Em tramitação acelerada e sem ouvir as comunidades tradicionais, a prefeitura de Ilhabela, com aval dos vereadores, acaba com a Reserva Extrativista da Baía de Castelhanos
De um dia para o outro, a prefeitura de Ilhabela, município no litoral de São Paulo, determinou a extinção da Reserva Extrativista da Baía de Castelhanos. A tramitação aceleradíssima começou na última terça-feira (16), com uma proposta enviada pelo próprio prefeito Antônio Luiz Colucci (PL) para a Câmara Municipal pela revogação do decreto que criou a área protegida. No mesmo dia, os vereadores votaram e aprovaram o projeto em regime de urgência. No dia seguinte (17), a lei já estava sancionada. Tudo transcorreu – ou melhor, correu – sem nenhuma consulta ampla à sociedade civil, nem mesmo às comunidades tradicionais diretamente impactadas pela decisão.
A Reserva Extrativista da Baía de Castelhanos foi criada em dezembro de 2020 (decreto municipal nº 8.351/20). A unidade de conservação abrangia um território de 95,7 hectares, a maior parte em área marinha. Localizada na ilha de São Sebastião, a principal do arquipélago de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, a pequena zona de proteção concentrava-se na Baía de Castelhano, na face “de fora” da ilha, voltada para o mar aberto, onde vivem cerca de 300 pessoas em comunidades tradicionais caiçaras.
Em sua justificativa para revogação, o prefeito aponta que a reserva extrativista (resex) é alvo de uma Ação Popular movida por proprietários de imóveis localizados dentro da Comunidade Tradicional da Baía de Castelhanos. Toninho Colucci, como é mais conhecido, cita ainda a ausência de previsão orçamentária para a eventual desapropriação das áreas particulares matriculadas.
A procuradora da República, Maria Rezende Capucci, que atua na região de Caraguatatuba, Ilhabela, São Sebastião e Ubatuba, rebate que essa é uma afirmação falsa. “Não tem nenhum imóvel particular dentro da resex. Essa narrativa é totalmente fantasiosa. O traçado só pega os terrenos da União. Inclusive, o jurídico do município jamais daria aval para o processo se houvesse área particular ali teria que ser desapropriada e a ideia era justamente fazer nas áreas da União para que o município não tivesse nenhum ônus para implantação”, explica a procuradora do Ministério Público Federal (MPF), que acompanhou o processo de criação da reserva extrativista.
Na sua justificativa, o prefeito aponta ainda que, um ano e meio após o decreto, ainda não houve articulação para criar o conselho gestor da unidade de conservação – que, no caso de uma reserva extrativista, possui papel deliberativo, ou seja, atua na tomada de decisões sobre a gestão.
Conforme estabelecia o decreto da resex, imediatamente após sua criação, foi autorizada a formação de um Conselho Gestor Provisório, formado pelos presidentes da Associação Castelhanos Vive e Associação Amor Castelhanos, além do Secretário Municipal do Meio Ambiente, para o fim de organizar a formação definitiva do Conselho Gestor e deliberar sobre o necessário. De acordo com a prefeitura, entretanto, não houve definição sobre qual entidade pública ficaria responsável pela gestão da reserva extrativista.
“De fato, nunca andou [o conselho]. Houve algumas solicitações das associações para instituir, mas a prefeitura não teve interesse”, contextualiza a advogada Ana Lúcia da Silva, que prestou assessoria jurídica voluntária para as comunidades durante as discussões sobre a resex.
“Para resex sair do papel é preciso que tenha vontade política municipal, se essa vontade não existe, fica complicado. O MPF tem inúmeros ofícios cobrando, a comunidade também cobrou pra criar o conselho, porque só a partir do momento que tem o conselho que a resex começa a funcionar”, explica a procuradora do MPF, Maria Capucci.
