Tais estradas foram construídas na fronteira do Brasil com o Peru em áreas intactas da Amazônia, onde não apenas prejudicam a maior biodiversidade do mundo como também impactam terras indígenas isoladas.
Definidas como um dos principais vetores para a expansão do desmatamento, as construções de estradas na Amazônia – bem como os projetos – são alvos de ações judiciais para conter seus impactos. Desde 2019, o Ministério Público Federal (MPF) no Acre impetra ações civis públicas (ACP) junto à Justiça contra projetos de abertura de rodovias que têm como promessas tirar municípios do isolamento geográfico com o restante do estado ou o fortalecimento da economia a partir da integração (mais uma) com o Peru.
Com a ascensão do bolsonarismo a partir das eleições de 2018, o poder político acreano foi dominado por lideranças cujo discurso é priorizar o agronegócio como carro-chefe da economia – após duas décadas de “florestania” dos governos petistas –, sendo a abertura de estradas em locais intactos de Floresta Amazônia uma das bandeiras principais bandeiras de “desenvolvimento econômico” para o Acre.
Entre os projetos mais conhecidos está a interligação de Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá, com a cidade peruana de Pucallpa, departamento de Ucayali, no Peru. A rodovia é tida como uma das maiores ameaças para a preservação de uma das regiões mais intocadas da Floresta Amazônica (tanto do lado do Brasil quanto do Peru). Além de concentrar uma das mais ricas biodiversidades do mundo, ela é moradia para povos indígenas contatados e em isolamento voluntário.
Para facilitar o “tratoraço” de sua construção, a classe política bolsonarista apresentou o projeto de lei (PL 6024/2019) que transforma o Parque Nacional da Serra do Divisor numa Área de Proteção Ambiental (APA).
O MPF entrou com recurso para anular o processo licitatório do Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre (Dnit), que contratava a empresa que faria os estudos de viabilidade de abertura da estrada. Entre sentenças favoráveis e contrárias, o processo segue em tramitação no Tribunal Regional Federal da 1o Região.
Além da conexão rodoviária com o Peru, outros três projetos apresentam potencial tão devastador quanto. São eles: a abertura de estrada entre os municípios de Rodrigues Alves e Porto Walter, no Alto Rio Juruá; a conexão entre Feijó, no Acre, e Envira, no Amazonas; e a ligação de Santa Rosa do Purus com Manoel Urbano. Todos estes projetos causariam impactos em unidades de conservação e terras indígenas.
Os traçados destas rodovias intermunicipais possuem potencial devastador, deslocando o chamado “arco do desmatamento” para regiões da Amazônia inacessíveis para a indústria madeireira e da grilagem de terras.
Caso suas construções de fato se consolidem, essas estradas se conectariam a um hoje já consolidado vetor de devastação da floresta no Acre: a BR-364. Apesar de atualmente encontrar-se destruída pela falta de manutenção ao longo dos últimos quatro anos, a rodovia federal, no trecho entre a capital Rio Branco e Cruzeiro do Sul, está consolidada como a nova fronteira do desmatamento. Não por acaso, os municípios localizados às suas margens (Sena Madureira, Tarauacá e Feijó) estão em posição de destaque nos rankings de desmate e queimadas.
A ação civil pública mais recente movida pelo MPF está relacionada à abertura de um ramal (estradas de chão) entre Santa Rosa do Purus e Manoel Urbano. A obra é ilegal pois, segundo o MPF, acontece sem o devido licencimaneto ambiental, tampouco a consulta aos povos indígenas afetados. A obra é tocada pela prefeitura de Santa Rosa do Purus, que busca ligar o ramal a uma estrada de um projeto de manejo madeireiro.
Santa Rosa do Purus é um dos quatro municípios acreanos cujo acesso só é possível via fluvial ou aérea. Ao abrir o ramal por conta própria, a prefeitura justifica o fim do isolamento como principal justificativa. Porém, para o MPF, a obra é ilegal por descumprir todas as normas de licenciamento ambiental e a prévia consulta aos indígenas.
