Fala do presidente recém eleito sobre composição da Funai foi feita na sua participação no Fórum Internacional dos Povos Indígenas
“Sinceramente eu participo muito da vida política há 50 anos, e nunca participei de uma reunião que transferisse tanta responsabilidade como essa agora. Não tenho representatividade para tratar dos povos indígenas nos cinco continentes, mas eu me comprometo com vocês, porque eu participei de todas as reuniões do G-8 (grupo dos oito países mais ricos do mundo), do G-20 (grupo dos 20 países mais industrializados e emergentes) depois da crise de 2008, e o que eu mais sentia é que não se falava dos problemas da sociedade”, afirmou Lula ao iniciar o seu pronunciamento no Fórum Internacional dos Povos Indígenas, evento paralelo dentro da Cop-27, que acontece no Egito.
“Nessas reuniões, pessoas pobres não existem, indígenas não existem e a periferia não existe. O movimento sindical mundial não tinha uma única pessoa a não ser eu, porque eu vim do mundo sindical. Quando eu vejo a solidariedade estabelecida [com os povos indígenas] eu fico com muito orgulho porque isso é uma luta de pelo menos 40 anos. […] Assumi o compromisso de representar os povos indígenas, eu não tenho tamanho para isso, mas eu tenho vontade, eu tenho compromisso”, disse o recém-eleito novo presidente do Brasil.
Lula contextualizou a realidade indígena brasileira, lembrando que quando o Brasil foi invadido pelos europeus, estima-se que existiam em seu território aproximadamente 5 milhões de habitantes nativos. Destes, restam hoje aproximadamente 897 mil, em 305 etnias, graças às lutas empreendidas por essas populações para defender a sua existência e a manutenção de seus territórios.
Segundo o presidente, que cumprirá o seu terceiro mandato, desde o período de sua gestão à frente do executivo, finalizada em 2010, ele pôde refletir sobre a lacuna de sua atuação em relação aos povos originários. “A minha volta à presidência da república possivelmente será um teste do Lula para o Lula. […] O tempo vai passando e eu fui percebendo quantas coisas eu podia ter feito e não fiz. E eu não fiz porque eu não queria, eu não fiz porque eu não sabia. Eu tinha vontade de voltar à presidência para então cumprir aquilo que eu achava que eu devia ter feito.
E nós precisamos mudar um pouco a compreensão que nós temos do mundo. Porque as pessoas que governam o mundo, elas olham o mundo com uma lógica completamente diferente da lógica que vocês olham. No fundo, no fundo, o povo pobre, os indígenas não são tratados como se fossem seres humanos, são tratados como se fossem números. Não são levados em conta quando você faz o orçamento de um país”, afirmou.
Porque as pessoas que governam o mundo, elas olham o mundo com uma lógica completamente diferente da lógica que vocês olham. No fundo, no fundo, o povo pobre, os indígenas não são tratados como se fossem seres humanos, são tratados como se fossem números. Não são levados em conta quando você faz o orçamento de um país
afirmou Lula
Ele afirmou que seguirá o exemplo de outros países que buscam reparar os erros do passado colonialista com os seus povos originários. “Nós temos obrigação moral, obrigação ética e sobretudo obrigação política de fazer uma reparação ao que fizeram com os povos indígenas, sobretudo no meu país”, disse Lula que também apontou que pretende tornar o Brasil exemplo de uma política de parceria. “Quero que os indígenas brasileiros participem da governança do meu país. Por isso que eu estou criando Ministério dos Povos Originários, por isso que nós teremos uma saúde especial, quem sabe, se Deus quiser, dirigida pelos próprios indígenas.
Quem sabe a Fundação Nacional Índio (Funai) que já existe há muito tempo, precisa ser dirigida não por um branco, mas por uma mulher ou por um homem indígena. Para que a gente mude a compreensão sobre as pessoas, para que a gente não veja o indígena como um estorvo ao desenvolvimento da sociedade. Para que a gente não veja o indígena como alguém que está atrapalhando o desenvolvimento econômico de um país”.
O presidente eleito voltou a afirmar que não existem dois planetas Terra e que acredita que a sociedade, de modo geral, já está consciente da importância das questões ambientais. E, sem citar nomes, alfinetou o bilionário americano Elon Musk, com quem Bolsonaro se encontrou para discutir projetos sobre o monitoramento da Amazônia e que tem, entre seus projetos, a colonização do planeta Marte.
