Permeada de desconhecimento pela ciência, o tatu-de-rabo-mole-grande foi registrado pela primeira vez no Pantanal.
Pouco conhecida pela ciência e de raro avistamento, a maior espécie de tatu do gênero Cabassous teve registros da sua presença confirmados pela primeira vez no Pantanal. Trata-se do tatu-de-rabo-mole-grande (Cabassous tatouay), que até então tinha ocorrência confirmada na Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado e Pampa, entre estados do leste e sul do Brasil. A espécie, assim como o tatu-canastra (Priodontes maximus) – maior e mais rara espécie de tatu do mundo –, costuma viver em ambientes florestados, tendo raras ocorrências em áreas degradadas.
A confirmação inédita da espécie no Pantanal acaba de ser publicada em artigo da última edição da Edentata, revista científica e de divulgação do grupo de especialistas em tamanduás, preguiças e tatus da Comissão de Sobrevivência de Espécies da União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN SSC, da sigla em inglês).
“Sua presença no bioma parecia duvidosa, sem registros confirmados”, relata trecho do artigo.
O estudo, que chama a atenção para a inclusão da espécie na lista de mamíferos de Mato Grosso do Sul, assim como para a importância da conservação da área de transição entre biomas, compilou registros do animal em vida livre entre 2013 e 2021, na região ocidental do estado, que compreende partes do Cerrado e Pantanal.
No total, a pesquisa cobriu mais de 16 mil km² compostos tanto de savanas secas quanto de inundadas sazonalmente. “As savanas são um mosaico de pastagem, pastagem nativa, fragmentos de floresta e vegetações típicas”, afirma o artigo.
Os registros que integram o estudo foram obtidos através de levantamento de carcaças de animais em estradas, armadilhas fotográficas e observação direta. Os dados de animais mortos nas estradas, especificamente, são do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS), que desde 2013 monitora o impacto de colisões veiculares na vida selvagem na BR-262 e MS-339, ambas rodovias em território sul-mat0-grossense.
No total, a pesquisa confirmou 12 registros do tatu-de-rabo-mole-grande na área de estudo, tendo oito sido registrados no Cerrado e quatro no Pantanal. No Pantanal, três dos registros ocorreram em Aquidauana (MS) – um deles identificado em observação direta e os outros dois em armadilhas fotográficas – e um em Miranda (MS) – identificado a partir de uma carcaça na BR-262.
“Nós confirmamos pela primeira vez a presença do C. tatouay no Pantanal, com registros nos ambientes de transição entre Cerrado e Pantanal”, conclui a pesquisa, afirmando que o único registro prévio da espécie no Pantanal não estava dentro dos limites do bioma, segundo mapas do IBGE.
Os tatus e os Cabassous
Os tatus pertencem à superordem dos Xenarthra, a quem também pertencem as espécies de tamanduás e bichos-preguiça. Encontrado na América do Norte, América Central e América do Sul, no Brasil os tatus ocorrem em mais de 10 espécies.
Dentro da superordem dos Xenarthra, que é considerado um dos grupos de mamíferos mais antigos e pré-históricos, o tatu-de-rabo-mole-grande integra a ordem Cingulata – na qual estão todas espécies de tatus existentes –, e mais especificamente o gênero Cabassous.
Neste gênero, além do tatu-de-rabo-mole-grande, estão outras quatro espécies: o tatu-de-rabo-mole do Chaco (Cabassous chacoensis); o tatu-de-rabo-mole da Centroamerica (Cabassous centralis); e os tatus-de-rabo-mole-pequeno, até recentemente identificado apenas como uma espécie, mas que foram desmembrados entre Cabassous unicinctus e Cabassous squamicaudis.
Entre os Cabassous, a principal característica morfológica é a cauda sem cobertura, que justamente dá origem ao nome popular “rabo-mole”. Ou seja, suas caudas não são completamente cobertas pelos escudos dérmicos que geralmente formam as carapaças dos tatus. As espécies desse gênero também são conhecidas por terem entre 11 e 14 bandas móveis na carapaça e pelos seus antepés. “Que exibem garras robustas no terceiro e quarto dígitos (dedos)”, explica outro trecho da pesquisa.
O que torna o tatu-de-rabo-mole-grande tão diferente das demais espécies deste gênero, primeiro, é o tamanho. A espécie é a maior das cinco que integram os Cabassous, podendo o seu tamanho médio chegar a 47,9 cm, com 4,8 kg. Em segundo lugar, estão as orelhas, igualmente grandes, que podem medir em média 4,1 cm.
“[O padrão] de escamas na testa, orelha grande, o tamanho do corpo são as diferenças mais básicas para a gente observar o tatu-de-rabo-mole-grande”, explica a ((o))eco o primeiro autor do artigo, o biólogo Gabriel Massocato, que atua há mais de 10 anos no Projeto Tatu-canastra, do ICAS.
No Brasil, a espécie ocorre nas regiões nordeste, leste, centro-oeste e sul. E também há registros do tatu-de-rabo-mole-grande no noroeste do Uruguai, nordeste da Argentina e sudeste do Paraguai. “A espécie é relatada na Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado e Pampa”, afirma o artigo, ao mencionar que outros pesquisadores já tinham previsto a ocorrência da espécie no Pantanal, mas até então sem confirmação.
Com uma dieta especialista insetívora, o tatu-de-rabo-mole-grande se alimenta apenas de insetos, principalmente formigas e cupins. Por comida, ele faz buscas tanto na superfície quanto no subsolo. Já sobre a rotina, os poucos registros do mamífero na literatura sugerem que ela pode ser noturna ou diurna.
