Região Norte lidera insegurança alimentar no campo e agricultores usam solidariedade para driblar falta de comida
Murilo Pajolla – Brasil de Fato
Dados recentes mostram que a população do campo é proporcionalmente mais atingida por formas severas de insegurança alimentar, em comparação com a urbana. Isso significa que aqueles que plantam alimentos para abastecer as cidades brasileiras – os pequenos agricultores – estão comendo menos do que precisam.
O quadro mais grave entre as zonas rurais é o do Norte brasileiro. Na macrorregião que abriga 80% da Amazônia, a insegurança alimentar grave e a moderada estão presentes em 54,6% dos lares de agricultores familiares. Na sequência vêm Nordeste (43,6%), Centro-Oeste (38,6%), Sudeste (22,1%) e Sul (13,8%). Os dados são da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).
O Brasil de Fato ouviu de especialistas que o governo de Jair Bolsonaro (PL) é o responsável por colocar uma “pá de cal” sobre as políticas que deveriam garantir o direito à alimentação. E colheu relatos de agricultores que usam solidariedade e criatividade para lutar contra o avanço da insegurança alimentar na Amazônia.
“É muito difícil até comer feijão”
Em Lábrea (AM), como em quase todas as cidades amazônicas, não dá para pensar em comida sem açaí ou farinha de mandioca. Quem abastece a população da região com esses alimentos são os agricultores do assentamento São Francisco, cujo acesso se dá pela BR-230, a rodovia Transamazônica. Mas a renda dos assentados não é suficiente para garantir a segurança alimentar.
“É muito difícil até comer feijão, porque ninguém aguenta comprar”, diz Manoel Souza da Silva, presidente da associação do assentamento. “Quando você compra dois ou três quilos de feijão no mês, é uma fortuna para nós. Tem que regrar aquele feijão para comer. Porque nós não temos como comprar”, relata o agricultor.
“Como é possível o agricultor ser produtor de alimentos e estar passando fome?”, lamenta o pesquisador Nilson de Paula, responsável pelos inquéritos sobre insegurança alimentar da Rede Penssan. “As políticas públicas voltadas especificamente à produção de alimentos vêm sendo desmontadas desde 2015. E agora estamos praticamente com uma pá de cal sendo colocada nessa questão”, explica.
Fazer farinha deixou de valer a pena
Entre os alvos do desmonte no governo Bolsonaro, Nilson cita o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Ambos, segundo ele, teriam o papel de frear o avanço da fome durante a crise econômica provocada pelo coronavírus.
Com a pandemia, a liderança do assentamento São Francisco diz que os supermercados da cidade passaram a pagar menos pela farinha. Passados os momentos mais agudos da crise sanitária, o preço da mercadoria não voltou ao que era antes. Segundo ele, o trabalhoso e caro processo de produção da farinha não está mais valendo a pena: “No manual, no braçal, ninguém aguenta mais. Nós estamos velhos”.
“Como o Estado vai se afastando, o agricultor vai caminhando cada vez mais na direção da insegurança alimentar grave. O mercado vai levando o produtor para sua própria inviabilização econômica”, descreve Nilson, que leciona sobre políticas públicas na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Fome começa na falta d’água
No assentamento São Francisco, a idade impede que Maria de Fátima Andrade encare o sol de 40 graus no trabalho com o roçado. Quase toda a renda dela vem da aposentadoria. Com esse dinheiro, não consegue financiar maquinário para aumentar a produtividade da lavoura.
A agricultora diz que, se não fosse a prefeitura de Lábrea (AM), os assentados já teriam ido embora, tamanho o abandono do governo federal. “O Incra jogou nós igual cachorro velho aqui”, resume. O município fica responsável por arar mecanicamente a terra antes dos plantios e por ajudar no transporte da produção até a cidade.
