Documentário “O Território” expõe a luta secular na Amazônia dos indígenas Uru-eu-wau-wau e acompanha as invasões na terra indígena impulsionados pelo discurso do governo Bolsonaro
O dia é 28 de outubro de 2018. Após um processo eleitoral conturbado e regado à fakenews, por volta das 22h é anunciada a vitória do candidato Jair Bolsonaro. No noroeste do estado de Rondônia, dentro a terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, Neidinha Suruí, ativista há 5 décadas e fundadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, acompanha esse momento histórico com grande preocupação, prevendo o que o discurso anti-indígena e anti-ambiental de Bolsonaro poderia significar para o povo Uru-Eu-Wau-Wau e seu território.
Ao seu lado, indígenas compartilham de sua preocupação, mas sabem que sua luta por resistência e proteção do território é secular. No meio dessa cena um “gringo” registra tudo em sua câmera de vídeo.
Assim começa o processo de filmagens do documentário O Território, dirigido por Alex Pritz, um jovem americano que estudou Ciências Ambientais e encontrou no cinema uma forma de abordar assuntos complexos e urgentes. Quando conheceu a história de Neidinha, entrou em contato com ela e começou a filmar o que estava acontecendo na TI Uru-eu-wau-wau naquele ano. Mas o processo foi longo e durante três anos a equipe pode mergulhar, junto com os indígenas, nessa realidade.
A pandemia do Covid foi um marco que mudou a história do filme: como não podia entrar nos territórios, enviou aos indígenas equipamento audiovisual para que eles pudessem seguir registrando. A partir daí entendeu a potência de tê-los como co-realizadores e envolveu-os em todas as etapas de decisão do filme.
O resultado de O Território, que chega às salas de cinema brasileiras a partir de 08 de setembro, é um filme intenso, tenso e rico etnograficamente, por registrar um momento histórico em que o discurso oficial do governo afronta a existência dos povos originários e põe em risco a manutenção da floresta em pé.
((o))eco: Alex, para começar, pode falar um pouco mais sobre você e sua trajetória profissional?
Alex Pritz: Eu estudei ciências ambientais e agricultura e muitos dos temas trabalhavam com fazendas, mas também haviam pessoas trabalhando com conservação. Essas foram coisas que eu estudei na universidade e estava realmente interessado em pensar sobre o que eu iria fazer o resto da minha vida, trabalhar com agricultores, cooperativas ou com conservação.
Acabei encontrando o audiovisual/documentário como uma ferramenta para poder trabalhar esses mesmos problemas, porém de uma maneira mais dinâmica e de uma forma que eu pensei que poderia atrair mais pessoas. Eu e o produtor do filme, Will Miller, estudamos o mesmo curso da faculdade, o fato de termos crescido juntos na mesma cidade e ter uma amizade muito próxima, ajudou a montar a equipe.
O filme faz parte do seu estudo em ciência ambiental e agricultura?
Na verdade não. O filme começou quando eu li sobre o trabalho da Neidinha e o que essa indígena estava fazendo. Uma senhora protegendo a Amazônia é lindo, ela estava se levantando contra essas forças enormes e fazendo isso em uma parte do país onde quase todo mundo estava contra ela.
Então eu entrei em contato com Neidinha e disse “Ei, eu acho que o que você está fazendo é muito interessante, muito inspirador. O candidato, Jair Bolsonaro, venceu as eleições, então seu trabalho vai ficar muito mais difícil, ele deixou claro que quer cortar os orçamentos das agências ambientais e todo esse tipo de coisa”. Então iniciei uma conversa com a Neidinha, ela me apresentou aos protetores da maior área de mata intacta e do estado de Rondônia, e você sabe, basta puxar o fio e começar com uma pequena história que ela começa a crescer pedaço por pedaço.
Você disse que começou o filme em 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro. Pode me falar mais sobre o processo de produção do filme e a participação dos indígenas?
Quando me encontrei com os indígenas Uru-Eu-Wau-Wau pela primeira vez, Neidinha me explicou que muitos dos mais velhos dessa comunidade nunca tinham visto um documentário antes. Então havia muito trabalho que precisávamos fazer para explicar o filme, explicar nosso processo e o que um documentário significa, do que é capaz, mas também qual é o custo disso.
Porque não é fácil fazer parte de um documentário, você tem pouca privacidade, alguém está acompanhando você com uma câmera oito, dez horas por dia filmando enquanto você vai para a cama.
Além da logística, essa construção de confiança e a narrativa de que essa comunidade estaria confiando em mim para ajudar a moldar a maneira como outras pessoas, em outras partes do mundo, estariam vendo e experimentando sua realidade, especialmente para um grupo de pessoas que foram muito estigmatizadas e retratadas em termos racistas negativos por muito tempo, essa foi uma conversa que teve que ser realizada devagar e com muita paciência.
