uso) e terras indígenas, que fazem parte do patrimônio da união federal.
As propriedades privadas lícitas possuem Certidão de Cadastro de Imóveis Rurais (CNIR) ou título do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), supostamente atualizados no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF). As participações informais sem documentação são bastante comuns . Tais reivindicações – tipicamente de agricultores pobres – provavelmente são pequenas em comparação com reivindicações ilícitas identificáveis, a maioria das quais está associada a grandes proprietários de terras e empresas.
Cadastro Ambiental Rural (CAR) como substituto da propriedade da terra
O CAR (Cadastro Ambiental Rural), é um registro eletrônico público destinado ao controle, monitoramento e planejamento ambiental. O banco de dados do CAR integra as informações ambientais das propriedades rurais privadas e das reivindicações de posse relativas ao uso e cobertura da terra (MMA, Instrução Normativa 2 de 2014). Embora o CAR não seja um instrumento que estabeleça a propriedade da terra (ou seja, legalização), muitos o utilizaram como um instrumento de grilagem que facilita a legalização de reivindicações ilícitas em terras públicas [12-14].
Quando o proprietário se cadastra no CAR, é gerado um documento vinculando o cadastro ao seu CPF, e este documento tem sido utilizado como “prova” substituta de propriedade da posse da terra em caso de disputa. Aqueles que registram propriedades ilícitas também costumam desmatar parte da posse e plantar pastagens como forma de demonstrar “uso produtivo”, que no Brasil muitas vezes tem sido suficiente para estabelecer a posse de fato.
Entre 2019 e 2020, a área de registros de posse de terras no CAR nas florestas públicas não designadas tipo B, que ocupam ~500.000 km2 da Amazônia, aumentou de 23% para 32% [15, 16]. Essas áreas do CAR abrangeram 75% da área desmatada em florestas públicas não designadas, e o desmatamento anual ali cresceu de 450 km 2 em 2016 para 1.950 km2 em 2020, ou 330% no período [16]. A base de dados do CAR dá uma ideia da magnitude das reivindicações autodeclaradas em terras públicas, lícitas ou não.[17]
Para ler as referências mencionadas, acesse Amazônia Real
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