Animal foi alvejado com arma de matar passarinho um mês antes de ser atropelado. Chumbinho ficou alojado no rim, coluna e quadril
“Eu não vou esperar mais uma onça chegar para a gente nesse estado deplorável. Porque como ela deve ter várias”, diz a advogada Karine Rocha Montenegro, diretora do Instituto Pró-Silvestre, organização sem fins lucrativos que está cuidando de uma vítima de um crime bárbaro. O paciente que aguarda cirurgia é uma onça-parda (puma concolor), criticamente ameaçada de extinção no Ceará, estado onde foi atropelada há cerca de um mês. Em cuidados veterinários desde então, se verificou que o bicho tinha sofrido mais de 30 tiros de chumbinho algumas semanas antes do acidente.
As marcas dos projéteis quase não se percebe a olho nu, mas marca um ponto branco no raio-x, que foi feito quando o animal precisou ser atendido por causa das duas patas dianteiras machucadas. A suçuarana foi atropelada no dia 02 de abril, na zona rural do município de Uruoca, no noroeste do Ceará, a 70 km de Sobral. Trata-se de um macho jovem, com menos de dois anos, e que estava acompanhado de outro animal, provavelmente a própria mãe, que fugiu com a chegada do socorro.
Segundo o tenente do Batalhão de Polícia do Meio Ambiente da Polícia Militar do Ceará, Tenente Ferreira, a informação sobre o atropelamento do animal chegou ao batalhão em Sobral (CE), cidade a cerca de 350 km de Fortaleza, através da Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops). Com a chegada da ocorrência, Ferreira organizou o resgate do animal que estava aproximadamente a 80 km do batalhão. Fez contato com o Corpo de Bombeiro e pediu auxílio dos profissionais do hospital veterinário do Centro Universitário Uninta. Embora o lugar não seja para atendimento de silvestres, foi nele que ocorreu os primeiros socorros ao animal, para que ele pudesse ser transferido para um lugar apropriado na capital do estado.
Ferreira explica que a onça apresentava somente os ferimentos do atropelamento. As marcas dos chumbinhos foram vistos somente na radiografia. “Numa conversa com o veterinário, ele me disse que provavelmente estes tiros haviam ferido o animal há uns 30 dias ou mais, porque os ferimentos já estavam cicatrizados”, disse o tenente.
O veículo que atropelou o animal não prestou socorro. De acordo com o policial, o carro que estava atrás pediu ajuda e ligou para o 190. Moradores da região contaram que havia mais uma onça e que ela ficou próxima do animal ferido, mas fugiu quando a população começou a se aglomerar ao redor da cena do acidente.
“A gente tá trabalhando no campo das hipóteses. Até porque a arma utilizada contra o animal não é a que um caçador usaria no intuito de matá-la. Esse tipo de armamento, normalmente, é utilizado na caça de pássaros. Pode ser que ela tenha chegado a alguma propriedade rural e alguém atirou ou um caçador pode ter se deparado com ela e atirou para afugentá-la. A gente fez diversas diligências no local, e apreendemos armas de fogo na região com o calibre compatível com o que foi utilizado na onça”.
À espera da cirurgia
O animal segue internado nas instalações do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama em Fortaleza, onde está sendo mantido pelo Instituto Pró-Silvestre, que é parceiro do Ibama no Cetas.
“Essa questão da caça, infelizmente, ainda é bastante recorrente no estado. Nós temos observado quando têm ações de fiscalização no interior, em áreas mais isoladas, justamente onde há maior diversidade de animais, esta situação ocorrendo. Inclusive, são feitas muitas apreensões de armas específicas para caça de animais de diferentes espécies”, explica Alberto Klefasz, analista ambiental do Ibama. “Por exemplo, na caça de veados eles usam muito a espingarda 22. Já para a caça de pássaros eles utilizam o que chamam de socadeira – uma espécie de arma artesanal onde é usada uma cápsula que eles enchem de chumbo. Possivelmente, no caso desta onça, eles usaram a socadeira. A arma não foi capaz de matar o animal, mas causou todo este problema”, afirma o analista ambiental.
Montenegro trabalha com uma hipótese a mais que a polícia, a de que caçadores fizeram tiro ao alvo no bicho. A monstruosidade do ato provavelmente custou a vida da onça, que mesmo que sobreviva à cirurgia, não poderá mais voltar para a natureza. “Esse bicho deve ter dois anos, no máximo. E ele, se sobreviver, terá uma vida de [como se tivesse] já final de vida. Os rins comprometidos. É muito triste e é muito revoltante”, diz Karine Rocha Montenegro.
Assim que se aloja no corpo, a toxicidade do chumbinho começa a debilitar o animal. O que obriga a retirada dos projéteis com urgência. Contudo, a situação não é tão simples. Devido ao alto grau de intervenção feito na onça durante os primeiros socorros, outra cirurgia agora é muito arriscada. Com isso, a opção foi esperar. “Como o animal tinha acabado de passar por um procedimento cirúrgico, ficou para fazermos melhores imagens e verificar os próximos passos após um mês do procedimento visto a complexidade de derrubar o animal para inspeção, além da necessidade de verificação do andamento da cirurgia das fraturas nas patas”, esclarece o veterinário Marcelo Jucá, do Instituto Pró-Silvestre. Ele ainda explica que das cerca de 30 balas de chumbinho alojadas no corpo da onça-parda, cinco são de risco crítico, “as balas alojadas nos rins e na região do quadril e coluna vertebral”.
O ortopedista e clínico de animais selvagens, o veterinário Lucio Mendes Filho realizará a cirurgia para a retirada dos projéteis e explica que eles são constituídos por diferentes metais, dentre eles o chumbo, que é um metal pesado e é liberado gradativamente na corrente sanguínea do animal, causando intoxicação que, a médio e longo prazo, culmina em letargia, apatia, incoordenação e insuficiência renal. “Temos dois projéteis em cada rim. Acaba que isso acomete a função renal da onça, sem falar que facilita com que o chumbo adentre a contraente sanguínea do animal, devido sua vascularização. Sem falar que ela também tem um chumbo alojado no estômago e vários na musculatura”, afirma Lucio. “Eu acredito que, devido às lesões serem bem antigas, falando dos projéteis, ela deve ter sido atropelada porque já apresentava sinais da intoxicação ou infecção secundária”, conclui.
A suçuarana segue em acompanhamento médico, em uma jaula isolada. Diante do quadro, a diretora do Instituto Pró-Silvestre espera que o caso sirva de lição para que haja mais fiscalização e educação ambiental no estado. “A gente tem que ir também na raiz do problema e não só na ponta. Ir na raiz é chegar lá para o atirador que está de chumbinho que está treinando mira, como eles falam aqui, e chegar para ele e dizer ‘isso não é objeto de treino de mira, meu irmão’. Isso vai te levar para a cadeia, te levar multa”, defende a advogada.
Uma campanha de financiamento coletivo foi aberta pelo Instituto Pró-Silvestre para custear o tratamento da onça-parda. Quem quiser colaborar com uma doação, pode fazer através do pix: [email protected].
Fonte: O Eco
Comentários