Por António Araújo – Diário de noticias
No próximo dia 21 de Novembro, às quatro da tarde em ponto, hora local, um esférico denominado Al Rihla (“A Jornada“), fabricado pela marca Adidas, com uma cobertura de poliuretano texturizado e 20 gomos, será colocado no centro de um grande rectângulo de relva. Em seu redor, um estádio com 60 mil lugares sentados, projectado pela firma alemã AS+P, querendo “AS” dizer Albert Speer, o filho do arquitecto de Hitler.
A empresa holandesa que forneceu os relvados dos últimos três Mundiais de Futebol recusou-se a colaborar neste torneio após ter sabido que só na construção dos estádios já pereceram mais de 6750 trabalhadores, todos oriundos da Índia, do Bangladesh, do Nepal e do Sri Lanka. Nenhum cidadão do Qatar, país anfitrião, morreu na edificação das infraestruturas que irão receber o Mundial da Vergonha.
Para os jornalistas e turistas que lá forem, para os que ficarem colados aos écrans a ver as fintas e os passes dos craques, talvez fosse útil saber um pouco mais sobre o que é o Qatar, pelo que se recomenda a leitura de um livro-reportagem acabado de sair, assinado por John McManus, um antropólogo social e escritor, que tem passado a última década no Médio Oriente e na Turquia (vive em Ancara), tendo já publicado, aliás, um outro livro sobre a paixão futeboleira turca e suas fúrias.
Este de que agora falo tem o título pouco inspirado de Inside Qatar – Hidden Stories From One of the Richest Nations on Earth (Icon Books, 2022) e, ao contrário do que se possa julgar, não é um relato preconceituoso e impiedoso dos muitos males que afligem o emirado, antes uma digressão pelas fundas incoerências de um país recente, que só viu a independência em 1971 e, desde então, anda em busca de um caminho entre os biliões do petróleo, grandiosas ambições de modernidade e pesados arcaísmos islâmicos.
Um relatório da ONU, já de 2020, descreve o Qatar como “quase uma sociedade de castas baseada na nacionalidade”, o que em parte, mas só em parte, se compreende, pois os cataris representam uma ínfima minoria no seu próprio país, sendo cerca de 313 mil cidadãos, numa população total de cerca de três milhões, essencialmente composta por imigrantes vindos da Índia (24% da população), do Nepal (16%), das Filipinas (11%), do Bangladesh (5%), do Paquistão (4%) e do Sri Lanka (2%). Com tantos trabalhadores migrantes, a esmagadora maioria dos quais na construção civil (44% da força laboral do país trabalha nas obras), não admira que 72% da população seja masculina. Mulheres estrangeiras, no Qatar, só as empregadas domésticas vindas das Filipinas e de África, especialmente do Quénia.
Sendo óbvio que os opulentos privilégios de que gozam os cataris não poderiam estender-se à restante população (por ex., os nativos não pagam impostos e dois terços da população não trabalha, nem tem sequer ocupação), o que espanta e confrange é a brutal disparidade entre nacionais e não-nacionais, mesmo os vindos do Ocidente para empregos sofisticados e bem pagos.
Atroz ironia: na Europa e na América, onde hoje tanto se combatem as injustiças do racismo, não houve ainda um movimento em larga escala para boicotar um Mundial de Futebol realizado num dos países mais racistas do mundo, onde, segundo as estatísticas oficiais, 43% dos cataris casam com membros da sua própria família, geralmente primos em primeiro grau, o que tem provocado sérios problemas de consanguinidade, que o director do Centro de Genética Médica de Doha reconhece, mas desvaloriza em nome da preservação da “pureza de sangue do país”. Goebbels não diria melhor.
À semelhança da independência, também a riqueza é recente – mas imensa. Sem aptidão agrícola ou vocação industrial, a economia do Qatar baseava-se historicamente na apanha de pérolas em alto-mar, mas acabou por se afundar com o crash bolsista de 1929 e com a descoberta, pelos japoneses, de métodos de cultivo artificial de pérolas (facto que bem poderia servir de lição para a actualidade e para os riscos da monocultura do petróleo e do gás). Em meados dos anos 1940, a população reduzira-se a umas 16 mil almas e o xeque Abdullah Al Thani foi ao ponto de ter de fazer um empréstimo hipotecário sobre o seu palácio.