Maria de Fátima conta que a dificuldade para cultivar alimentos começa na escassez de água. “Muitas vezes a gente puxa a água [do poço], enche uma caixa de 500 litros e já foi-se a água. Aqui água de poço raso não presta. Minha vizinha puxou água antes de ontem. Ontem não tinha um pingo mais”, conta a agricultora.
Quando o dinheiro dá, a assentada vai até a cidade fazer compras. Ela paga mais de R$ 30 em um frango congelado inteiro. Mas reclama que a qualidade do produto industrializado está cada vez pior. “Tu acredita que um frango não dá pra todo mundo almoçar aqui? Porque a maior parte do frango é gelo. Você compra e perde pela metade. E tem que tirar aquele couro velho [pele do frango]. Aquele couro é só doença”.
E quando o dinheiro não dá, Maria de Fátima recorre a uma solução emergencial. Ela começou a criar galinhas no quintal de casa. Os animais dão trabalho, mas são a única forma de não deixar a comida faltar. “Na hora que eu não tenho, eu sei que meu terreiro tem. Aí eu vou comer. Mas muitas vezes nós não temos a verdura”, relata.
Outra vizinha da agricultora começou a criar porcos. Não pela carne, mas pela banha: uma forma de não depender do óleo de soja, cada vez mais caro, para cozinhar.
O caminho da fome na Transamazônica
Enquanto isso, o agronegócio se espalha pelas margens da Transamazônica labrense. Quem transita pela região percebe a olhos vistos a proliferação da pecuária, precedida por desmatamento e queimadas cada vez mais extensos. Os pastos contrastam com o verde do assentamento São Francisco, que mantém praticamente a mesma cobertura vegetal desde a chegada dos primeiros assentados. “Não precisamos ficar derrubando”, garante Manoel.
A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) aponta que poucos recursos são destinados à Amazônia Legal para fortalecer a agricultura familiar. “Os políticos do agronegócio implementam políticas públicas para incentivar o monocultivo, pregando desenvolvimento. E esse desenvolvimento que eles pregam é a floresta em cinzas e a implementação do concreto”, diz Gabriela Souza, integrante da ANA no Acre.
O coordenador da Rede Penssan concorda que a força política do agronegócio faz com que o Estado privilegie os empresários do setor, na forma de crédito subsidiado e incentivos fiscais. Em regiões historicamente subdesenvolvidas, como o Norte brasileiro, a expansão agropecuária fragiliza os pequenos produtores, que sempre estiveram à própria sorte.
“São regiões marcadas por desigualdades muito acentuadas. No norte e Nordeste também tem riqueza e abundância, só que mal distribuída. Há essa difícil combinação entre pobreza e desigualdade social e de acesso aos meios de vida. A base econômica contém uma base política”, pontua Nilson de Paula.
Solidariedade contra a fome
Cercados pelo agronegócio e sem apoio do governo federal, os agricultores do assentamento São Francisco apostam na solidariedade para combater a insegurança alimentar. Manoel, presidente da associação dos assentados, plantou por conta própria uma roça de feijão.
A colheita não vai ser vendida. Vai para os pratos dos companheiros que estão precisando. “Dou um litro, meio litro, dou um caneco [de feijão], que é para eles se alimentarem. A minha tendência é plantar mais, para ajudar mais a população”, conta.
Manoel diz que já ouviu dos filhos mais novos, todos na cidade, que a vida no assentamento não tem futuro. Mas ele espera que o próximo governo federal dê mais apoio aos produtores.
Neste ano, a liderança apostou no plantio no plantio de café. Com a nova cultura, quer incentivar os vizinhos a diversificar a produção. E faz planos de uma vida com mais qualidade na alimentação.
“Eu gostaria que nós fizéssemos um tanque de peixes aqui. Fazer uma barragem em um igarapé desse, limpar os buracos… Botava um peixinho, um cará, uma traíra… E a gente ia comer”, projeta o líder dos agricultores.
Edição: Nicolau Soares
Texto publicado originalmente em BRASIL DE FATO
Comentários