Então essa foi a estrutura com a qual começamos. Nas viagens subsequentes ao território indígena, eu trouxe algumas câmeras pequenas e disse: “tudo bem, você me entrevista e eu entrevisto você”. Vamos brincar um pouco com a câmera. Vamos falar sobre como a câmera funciona. Falar sobre como funciona a edição para que todos possam se sentir bem à vontade com essa ideia de fazer um filme junto, participativo.
E então, é claro, surge a necessidade de levar o jovem protagonista do filme por conta própria e começa a aproveitar a mídia e a tecnologia para fazer avançar a capacidade dessa comunidade de vigiar seu território, de se defender junto ao governo estadual. No filme você vê o Bitaté, o jovem líder indígena, e a Neidinha trazendo GPS, drones, walkie talkies, todos os equipamentos que você vê chegando no filme, como equipamentos que eles mesmos adquiriram e trouxeram e tem treinamento para isso. E assim nós, como equipe de filmagem, estávamos assistindo a essa incrível transformação acontecendo como parte do crescimento e liderança do Bitaté e de outros indígenas.
Quando o covid começou, Bitaté tomou a decisão ousada de “selar” os territórios e ninguém dentro ou fora poderia transitar pelo local, e é claro que respeitamos isso. Mas foi um novo desafio. Não terminamos de filmar e não tínhamos acesso físico às pessoas com quem trabalhamos. Como proceder? Temos imagens suficientes para começar a editar? E assim abrimos essa conversa com o Bitaté. Ele voltou muito claramente e disse: “Não, claro que não terminamos. Temos um monte de coisas que precisamos obter.
Envie-nos câmeras melhores, os melhores equipamentos de áudio, e nós produziremos, filmaremos e gerenciaremos as filmagens para este último capítulo do filme”. E foi isso que fizemos. Trouxemos câmeras e as deixamos na fronteira do território. Bitaté e outros foram buscá-las e higienizá-las. E então, pelo WhatsApp, comunicamos sobre listas de fotos e como filmar algo, como pensar sobre isso.
Eu acho que para o público de cinema americano e europeu, esta é uma maneira diferente de abordá-lo. Mas aprendemos muito olhando para o trabalho de Vincent Carelli, Mídia India e muitas dessas iniciativas de filmes participativos, realmente fortes, vibrantes e existentes no Brasil. Portanto, não queremos levar o crédito por criarmos isso, de forma alguma. Mas sim, isso abriu muitas possibilidades criativas. Vimos o quão diferente eles estavam capturando as mesmas coisas que em alguns casos eu não colocava em cena.
Eu filmei meia dúzia de missões de vigilância. Mas quando vimos a maneira que Bitaté escolheu para representar a mesma coisa, pareceu muito mais urgente, imediato e íntimo. De certa forma, também estávamos com ele. A história estava em suas mãos, através de seus olhos. E isso se tornou realmente emocionante para mim e para o editor quando começamos a fazer essas cenas.
Uma coisa que acrescento a essa mudança de perspectiva que aconteceupor causa do COVID, é que encontramos uma oportunidade de interagir com os indígenas, como mais do que apenas diretores de fotografia e participantes do filme, e escolhemos fazer parcerias para colocarmos como co-produtores do próprio filme. E isso significa que as pessoas que participaram do filme, também estavam envolvidas nas decisões de negócios sobre para quem vendemos o filme.
Eles estão recebendo uma parte direta dos lucros do filme, igual a qualquer outro produtor do filme. Isso também significa que eles estão viajando conosco como parte da equipe de filmagem para representar o filme em todos esses outros países em festivais e estreias.
Você pode nos contar mais sobre como foi a estreia e recepção do filme na Europa e USA?
Tivemos nossa estreia europeia em Copenhague no CPH:DOX, começamos uma conversa com alguns políticos [da UE]: Ministro do Meio Ambiente, Ministro da Agricultura, diferentes grupos lá em Copenhague falando sobre produtos relacionados ao desmatamento que estão sendo importados na UE. Isso ajuda os indígenas, com um megafone maior e um maior acesso a essas pessoas que estão tomando decisões realmente importantes sobre cadeias de suprimentos e demanda por produtos que geralmente dependem de sua terra natal em muitos casos.
Há um caso agora na França sobre carne de gado que foram criadas ilegalmente em terras indígenas sendo vendidas em supermercados no país. Essas discussões políticas são algo com o qual estamos nos envolvendo em geral.
A recepção ao filme por parte do público tem sido muito positiva. E acho que as pessoas às vezes olham para: “Ah, a Amazônia está queimando” e pensam que é um incêndio como o que está acontecendo na Califórnia ou na Austrália. O filme ilustra esse conflito, mas também faz isso de uma maneira que não transforma os fazendeiros em vilões. Eles têm suas próprias motivações que são internamente consistentes e são vítimas das mudanças climáticas tanto quanto qualquer outra pessoa.