Entretanto, em 1939, geólogos da Anglo-Persian Oil Company descobriram frondosas jazidas de petróleo e, dez anos depois, começaram as exportações do ouro negro. É ele a causa de o Qatar ser um dos países mais ricos do mundo: de 2002 a 2014, foi o mais rico; desde então, está em terceiro lugar, atrás do Luxemburgo e de Singapura. Dinheiro a jorros, mas que beneficia quase em exclusivo 11% da população residente, os cataris de raça. Dinheiro que tem permitido compras multimilionárias pelo mundo fora: além do Harrod”s, estima-se que o Estado do Qatar tenha mais propriedades em Londres do que a rainha Isabel II, para não falar dos investimentos em marcas de luxo como a Valentino ou a Tiffany, entre tantas outras.
Dominado desde o século XIX pela Dinastia Al Thani, e governado desde 2013 pelo emir Tamim bin Hamad Al Thani, um autocrata que, segundo se diz, é ainda mais conservador do que o seu pai, o Qatar é mais liberal do que outras nações de Golfo, com destaque para a Arábia Saudita (por exemplo, as cataris podem conduzir automóveis, ainda que tenham várias limitações para obter a carta; a pena de morte não é aplicada desde 2003; as mulheres são encorajadas a estudar e 2/3 dos licenciados são do sexo feminino).
O país gosta, aliás, de transmitir uma imagem de modernidade e abertura ao mundo, com a Qatar Airways e a Al-Jazeera (bem menos independente do que parece), e, importa dizê-lo, muitas das práticas que mantém são elementares medidas de autodefesa de uma população ultraminoritária na sua própria terra, a qual tem, ademais, uma relação nada fácil com os seus poderosos vizinhos. Em 2017, o Qatar foi alvo de um grave bloqueio por parte de diversos países muçulmanos (Arábia Saudita, Iémen, Bahrain, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Maldivas, Líbia) e ficou sem acesso a alimentos e a matérias-primas, alegadamente por causa das suas relações incestuosas com a Irmandade Islâmica e com o Daesh.
Até às reformas constitucionais dos anos 90, que deram ao emir o poder de designar o seu filho como sucessor, a chefia do Estado não obedecia ao princípio da primogenitura, o que dava azo a um sem-fim de conflitos e de intrigas palacianas e o país é bem menos estável do que parece, tendo assistido, nos últimos 70 anos, a duas abdicações, em 1949 e 1960, e a dois golpes de Estado, em 1972 e 1995, o último dos quais levou um filho a depor o próprio pai. A ambiguidade estratégica tem sido chave de sobrevivência: o Qatar tanto alberga a maior base dos EUA no Golfo Pérsico, Al-Udeid, com mais de 11 mil soldados estacionados, como mantém relações cordiais com o Irão e namora e favorece o extremismo islâmico (a principal mesquita de Doha é, de resto, dedicada ao fundador do ultraconservador Movimento Wahabista).
Além da opressão sobre o povo e da ausência de democracia e de respeito pelos Direitos Humanos, traços comuns às monarquias do Golfo, o principal e mais vil pecado do Qatar, a sua singularidade repulsiva, é o modo como trata os trabalhadores estrangeiros. É certo que, também nesse plano, não se destaca muito das barbáries praticadas naquelas paragens, bastando lembrar que, no Líbano, em 2018, a etíope Lensa Lelisa se atirou da janela da casa dos patrões (por sinal, donos de uma das marcas mais fashion do país, a Eleanore Couture) por não suportar mais os espancamentos diários com cabos eléctricos, entre outras torturas; ou que, no Kuwait, o cadáver desmembrado da filipina Jonna Demafelis, de 29 anos, foi encontrado na arca congeladora do casal que servia; ou o caso de Tuti Tursilawatti, uma empregada doméstica indonésia de 34 anos, executada na Arábia Saudita por ter morto o patrão quando este a tentou violar, ao fim de um ano de sevícias sexuais.