A resex foi criada pela antiga prefeita, Maria das Graças Ferreira dos Santos Souza (PSD), mais conhecida como Gracinha, durante os últimos dias do seu mandato. Em 1º de janeiro de 2021 Gracinha foi substituída pelo atual prefeito, Antônio Colucci, autor do projeto que extinguiu a reserva. “O ato de criação se deu no último dia útil da antiga gestão, já prevendo que o sucessor, atual gestão, abriria amplo debate sobre a criação da reserva, fato que poderia retardar o ato de criação”, declara Colucci em sua lista de justificativas para o projeto que, controversamente, tramitou sem nenhum debate público.
“Nós fomos pegos de surpresa, não fomos comunicados. Uma decisão contrariando o desejo desse povo que vive aqui lutando. Foi um tiro à queima roupa”, resume a líder comunitária Angélica de Souza, presidente do Conselho Caiçara de Ilhabela.
Extinção em tempo recorde
O ofício com a proposta do prefeito foi enviado no dia 16 de agosto. No mesmo dia, a Câmara Municipal de Ilhabela pautou o Projeto de Lei nº 42/22 em sessão extraordinária, já com os pareceres favoráveis de todas as comissões da casa legislativa.
Apenas dois vereadores foram contrários ao projeto. Um deles, Felipe Gomes Pereira da Silva (Republicanos), ressaltou a falta de diálogo com a comunidade e a tramitação acelerada do projeto. “A mesma justificativa que o governo coloca aqui no projeto de lei dizendo que é necessário um amplo debate, necessário uma ampla divulgação… Não houve divulgação da revogação deste trabalho (…) faltou o diálogo com a comunidade”, destacou em sua fala o vereador, que defendeu a necessidade de uma audiência com a comunidade de Castelhanos antes de extinguir a resex.
“É mais uma prova do total despreparo desse governo, mas para que organização? É só mandar para cá que é aprovado. Projeto que chegou às 17 horas de hoje está sendo colocado em pauta agora, sem ouvir o Conselho Municipal das Comunidades Tradicionais, sem ouvir os caiçaras das comunidades tradicionais, porque quem é impactado não é só o caiçara que mora em Castelhanos, é o boneteiro [da comunidade de Bonete] que pesca em Castelhanos, o pessoal da Praia Mansa, o pessoal que mora atrás da ilha e todas as comunidades tradicionais.
Nem sequer os secretários da pasta de Pesca e Agricultura e Comunidades Tradicionais foram ouvidos. Nem eles sabiam, chegaram aqui e ficaram sabendo aqui nessa casa de leis”, afirmou o vereador Raul Gonçalves Cordeiro (PSD), que também foi contrário ao projeto.
Em sua fala, Raul Cordeiro engrossou a crítica à decisão de cancelar a área protegida sem sequer ouvir a população tradicional, de forma inconstitucional. “E não é critério plausível cancelar para dizer que vai fazer um melhor. Por que não chama a comunidade aqui nessa casa de lei? Escuta as duas partes”, completa.
Por seis votos a dois, o projeto foi aprovado ao final da sessão na Câmara, depois de uma discussão de menos de 20 minutos.
Sem perder tempo, o prefeito sancionou a revogação já no dia seguinte (17) e, na última quinta-feira (18), a nova lei municipal já estava publicada na edição municipal do Diário Oficial.
“Do dia para noite, ou melhor, praticamente da tarde para noite, a resex foi extinta. Sem consulta e sem nenhum fundamento técnico que invalidasse a justificativa de criação da resex, em total afronta à legislação. A sociedade civil não participou, a comunidade não foi consultada e nem teve chance de participar da sessão na Câmara”, avalia a procuradora Maria Capucci.
Apesar da ilegalidade escancarada do processo, a procuradora afirma que o MPF ouvirá a comunidade antes de protocolar qualquer ação para derrubar o decreto de revogação. “A gente [MPF e MPE] já reuniu todos os fundamentos técnicos e estamos prontos para enviar uma representação à Procuradoria de Justiça para que ajuíze uma ação pela ilegalidade do ato, mas qualquer tomada de decisão só vai ser feita depois de uma conversa com a comunidade, para ver se eles têm interesse, se eles querem que essa unidade de conservação seja mesmo municipal”, explica.