“Eles tendem a consumir insetos específicos, não tem uma maior diversidade. Enquanto que outras espécies, como tatu-galinha, do gênero Daypus, já tem uma dieta insetívora generalista, consome vários tipos de espécie, como formigas, cupins, besouros, larvas de besouros”, explica a ((o))eco o segundo autor da pesquisa, o biólogo Mateus Yan, mestrando em Ecologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Incógnitas para a ciência
Pouco conhecido pela ciência, o tatu-de-rabo-mole-grande enfrenta dificuldades para ser reconhecido quando é encontrado, fenômeno que costuma ser raro. “É uma espécie, a gente acredita, que é muito fossorial (passa a maior parte do tempo embaixo da terra), então é difícil você observar”, comenta Massocato.
A semelhança com outras espécies do gênero Cabassous ainda faz com que registros prévios possam ter sido falsos, aponta trecho da pesquisa. “O tatu-de-rabo-mole-grande, com base no número de artigos publicados sobre a espécie, é uma das que menos foi estudada”, conta Yan. E nas pesquisas que de alguma forma mencionam a espécie, diz ele, a maioria não a tem como alvo. “São estudos de levantamento de mamíferos em que a espécie acaba ocorrendo”, acrescenta.
A falta de artigos científicos e publicações-alvo sobre essa espécie, associado às suas características biológicas, faz com que o tatu-de-rabo-mole-grande seja considerado difícil de ser estudado e uma das mais raras espécies de ser avistadas entre os tatus.
“Quase nada tem de informação, são poucos estudos. Eu acho que por conta da raridade [de avistamento] da espécie”, completa Massocato.
Tudo isso faz com que figure entre os déficits de informação da espécie um que é primordial para a elaboração de medidas de conservação: a tendência populacional. Na lista vermelha de espécies ameaçadas da IUCN, por exemplo, o tatu-de-rabo-mole-grande é enquadrado como “Menos Preocupante” para o risco de extinção, mas os dados sobre o crescimento ou declínio da sua população são desconhecidos.
“Em várias listas estaduais do Brasil ela tem dados deficientes. Como essas populações estão, o que ameaça de fato a espécie, como que essas populações ocorrem em cada bioma a gente não sabe”, comenta Yan ao mencionar que informações básicas como o padrão de atividade do tatu-de-rabo-mole-grande ainda é desconhecido.
Em meio a escassez de dados, o pesquisador relata que o que se sabe é que, além de atualmente ser considerada pouco preocupante para a extinção, a espécie possui uma grande distribuição no País. “Mas se a gente pegar alguns pontos locais, ou em determinados biomas, pode ser que a espécie esteja criticamente ameaçada por conta dessa falta de registros”, esclarece ele, destacando a inexistência de artigos que demonstrem a densidade e tendência populacional da espécie.
“Para o tatu-de-rabo-mole-grande, somente com um trabalho, um estudo de campo, uma pesquisa, a gente vai conseguir falar mesmo se o animal é raro ou é só raro de ser observado”, diz Massocato.
Áreas de transição, corredores naturais de biodiversidade
Assim como o tatu-canastra (Priodontes maximus), o tatu-de-rabo-mole-grande também costuma viver em ambientes florestados. Em áreas muito degradadas ou utilizadas intensivamente por atividades agrícolas, pesquisadores que já estudaram eventualmente a espécie relatam que ela se torna rara, praticamente não existente.
Nesse sentido, o artigo recém publicado reforça a importância de áreas de transição para a biodiversidade. “Elas estão proporcionando que as espécies de ambos os biomas consigam se conectar, interagir e conseguir a expandir as suas áreas de ocorrência”, comenta Yan.
O desenvolvimento de estratégias de conservação nessas regiões, especialmente para áreas que sofrem conversão de vegetação nativa para pasto e agricultura, se torna um caminho importante para a manutenção da biodiversidade. Retrato disso é o que ocorre no Pantanal e Cerrado, que, respectivamente, entre 1985 e 2021 perderam 1,9 milhão e 27,9 milhões de vegetação nativa.
“Se você avança com o desmatamento, plantação, agricultura, alterando esses ambientes, você está perdendo essas áreas de transição e, consequentemente, vai estar isolando essas espécies […], a gente pode estar causando a extinção em curto prazo dessas espécies”, acrescenta Massocato.
O fato de um dos exemplares de tatu-do-rabo-mole-grande do Pantanal ter sido encontrado já morto na BR-262, em Miranda (MS) – além de outros três encontrados mortos no Cerrado –, também leva os pesquisadores a considerarem as rodovias como outra ameaça possível para a espécie. “[Imagina] uma área cheia de pasto, de campo aberto. A espécie precisa cruzar isso e quando ela cruza para ter acesso a um outro fragmento florestal, ela acaba passando pela rodovia”, explica Yan.
Além da inclusão na lista de mamíferos de Mato Grosso do Sul, a pesquisa recém publicada também enfatiza a necessidade de novas pesquisas na região, tanto no Pantanal quanto na sua área de transição com o Cerrado, para entender a distribuição, associação de habitats e a ecologia desse mamífero enigmático que é o tatu-de-rabo-mole.
“É importante para começar a propor estratégias de conservação e dedicar esforços para estudos dessa população na região”, declara o biólogo. “Para política pública, esforços estratégicos de conservação das espécies, dos biomas, esse achado mostra que é muito importante a conexão entre os biomas”, conclui Massocato.
Fonte: O Eco
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