Eu acho que certamente há um pouco de falta de informação sobre os serviços ecossistêmicos que a Amazônia oferece. As nascentes de 17 grandes rios do estado de Rondônia, por exemplo, muitas vezes não vêm da terra rural. Se os agricultores e agricultores de subsistência querem continuar a irrigar suas terras, essa floresta precisa permanecer intacta. Essas são conversas para esperamos nos envolver ainda mais no futuro.
Mas por enquanto o lançamento do filme internacionalmente tem sido ótimo, recepção muito positiva e é maravilhoso para nós, acho muito bom ver o amor que Bitaté e Neidinha estão recebendo. Neidinha foi parada nas ruas, em Nova York, uma cidade de quase 10 milhões de pessoas, ela está sendo parada com beijos e abraços. E é maravilhoso ver a quantidade de amor que chegou a eles, através deste filme.
Como você imagina o futuro da Amazônia se Bolsonaro for reeleito ou se Bolsonaro não for reeleito?
Essa é uma boa pergunta e uma pergunta difícil. Acho que há muito ceticismo entre as pessoas e indígenas com quem trabalhei em torno dos americanos e estrangeiros que têm opiniões sobre a Amazônia, porque ela é vista como um recurso nacional brasileiro, como soberania. Existe essa ideia de que os outros não deveriam estar falando sobre a Amazônia. Então eu tenho isso em minha mente enquanto respondo.
Mas acho que o Bitaté diria que… os problemas que eles enfrentam não começou com o Bolsonaro, estes são problemas de séculos. E seria ingênuo e tolo pensar que esses problemas vão desaparecer com a saída de Bolsonaro, muitos desses desafios vão permanecer. Mas acho que a capacidade de começar a olhar para o futuro e construir algo que seja inovador e não seja tão reativo, não tentando apenas sobreviver no próximo governo, seria um grande ganho para os Uru-eu-wau-wau.
Tem sido uma luta pela sobrevivência nos últimos quatro anos. E com uma nova administração, acho que haveria a possibilidade de realmente se envolver com o governo, ter algum diálogo, poder ter reuniões com pessoas do governo. Vão ouvir suas preocupações. E isso seria um passo muito positivo.
Qual o espaço do audiovisual/documentário e as questões ambientais na sociedade? Como filmes, como O Território, pode ajudar o público a agir em questões indígenas e ambientais?
Eu olho para a forma como o Bitaté usa esse filme, que a meu ver tem dois propósitos. Uma é como evidência, como prova. O governo diz que você está mentindo, não há invasão, “Nós não acreditamos em você”. Ele vem com uma fotografia, com GPS. locais, marcas de desmatamento. Isso é, uma prova incontestável de que isso existe. E isso é em si uma forma de resistência e de dizer “não, nós existimos e isso é verdade, isso é real”. Isso é realmente poderoso.
Ao mesmo tempo, vejo Bitaté começando a usar o cinema e o audiovisual como forma de auto expressão e sobrevivência cultural. E isso parece muito inspirador para mim também. Eu vejo nosso filme meio que espelhando isso.
Eu espero que o filme seja capaz de ser uma obra de arte para algumas pessoas, ele pode ajudar a pintar contornos para essas ideias abstratas de colonialismo. Se ele puder fornecer alguns esboços para esses conceitos abstratos que existem na cabeça das pessoas e ajudar a torná-lo mais concreto, para mim, isso é um sucesso artístico.
Mas espero que o filme também possa estar ao lado da defesa deste povo. Uma chamada à ação, mais do que algo que você olha e se sente entretido. Você sai do cinema energizado e pronto para se envolver e sente que vale a pena lutar por isso. São as vidas de pessoas reais. Há muito em jogo. O futuro do continente e do planeta, na minha opinião, está em jogo nisso. E eu gostaria de estar sendo dramático quando digo isso, mas estamos em um ponto agora em que os cientistas estimam que de 20 a 23% da Amazônia está devastada.
Então, para quem mora em São Paulo, para quem depende dessa chuva para obter água doce, para beber, essa é uma questão existencial sobre se vamos sobreviver nesses ambientes ou nas próximas gerações. As apostas são realmente altas. E espero que as pessoas vejam o filme e sintam que querem se envolver e que querem apoiar esses defensores da terra indígena e continuar protegendo nosso belo planeta.
O que você espera para o lançamento do filme aqui no Brasil?
Espero que tenhamos salas de cinema cheias e que tenhamos um público engajado. Espero que possamos entregar ao Bitaté e à Neidinha aquele megafone grande que mencionei e deixá-los subir ao palco, acho que esse é realmente o momento deles, com algo que estamos trabalhando há muito tempo. Eu não sei o que esperar em termos de recepção geral.
Sei que estamos entrando em um momento muito polarizado no Brasil. Algumas pessoas amam o filme, algumas pessoas odeiam o filme, mas não estamos tentando agradar a todos. Estou animado por poder dar a Neidinha e Bitaté uma plataforma para compartilhar suas experiências sobre o que os últimos quatro anos deste governo significaram para eles e qual tem sido o legado político deste governo.
Fonte: O Eco
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