De acordo com ela, durante as discussões para criar a resex, os comunitários haviam preferido a esfera municipal pela proximidade entre os atores o que, em tese, facilitaria o diálogo – uma ilusão quebrada pela revogação acelerada, sem consulta e pela clara falta de vontade política municipal em implementar a área protegida. “Pode ser que a comunidade prefira acionar a Fundação Florestal de São Paulo para uma unidade de conservação estadual ou mesmo federal, pelo ICMBio”, pondera.
A luta dos caiçaras pelo território
A criação da reserva extrativista buscava atender a uma demanda histórica da comunidade tradicional caiçara da Baía de Castelhanos pela regularização fundiária e também levava em conta o Plano Diretor Municipal de Ilhabela, que definiu a área como lugar de interesse ambiental e cultural; e o Zoneamento Econômico Ecológico do município, que classificou a área como uso tradicional e restrito, onde ficam proibidas ações como o parcelamento do solo.
A luta dos caiçaras pelo direito ao território levou à criação da Associação de Moradores Amor Castelhanos, em 2005, que atua em toda a baía e representa as seis comunidades-núcleo de Castelhanos. “Quando a gente se organizou, não havia nenhuma outra entidade para lutar por nós e nós achamos necessário formar a associação. Conseguimos uma cadeira no conselho consultivo do Parque Estadual de Ilhabela, no Conselho de Turismo. Criamos o primeiro Conselho Caiçara das Comunidades Tradicionais de Ilhabela em 2019”, conta Angélica de Souza, líder comunitária em Castelhanos e atual presidente do Conselho Caiçara.
Cerca de 300 pessoas vivem nas comunidades tradicionais de Castelhanos. Através da associação, os caiçaras conseguiram avançar na discussão sobre a regularização fundiária que, desde 2013, tem o apoio do Ministério Público Federal. Em 2015, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) emitiu o Termo de Autorização de Uso Sustentável – o TAUS – sobre uma área de 15 hectares para garantir a posse da comunidade.
“O próximo passo seria o ordenamento e gestão do território, o que se daria pela reserva extrativista. Toda essa discussão existe desde 2013. Num primeiro momento a ideia era fazer um assentamento agro-extrativista com o Incra, mas com a mudança do governo e na postura do Incra, apostou-se na possibilidade da resex, que teria o mesmo propósito de garantir uma gestão coletiva do território pelos caiçaras”, explica a procuradora do MPF.
A líder comunitária acrescenta que, com o TAUS coletivo, a Associação de Moradores Amor Castelhano passou a ter legitimidade perante qualquer órgão público para defender o território tradicional caiçara. “Mas a gestão atual não admite isso”, completa.
O traçado da área protegida foi feito em sobreposição às terras da União, que seriam cedidas pela Marinha para a reserva extrativista municipal. A cessão para a prefeitura, entretanto, estaria condicionada não apenas à criação, mas à implementação efetiva da resex, o que não aconteceu.
Em 2016, uma segunda associação de moradores foi criada, a Castelhanos Vive, com atuação numa pequena porção da praia de Castelhanos. De acordo com Angélica, parte do “conflito” pela criação da resex vem justamente da associação, que seria liderada por uma família que se manifesta contrária à reserva extrativista – “são os únicos”, assegura a liderança.
Os comunitários iniciaram um abaixo-assinado virtual contra a revogação da resex. “Para o espanto de todos, sem nenhum diálogo com a comunidade tradicional ou com a sociedade civil, e sem manifestação do Conselho do Meio Ambiente e do Conselho das Comunidades Caiçaras, o Exmo. Prefeito Municipal de Ilhabela, na CALADA DA NOITE, encaminhou em regime de urgência para a Câmara de Vereadores projeto de lei que, na mesma noite, foi votado sem qualquer discussão e extinguiu a RESEX Castelhanos, em total afronta ao que determina a Constituição Federal e à legislação”, alerta trecho do documento.
Até a publicação desta matéria, a petição já contava com mais de 2.000 assinaturas.