E não, não são casos isolados, mas sim a ponta de um icebergue miserável. Das cerca de 176 mil empregadas domésticas que trabalham no Qatar, 83% tiveram os seus passaportes confiscados mal chegaram ao país, segundo um relatório de 2020 da Amnistia Internacional. E só conseguem entrar se tiverem o patrocínio de um empregador, segundo o sistema da kafala, ficando inteiramente nas mãos dos seus senhores e amos, sem dinheiro para obter o visto e comprar passagem de regresso a casa, sem possibilidade de mudar de emprego ou de patrão, um inferno na terra.
Na esmagadora maioria dos casos, os migrantes, logo à chegada, são confrontados com um contrato novo, com salários mais baixos e piores condições do que aquele que haviam assinado antes de partirem. Sindicatos não existem e os contratos laborais têm todos prazos curtos de um, dois anos, mesmo para quem trabalhe para a mesma empresa ou patrão há dez, 20 anos, ou mais.
A kafala é o cancro maior do Qatar: a existência de um patrono, que, segundo a lei islâmica, constituía uma forma de os mais fortes protegerem os mais fracos (por ex., quando estes assinavam contratos ou iam a tribunal), converteu-se, muito por culpa do colonizador britânico, num sistema de paternalismo esclavagista, com os empregadores a apoderarem-se dos vistos de entrada, dos passaportes e das autorizações de trabalho e residência dos pobres migrantes. Não admira, assim, que, para milhares deles, a jornada de trabalho comece às 4.30 da manhã, com interrupção à hora do calor (por vezes, nem isso), e só termine pelas sete ou oito da noite.
Um inquérito de 2018 concluiu que os operários das obras do Mundial trabalhavam dez horas por dia, seis dias por semana, em condições deploráveis, sendo frequentes jornadas de trabalho de 12 a 14 horas e até casos de escravos que trabalharam 148 dias consecutivos sem uma única folga. Com a aproximação do torneio e a aceleração da obra, a situação agravou-se.
Contudo, e dadas as atenções internacionais e as inspecções mais regulares, os trabalhadores do Mundial são até dos mais protegidos – simplesmente, correspondem a 4% da força laboral do país; os restantes 96% continuam à mercê de um sistema iníquo em que até os relatórios oficiais do país reconhecem que milhares de desgraçados são obrigados a trabalhar em condições de “stress de calor”, a temperaturas acima dos 40ºC, com humidade horrível, com um em cada três trabalhadores a sofrer de hipertermia.
Um artigo publicado em 2019 na revista Cardiology estabeleceu uma correlação inequívoca entre o calor extremo e a morte de 500 operários nepaleses. O problema agrava-se pelo facto de o Qatar não realizar autópsias, sendo todas as mortes atribuídas a “causas naturais” ou “doenças cardiovasculares”, o que, tendo em conta a idade jovem da maioria dos migrantes, é coisa mirabolante. Para efeitos estatísticos, aliás, o Registo Nacional de Traumas só contabiliza as mortes que têm lugar após a chegada ao hospital, ou seja, deixa de fora o imenso universo dos acidentes letais ocorridos nos locais de trabalho. Apesar de tudo isto, é consensual entre as ONG e os observadores externos que os abusos mais graves e os piores maus-tratos não são perpetrados pelos cataris, mas pelos migrantes sobre outros migrantes, até seus compatriotas, sendo frequente a descoberta de horríveis redes de exploração e de tráfico humano nos países de origem da Ásia e de África.
Mesmo ao fim de décadas a viver e a trabalhar no país, é praticamente impossível obter a cidadania; é necessário falar árabe, residir no Qatar há 25 anos e a lei determina que, por ano, só podem ser concedidas 50 naturalizações. De igual modo, e ao contrário do que se passa no Dubai, por exemplo, é quase impossível a um estrangeiro comprar propriedades ou enviar os filhos para escolas de qualidade, excepto ocidentais privilegiados, sendo também estranho que num país com tantos asiáticos não exista um só templo budista ou hindu (há uma minúscula zona cristã que os cataris não podem frequentar).
