Em um artigo publicado recentemente no American Journal of Biological Anthropology, o primatólogo Tiago Falótico e o etólogo Eduardo Ottoni mostraram uma intrigante correlação entre a diversidade no uso de ferramentas e a terrestrialidade em um grupo de macacos terrestres que habita a Serra da Capivara, Piauí. Segundo Falótico, o grupo é notavelmente peculiar, utilizando ferramentas de uma forma nunca antes observada.
Falótico, pesquisador da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), afirma que “os macacos-prego do Parque Nacional da Serra da Capivara passam 41% do tempo no chão, o que é uma taxa altíssima. Os macacos neotropicais são quase todos arborícolas, então há poucos relatos sobre esse tema.”
O uso diversificado de ferramentas por esse grupo é surpreendente. Em contraste com um grupo de macacos da Fazenda Boa Vista, no Piauí, que usa ferramentas apenas para quebrar cocos, os macacos da Serra da Capivara usam ferramentas de pedra para escavar alimentos como aranhas, batatinhas e raízes, e até para comunicar agressão.
Em um estudo anterior de 2013, a dupla de cientistas também havia descoberto que as fêmeas deste grupo da Serra da Capivara adotaram um novo comportamento para “exibição sexual”, jogando pedrinhas nos machos para chamar a atenção.
Terrestrialidade e inovação
Falótico sugeriu que a hipótese da correlação entre a terrestrialidade e o uso de ferramentas pode estar associada ao acesso a recursos. “É preciso estar no chão um bom período para ter tempo de inovar, o que esse grupo da Serra fez, inclusive, com ferramentas para cavar,” explicou.
No entanto, a terrestrialidade não é o único fator que influencia o uso de uma maior diversidade de ferramentas. A disponibilidade de recursos, como pedras adequadas para o uso como ferramentas, é outro fator determinante.
Coleta de dados e observações
Para chegar à taxa de uso do solo pelos macacos-prego, os cientistas usaram uma amostragem de varredura, seguindo o grupo de 30 a 40 indivíduos por dois anos. A cada 20 minutos, registravam as atividades de todos os macacos, observando o que comiam, se estavam se deslocando, realizando grooming [catação], e em que altura do chão se encontravam.
Contrariando uma hipótese descrita na literatura científica de que as fêmeas teriam aversão ao risco e iriam menos para o chão, a dupla de pesquisadores não encontrou diferenças significativas entre os sexos em relação à terrestrialidade.
Os macacos terrestres da Serra da Capivara usam ferramentas não só para quebrar cocos, mas também para escavar em busca de comida, como aranhas, batatas e raízes, e até para sinalizar agressão. Um comportamento peculiar foi observado nas fêmeas do grupo: elas jogam pedras nos machos para chamar atenção, o que se acredita ser um comportamento de acasalamento.
Planos para o futuro
Falótico adianta que, em um futuro trabalho, eles pretendem verificar se uma terceira população de macacos-prego do Parque Nacional de Ubajara, no Ceará, se encaixa na hipótese da correlação entre a terrestrialidade e a diversidade de uso de ferramentas. Além disso, os pesquisadores também estão interessados em entender a influência da terrestrialidade no uso de ferramentas, incluindo a ideia de percepção de risco no solo.
Em outro artigo, assinado por Tatiane Valença, mestre em psicologia experimental pela USP, em parceria com Falótico, eles descreveram a vida e a morte de um macaco infante com uma deficiência na perna. A pesquisa revelou que a terrestrialidade pode influenciar o comportamento dos macacos-prego em relação a indivíduos deficientes. Segundo Valença, “a novidade é a hipótese de que a terrestrealidade possa ter influenciado a evolução do comportamento (ou dos cuidados) com indivíduos deficientes.”
O estudo continua a avançar, com uma próxima pesquisa já planejada para focar na terceira população de macacos do Parque de Ubajara. “Há muita pedra no chão e vai ser muito interessante poder comparar com a Serra da Capivara, porque vamos conseguir controlar a variável ‘disponibilidade de recursos líticos’”, adianta Falótico.
Por fim, a pesquisa também evidenciou que a terrestrialidade pode influenciar o comportamento dos macacos-prego em relação a indivíduos deficientes. Foi observado que uma mãe macaco-prego adaptou seu comportamento para cuidar de um filhote com deficiência na perna, até mesmo utilizando sua cauda para segurar o filhote enquanto quebrava cocos. Isso indica que os macacos-prego podem ajustar seus comportamentos para acomodar a deficiência de um membro do grupo, uma descoberta que lança uma nova luz sobre a complexidade do comportamento social desses animais.
Trabalho apoiado pela Agência Fapesp
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