A mesma situação se dá com a estrada aberta pelo governo estadual entre Rodrigues Alves e Porto Walter. O ramal chegou a ser oficialmente inaugurado em setembro do ano passado, às vésperas das eleições. A região, o Vale do Juruá, é reduto eleitoral do governador reeleito Gladson Cameli (PP). O governo foi quem fez o próprio licenciamento ambiental da obra, alegando que as áreas impactadas são estaduais.
Fontes de ((o))eco junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) afirmam que a Terra Indígena Jaminawa, do Igarapé Preto, teve parte de sua área “cortada” pelo ramal. O caso também é apurado pelo MPF, que, em conjunto com o Ministério Público Estadual, pediram à Justiça a anulação da licença emitida pelo órgão do governo, o Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac).
Reparação aos indígenas
Neste começo de 2023, o MPF no Acre ingressou uma nova ação civil pública, desta feita pedindo indenização de R$ 10 milhões como reparação aos povos indígenas impactados pela pavimentação da BR-364. A obra da estrada entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, além da construção das pontes, deu-se durante os 20 anos de governos petistas no estado, com o apoio dos governos Lula e Dilma Rousseff.
A Terra Indígena Campinas Katukina, em Cruzeiro do Sul, é a mais impactada por ser cortada ao meio pela rodovia. Apesar de toda a sinalização e lombadas colocadas dentro da TI, os Katukina ficam expostos ao constante tráfego de veículos. A estrada também facilita a entrada de invasores, sobretudo caçadores.
“A ação é extremamente importante justamente para a implementação de medidas de mitigação. Eu acho bastante importante, saudável e necessário. Só tenho elogios a fazer. É preciso de fato recuperar essa história, essa história de atenção aos povos daquela região”, diz a antropóloga Edilene Coffaci de Lima, da Universidade Federal do Paraná.
Nos anos 2000, ela foi a responsável por elaborar o componente indígena dos processos de licenciamento (EIA-Rima) da BR-364. Ela lembra que uma das exigências previstas era a de que, 10 anos após o asfaltamento da estrada, novos estudos técnicos fossem realizados para avaliar os seus impactos, bem como propor novos planos de mitigação.
“Já se passaram 20 anos e isso não aconteceu.” Para a antropóloga, os R$10 milhões de reparo pedidos pelo MPF podem ser usados para essas novas estratégias de redução dos danos da rodovia para os povos indígenas. Como ela destaca, em certo momento, tais recursos vão acabar. “É como eu coloquei lá meu relatório: se os danos são permanentes, as medidas mitigatórias devem ser permanentes. A rodovia não vai desaparecer da vida destes povos”, afirma.
Para a especialista, além de pedir o pagamento da indenização, a ação movida pelo MPF deveria solicitar, ainda, que os governos do Acre e federal tivessem planos permanentes de redução de impactos da BR-364 para os povos indígenas. “Sem isso, nós vamos estar de tempos em tempos voltando ao mesmo lugar.”
Como a antropóloga destaca, a pavimentação da BR-364 tem causado sérios impactos aos Katukina. “Eles hoje não têm mais a caça, dependem da comida de mercado, Mais além disso, as visitações entre as aldeias foi alterada, toda a sociabilidade foi modificada. Elas cederam seu território, e como digo no meu relatório, cederam o seu bem-estar. Os prejuízos socioambientais são inúmeros”, comenta Edilene.
Além da TI Campinas Katukina, a ACP movida pelo MPF cita outras TIs afetadas pelo traçado da rodovia BR-364: a TI Katukina/Kaxinawá (povos Huni Kuin e Shanenawa) no município de Feijó, a TI Kaxinawá da Colônia 27 (povo Huni Kuin) no município de Tarauacá, outras terras indiretamente impactadas são a Igarapé do Caucho (povo Huni Kuin) nos municípios de Feijó/Tarauacá, TI Kaxinawá Praia do Carapanã, e a TI do Rio Gregório (dos povos Katukina e Yawanawá).
Fonte: O Eco
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