Até por isso, o que se passa com o futebol é particularmente abjecto. O Qatar não tem tradições na modalidade e o seu primeiro clube só foi criado em 1950; desde então, foram fundados outros – o Al-Rayyam, o Al-Arabi, o Al-Saad – que servem para arredondar as contas de jogadores ou técnicos em fim de carreira, como Pep Guardiola, Gabriel Batistuta ou Xavi Hernández, mas que, apesar dos investimentos milionários, não levam os cataris aos estádios. Mesmo com bilhetes a preços caricatos – cerca de 3 euros nas bancadas, 14 euros num lugar VIP – nunca mais de mil pessoas assistem a um jogo ao vivo, preferindo fazê-lo no conforto de casa, algo que, obviamente, será uma tormenta no pós-Mundial: que destino irão ter tantos estádios, tão sumptuosos e volumosos?
De resto, por causa do clima e não só, são poucos os cataris que praticam futebol e diz-se que este é, isso sim, um brinquedo caro do xeque Jassim bin Hamad Al Thani, filho do antigo emir, que governou o país de 1995 a 2013. O xeque Jassim, ao que parece, tem até um gigantesco estádio de futebol em sua casa e foi um dos principais promotores do actual Mundial, no qual o Qatar investiu a única coisa que tem: dinheiro.
Através da Qatar Airways, foram patrocinados grandes clubes europeus, como o AC Roma ou o Bayern de Munique, ao mesmo tempo que se construía um hospital de ponta de Medicina Desportiva, a que já acorreram diversas estrelas, e se lançava um canal internacional de desporto, o beIN Sports, e a multimilionária Academia Aspire, que recruta talentos da bola ao abrigo de um programa designado Football Dreams, orçado em muitos milhões de dólares, que já escrutinou mais de 3,5 milhões de jovens pelo mundo fora, dos quais anualmente são selecionados uns 20, no máximo, a quem são oferecidas condições estratosféricas e o maior prémio de todos – a cidadania do Qatar.
Se o país é xenófobo e racista, avesso a naturalizar estrangeiros, mesmo os que nele trabalham há décadas, no domínio desportivo passa-se o inverso, com concessões escandalosas e rapidíssimas de nacionalidade: em 1999, a equipa de lançamento de peso do Qatar foi desqualificada dos Jogos Árabes por se ter descoberto que nela participavam quatro atletas búlgaros; em 2003, o queniano Stephen Cherono, supostamente a troco de avultada maquia e de uma pensão vitalícia, tornou-se nacional catari com o nome Saif Saaeed Shaheen; em 2004, para fúria da FIFA, o Qatar tentou naturalizar, numa semana, três futebolistas brasileiros, Ailton, Dédé e Leandro.
Graças aos biliões injectados na Academia Aspire, o Qatar conseguiu conquistar a Taça Asiática de 2019, um feito extraordinário num país que, dois anos antes, estava na 102ª posição no ranking mundial, atrás da Serra Leoa e das Ilhas Faroé. Resta acrescentar que se tratou de um triunfo forjado na base da fraude, mesmo que autorizada pelos complacentes critérios da FIFA: dos 23 jogadores da selecção, 17 eram naturalizados, muitas vezes às pressas e, pior ainda, segundo regras e procedimentos jamais aplicáveis aos que vivem e trabalham no país há décadas. Argumentar que em todas as selecções desportivas do mundo há casos como este só obscurece o essencial: o abominável racismo selectivo do país anfitrião do próximo Mundial.
Racismo que se estende ao desporto: cerca de metade da população do país tem origem no sul da Ásia, pelo que o críquete é, de longe, a modalidade mais popular e praticada. Ora, enquanto o fundo soberano do Qatar já gastou, desde que comprou o Paris St. Germain, em 2011, muitos biliões com o futebol, incluindo a compra-recorde do brasileiro Neymar por 262 milhões de dólares, a Associação de Críquete do Qatar recebe anualmente um subsídio que não chega aos 200 mil dólares.
Ou seja, o futebol é usado como instrumento de dominação da minoria catari sobre a legião de migrantes que sofrem e mourejam no deserto, sob calores escaldantes. Os que se erguem, e bem, contra o racismo da Europa e da América deveriam também, no mínimo, olhar para outras paragens do mundo, mil vezes piores e mais bárbaras. E saber, por exemplo, que 15% das hospitalizações de migrantes no Qatar derivam de tentativas de suicídio; e que, num país com serviços médicos gratuitos e de alto nível, 90% dos migrantes nunca chegam a receber o seu cartão de saúde das mãos dos patrões.
