Sua obra, considerada feminista, trata de temas como aborto e erotismo e reinventa gênero autobiográfico
Christina Queiroz – Revista Fapesp
A escritora Annie Ernaux foi a escolhida para receber o Prêmio Nobel de Literatura de 2022 por sua “coragem e acuidade clínica para descortinar as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal” e por refletir sobre “uma vida marcada por grandes disparidades de gênero, linguagem e classe”, segundo comunicado da Real Academia de Ciências da Suécia.
Professora universitária aposentada de literatura, a francesa é a 17ª mulher e a primeira de seus país a conquistar o reconhecimento. Escreveu cerca de 20 livros. Quatro deles foram publicados no Brasil pela Fósforo Editora. Recentemente, a autora teve sua participação confirmada na 20ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que este ano acontece entre os dias 23 e 27 de novembro.
Ernaux nasceu em 1940, em Lillebonne. Estudou na Universidade de Rouen e foi professora de literatura no Centre National d’Enseignement par Correspondance durante mais de 30 anos. Com livros considerados “clássicos modernos” em seu país, em 2017 ela recebeu o prêmio Marguerite Yourcenar pelo conjunto da obra.
Seu primeiro trabalho, Les armoires vides (sem tradução no Brasil), foi publicado em 1974, mas ela se tornou conhecida a partir de 2008, com Les années(Gallimard), editado em 2021 no Brasil com o título Os anos. Na obra autobiográfica, escrita em primeira pessoa, ela reconta episódios de sua vida entrelaçados com momentos históricos do século XX como, por exemplo, a efervescência social de maio de 1968, marcada por protestos estudantis. “Esse livro funciona como uma espécie de linha da vida dela e de seu próprio país, ao narrar questões políticas e sociais que são organizadas como um álbum de fotografias”, analisa Eurídice Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Para Claudia Consuelo Amigo Pino, da Universidade de São Paulo (USP), o que mais se destaca na trajetória de Ernaux é o impulso de criar uma obra autobiográfica de maneira “totalmente experimental”. “Mas isso não quer dizer que ela faz ficção com elementos de sua vida. Significa que ela busca formas novas de narrar a realidade”, diz Pino. No livro Os anos, por exemplo, ela observa que o trabalho conta a história da vida da autora em primeira pessoa do plural (nós), como se fosse a história de toda uma geração, marcada por intensos conflitos familiares.
Figueiredo destaca o fato de a autora mobilizar questões ligadas à própria trajetória de vida, à ficção e às “escritas de si” e trabalhar com as fronteiras móveis entre esses gêneros. “Diferentemente das autobiografias clássicas, que surgiram no século XIX na França e por meio das quais escritores narram sua própria trajetória, Ernaux recorta sua existência em pequenos acontecimentos”, explica a pesquisadora da UFF.
De acordo com Figueiredo, a francesa se recusa a afirmar que sua literatura é autoficção, classificando-a como autobiográfica. “Na literatura, os acontecimentos sempre são narrados com recursos ficcionais, mas o que Ernaux quer dizer ao dissociar seu trabalho da autoficção é que ela não inventa e tampouco fabula com a própria realidade, buscando aproximar-se da verdade.” Leitora de toda sua obra, em 2013 Figueiredo publicou um artigo sobre Ernaux no livro Mulheres ao espelho. Auto autobiografia, ficção, autoficção (Editora Uerj/Faperj).
Em O acontecimento (Fósforo, 2022), Ernaux descreve o calvário que sofreu para conseguir realizar um aborto em 1963, quando o procedimento ainda era proibido na França. “No livro, ela dá tratamento literário a um tema tabu, narrando os fatos de forma detalhada, mas ao mesmo tempo trazendo reflexões sobre sua decisão, tomada aos 20 e poucos anos, quando era uma estudante universitária”, conta Figueiredo. O livro foi adaptado para o cinema em 2021, com direção da francesa de origem libanesa Audrey Diwan.
No mesmo ano, venceu o Leão de Ouro de Melhor Filme no Festival de Veneza. No Brasil, a produção audiovisual pode ser assistida na plataforma de streaming HBO Max. Outro livro adaptado foi Uma paixão simples, publicado pela editora portuguesa Livros do Brasil, em 2020. Figueiredo conta que o trabalho aborda uma história de amor e paixão que Ernaux teve com um diplomata russo, “explorando o erotismo com ausência de pudor”.
“Ernaux traz para a literatura acontecimentos importantes que permitem refletir sobre a escrita feminina, por meio de temas tabu que não são abordados com frequência, entre eles o aborto, a submissão amorosa e sexual. São situações que procuramos esconder, mas ela trata abertamente”, comenta Pino. Conforme a pesquisadora, no Brasil, os estudos sobre sua obra ainda são incipientes e incluem teses e dissertações.
Outro ponto de atenção mencionado por Figueiredo envolve aspectos sociais. “A escrita de Ernaux é, ao mesmo tempo, autobiográfica e sociológica, porque mostra a história de um eu inserido em uma classe social específica”, destaca. Essa característica está presente, por exemplo, em O lugar (Fósforo, 2021). No livro ela trata de seus anos de formação e das relações conflituosas com os pais, provenientes de uma família humilde, operária e camponesa. “Depois de estudar e se casar, Ernaux ascende socialmente, trazendo os conflitos de classe existentes na França para dentro de sua obra literária”, detalha a pesquisadora da UFF.
Já em A vergonha (Fósforo, 2022), Ernaux narra uma tentativa de seu pai matar sua mãe, quando ela tinha 12 anos, trauma que carregou por toda a vida. “Sua obra pode ser chamada de feminista ao colocar em cena impasses vividos pelas mulheres, além das questões sociais. O Nobel representa um reconhecimento importante da literatura preocupada em tratar do corpo e da sexualidade das mulheres, bem como dos impasses que vivemos”, pondera Figueiredo.
O prêmio concedido pela Academia Sueca inclui 10 milhões de coroas suecas, ou o equivalente a cerca de R$ 4,8 milhões. Em 2021, o vencedor foi Abdulrazaq Gurnah, romancista da Tanzânia que escreve em inglês.
Texto publicado originalmente em Revista Fapesp
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