O majestoso rio Solimões, a veia central da floresta Amazônica, que outrora foi um curso d’água caudaloso e vital, agora assemelha-se mais a um vasto deserto em alguns trechos. No coração da Terra Indígena Porto Praia de Baixo, perto de Tefé, AM, imensos bancos de areia substituem o fluxo do rio, alterando radicalmente a paisagem e a vida das comunidades indígenas locais.
Os povos Kokamas, Tikunas e Mayorunas, que habitam a região há gerações, estão agora confrontados com um cenário que nunca pensaram que presenciariam. Em um cenário reminiscente dos desertos, eles caminham sobre esses bancos de areia, estendendo-se por quilômetros, tentando ajustar sua vida cotidiana a esta nova realidade.
Os moradores da região recordam a grave seca de 2010, mas apontam para a estiagem de 2023 como a mais devastadora que já vivenciaram. Com a seca, os barcos, tradicionalmente ancorados perto das margens, agora estão estacionados a quilômetros de distância. A previsão desoladora é que este cenário de desertificação persista até novembro.
Em uma visita à região em agosto de 2022, a Folha de S.Paulo relatou um cenário muito diferente. Naquela época, ainda era possível navegar pelas águas do Solimões até as proximidades da aldeia. No entanto, em 2023, a realidade mudou drasticamente. O que antes era uma jornada simples de 30 minutos de barco agora exige uma caminhada de dois quilômetros por uma margem enlameada ou pelos vastos bancos de areia.
Além do impacto visual e ambiental, a situação atual também tem graves implicações econômicas e sociais para a comunidade. O cacique Amilton Braz da Silva Kokama, 52 anos, expressou sua preocupação: “É tudo muito triste. Não tem como sair para pescar, ou levar nossos produtos para vender na cidade.” Produtos essenciais como farinha e banana, produzidos por mais de 100 famílias da região, agora enfrentam desafios logísticos para alcançar os mercados.
Em 2022, as águas do rio Solimões chegavam à Terra Indígena Porto Praia, na região do Médio Solimões. | Foto: Lalo de Almeida
Este fenômeno no rio Solimões não é apenas uma questão ambiental ou econômica. É uma ameaça direta à ancestralidade e ao modo de vida de inúmeras comunidades indígenas que têm dependido do rio por gerações. A urgência e a gravidade da situação reforçam a necessidade de esforços concentrados na conservação e proteção da Amazônia e seus recursos hídricos.
A situação atual é dramática para as comunidades que tradicionalmente dependem da pesca e da navegação. O deserto formado é agora cruzado por pescadores obstinados, bem como por carregadores transportando mercadorias da cidade e motores dos barcos abandonados a quilômetros de distância. A insegurança aumenta com o medo dos motores serem roubados por piratas – uma ameaça recorrente mesmo em tempos de estiagem severa.
Na luta por reconhecimento territorial, os indígenas de Porto Praia realizaram em 2022 uma autodemarcação de suas terras, um esforço para proteger-se contra invasores, incluindo madeireiros e pescadores ilegais. Ainda assim, as transformações climáticas e a consequente desertificação do rio trouxeram novos e urgentes desafios para a comunidade.
“Vivenciamos uma mortandade de peixes sem precedentes, pior do que na seca de 2010″, relata o cacique local. “Anteriormente, ainda tínhamos poços profundos de água.”
Apesar das adversidades, a aldeia Nova Esperança do Arauiri, localizada na Terra Indígena Boará/Boarazinho, também enfrenta grave isolamento. O outrora navegável igarapé Paranã do Arauiri tornou-se apenas um filete de água parada e poluída. O acesso à aldeia agora exige uma caminhada de dois quilômetros em um terreno ressecado e poeirento.
A situação da água é crítica. A instalação recente de placas solares permitiu o bombeamento de água de um lago próximo, mas a qualidade permanece questionável. Com a falta de capacitação para tratar a água e a contínua dependência de chuvas esparsas, doenças como diarreia, vômito e infecções intestinais assolam a comunidade, afetando especialmente as crianças.
O cacique Cláudio Cavalcante, da Nova Esperança, expressa a urgência da situação: “Precisamos, com urgência, de água, capacitação para tratá-la e medicamentos.” Ele prevê uma seca ainda mais severa, estendendo-se até o final de novembro.
A falta de água potável também afetou o setor educacional, com aulas sendo suspensas para as crianças da aldeia.
Em meio a esse cenário, os apelos das comunidades por assistência parecem estar sendo ignorados. Tanto o governo do Amazonas quanto a Funai e a prefeitura de Tefé não responderam à reportagem até o momento.
A gravidade da situação do Solimões requer uma ação rápida e abrangente. Enquanto os indígenas buscam soluções improvisadas, a necessidade de uma intervenção eficaz e imediata torna-se cada vez mais urgente.
*Com informações FOLHA PRESS
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