Angélica conta que também está circulando um abaixo-assinado entre os nativos da ilha. “E nós queremos agora que a resex seja até a área do parque [originalmente a área da resex correspondia a faixa de 33 metros a partir da linha média da maré, que é terreno da Marinha]. Queremos ser muito mais do que eles tiraram”, afirma a líder comunitária de Castelhanos.
Uma reunião do Conselho Caiçara estava agendada para esta última quarta-feira (24), mas precisou ser cancelada devido ao mau tempo e às condições do mar, que impossibilitaram a participação de todos os representantes (que vêm de barco e de outras ilhas). De acordo com a presidente do Conselho, devido à urgência do debate, uma nova data deve ser marcada até o final do mês de agosto.
A resex e sua criação
“Na Baía de Castelhanos que será criada a RESEX, trata-se de zona de amortecimento do Parque Estadual de Ilhabela, com significativa riqueza ambiental e grandes extensões de área de preservação permanente, restingas, sítios arqueológicos, cursos d´água e manguezais e, ainda, é território de ocupação tradicional da Comunidade Caiçara de Castelhanos, cenário que origina, portanto, a necessidade de especial proteção”, contextualiza o texto publicado pela prefeitura sobre a consulta pública para criação da resex, aberta em novembro de 2020.
O texto cita ainda o procedimento administrativo do processo [n° 5512-5/2020] e a disponibilização da minuta de decreto e dos demais documentos que ampararam o procedimento de criação da reserva. Os links, entretanto, não estão mais lá. De acordo com o processo, houve um prazo para sugestões até o dia 5 de dezembro – um total de 13 dias – e um prazo para resposta pelo Poder Público até o dia 9 de dezembro. “Após a Consulta Pública, que permanecerá disponível por 20 (vinte) dias, serão organizadas reuniões públicas para esclarecer eventuais dúvidas e somar as contribuições”, esclarece o texto. A criação da reserva extrativista foi oficializada no dia 29 de dezembro de 2020.
“A comunidade manifestou interesse, formalizou esse interesse por documento em favor da resex, nós encaminhamos e a prefeitura inicou o processo. A gente pode dizer que ela seguiu todo o rito previsto na legislação para criação de uma UC”, avalia a procuradora do MPF, Maria Capucci.
A advogada Ana Lúcia da Silva concorda. “No meu entender houve toda a informação para a comunidade, houve reuniões virtuais, troca de documentos, e essa alegação de que não houve informação prévia é uma narrativa. Foi bem no começo da pandemia, então teve reuniões que foram virtuais e outras presenciais. O que não houve foi qualquer aviso prévio para acabar com a resex. Não vejo irregularidades na criação da resex, mas sim na sua extinção”, avalia a advogada, que prestou assessoria jurídica voluntária para as comunidades durante as discussões sobre a resex.
“Além da defesa de território da comunidade que está ali secularmente, a gente está falando da defesa do meio ambiente”, acrescenta Ana. “O turismo pode e vai continuar existindo, mas os moradores podem ser protagonistas nessa atividade”, completa.
Atualmente, 85% do município de Ilhabela tem status de proteção integral (ou seja, sem nenhum uso direto permitido, como extração e moradia) através do Parque Estadual de Ilhabela. As fronteiras do parque ajudam a frear ameaças como a especulação imobiliária e o turismo predatório, mas não incluem a Baía de Castelhanos, um dos únicos remanescentes de restinga do município.
“Minha mãe nasceu aqui, minha avó nasceu aqui, e hoje a gente luta contra a especulação imobiliária. Tem gente querendo tirar o caiçara da praia e jogar pro mato. A gente não pode deixar que a especulação imobiliária expulse o povo nativo. A gente não sobrevive fora daqui, é como jogar um peixe fora do mar. É importante que a gente preserve nossa comunidade e o direito das futuras gerações. Manter os caiçaras dentro da comunidade. Castelhanos ainda é muito preservada. Se os povos tradicionais forem expulsos daqui, isso aqui vai virar um condomínio de luxo”, desabafa a líder comunitária de Castelhanos.
Fonte: O Eco
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