Depois, houve a tremenda corrupção que deu a vitória ao Qatar na corrida à organização do torneio, não deixando de ser irónico que, num ano em que o mundo sofreu uma vaga de calor sem precedentes (e a Europa a maior seca de 500 anos), causada pelo aquecimento global e pelos combustíveis fósseis, nos preparemos para assistir alegremente ao Mundial do Petróleo – e do Gás.
O Qatar, convém lembrá-lo, tem a maior reserva de gás natural do mundo, situada no mar setentrional do país, estimada em 900 triliões de metros cúbicos (e é também um dos maiores emissores de gases com efeito de estufa do planeta, com um cadastro ambiental miserável). Quando agora se fala da dependência europeia do gás e do petróleo russos (a propósito, quando conheceremos o plano de contingência e de poupança energética do governo português? E porque não existe uma campanha nacional de poupança da água?), deve recordar-se que, em 2021, um quarto de todo o gás importado pela Grã-Bretanha veio do Qatar.
Se a isso juntarmos as vultuosíssimas compras de armamento à América e ao Reino Unido, os biliões ganhos pelos gabinetes que projectaram e pelas empresas que construíram os novos e faraónicos estádios, orçados em 10 mil milhões de dólares (!), não custa concluir que era óbvio que o Qatar iria ser o anfitrião deste Mundial vergonhoso, que faz lembrar o da Argentina de 1978, que branqueou e legitimou a cruel ditadura de Videla.
Pequeno grande detalhe: desde há décadas, e para polir a imagem, o Qatar gasta biliões nas maiores empresas de lóbi de Londres e Nova Iorque – Hill+Knowlton Strategies, Portland Communications, Blue Rubicon, Grey, Brown Lloyd James – e contratou a peso de ouro diversos “embaixadores” da sua candidatura – Samuel Eto”o, Xavi Hernándes, David Beckham.
Tudo isto é bem o espelho daquilo em que o futebol se tornou nas últimas décadas: uma actividade viciada, viciosa e viciante que de desportiva pouco tem. Todos os anos, com a cumplicidade dos paizinhos, sedentos de terem um Ronaldo em casa que os converta em milionários, milhares de jovens são atraídos por uma carreira na bola, seduzidos por promessas de clubes que os usam como escravos descartáveis.
São ínfimas, quase nulas, as probabilidades de um jovem praticante nas “academias” vir a jogar nos escalões seniores dos clubes grandes: menos de 0,012%. Repete-se: menos de 0,012%. À conta dessa miragem, milhares de moços, talvez milhões, perdem dez anos de vida, largam os estudos, comprometem o futuro, o deles e o dos seus países, que na quimera da esfera desbaratam gerações de miúdos, com efeitos não despiciendos na produtividade e nas qualificações da mão-de-obra de uma nação inteira.
Se a isso juntarmos outros males – corrupção generalizada de dirigentes, árbitros e jogadores; promiscuidade com políticos, autarcas, interesses imobiliários, negócios escuros; promoção de uma cultura boçal e alarve, machista, sexista e racista, assente na violência física e verbal, com sucessão de “casos” e “escândalos”, muitos dos quais do foro criminal, sobretudo os desencadeados pelas horripilantes “claques”; transferências com valores pornográficos; ocupação tirânica do espaço público, com vários canais e jornais e horas infindas de “comentários”, em detrimento de outras actividades intelectual e espiritualmente mais enriquecedoras – percebemos que aquilo que hoje se passa no mundo do futebol poderá ser muita coisa, mas desporto não é certamente.
No próximo mês de Novembro, enganar-se-á quem julgar estar a assistir a um jogo de futebol na TV: no rectângulo, disputa-se a bola, mas o que aí verdadeiramente se joga são negócios fabulosos de petróleo e armamento, conjuras geopolíticas, fundamentalismos religiosos, a opressão de mulheres e de migrantes, o absoluto desprezo pelos direitos fundamentais e pela dignidade humana. É este o belo espectáculo que estamos prestes a aplaudir.
Texto publicado originalmente em Diário de Noticias
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