“Eu às vezes fico muito preocupado quando eu vejo meia dúzia de pessoas ricas tentando inventar foguetes, gastando milhões de dólares para sobrevoar o espaço, quem sabe à procura de um lugar para viver, porque acham que a Terra já não é mais compatível com a quantidade de dinheiro que eles têm. Quando na verdade, parte do dinheiro que ele gasta poderia ser investido para a gente fazer mais conservação, para fazer mais preservação e para melhorar a vida das pessoas”.
Lula citou ainda os trilhões de dólares gastos com guerras e armamentos e a dificuldade das lideranças mundiais em enxergarem as pessoas mais humildes, camponeses e indígenas como parte da solução para os problemas da humanidade, e não como um empecilho.
O presidente eleito se disponibilizou a levar cartas e reivindicações das populações indígenas aos espaços de poder nos quais voltará a circular e criticou o fato de eventos como o Fórum Internacional dos Povos Indígenas não fazerem parte da institucionalidade da COP. “Muitas vezes as decisões que são tomadas não passam pela discussão com a sociedade e não são cumpridas. Quantas decisões já foram tomadas e não foram cumpridas? Quantos planos de desenvolvimento do milênio já foram feitos e não foram cumpridos?”.
Lula apontou, ainda, que nunca foi feita uma formulação conjunta entre os países que fazem parte da Amazônia. “Não é só preservar. A gente vai querer saber também quanto vão nos pagar para cuidar do planeta Terra, que muita gente não cuidou como poderia cuidar. E não é fazendo um favor a ninguém, é fazendo um favor a nós mesmos. O mundo precisa de cuidado. O mundo precisa de água limpa, o mundo precisa de floresta preservada , o mundo todo precisa da fauna. E ninguém melhor do que os indígenas para cuidar. E todos nós sabemos que eles são os responsáveis por cuidar de todas as florestas existentes no mundo”, finalizou.
Mulheres indígenas reforçam cobranças de promessas
Ao lado das lideranças indígenas Sônia Guajajara, Célia Xakriabá e Joênia Wapichana, que entoaram um cântico da etnia Xukuru, Lula também escutou no Fórum Internacional dos Povos Indígenas, pedidos para que os seus compromissos não sejam esquecidos.
Ele já havia dado especial atenção à questão indígena em seu primeiro discurso na Conferência, na dia anterior, quando afirmou no plenário geral da COP-27, diante do mundo, o seu compromisso de criar um futuro Ministério dos Povos Originários.
Sônia Guajajara, coordenadora da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e deputada eleita para o Congresso em 2023, iniciou as falas de representação do Brasil lembrando as dificuldades diante da gestão abertamente anti-indigenista do atual presidente Jair Bolsonaro (PL). Como- destaque, apontou a distorção do trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai) que, segundo a líder, deixou de cumprir grande parte de sua função de proteção aos territórios demarcados e de seus povos para se alinhar ao atual mandatário, transformando-se em ferramenta de perseguição e coerção aos opositores.
Ela indicou, ainda, a forma como Bolsonaro desmantelou os órgãos de proteção ambiental e os espaços de participação popular e controle social, dando como exemplo a paralisação do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI).
Sônia lembrou as mobilizações em prol dos direitos indígenas e em combate ao genocídio dos povos originários nos ultimos quatro anos. Indignada, citou a morte de mais de mil indígenas durante a pandemia por conta da negligência governamental. Rememorou que foram as organizações indígenas que levaram a acusação de Jair Bolsonaro ao Tribunal de Haia por crime contra a humanidade, genocídio e ecocídio. E, celebrou a busca por “aldear a política”, resultando na sua eleição e de Célia Xakriabá (Psol/MG) para o Congresso Nacional.
Ao final de seu discurso, Sônia entregou a Lula o processo de demarcação de cinco Terras Indígenas, segundo ela já apresentados anteriormente e sem impeditivos jurídicos, solicitando que o presidente eleito coloque essas demarcações como prioridade nos primeiros cem dias de seu governo.
Elcio Manchineri, da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), afirmou que a eleição de Lula é um retorno da esperança após quatro anos de escuridão sob Bolsonaro. “Esperança para o planeta e para o Brasil que retoma a sua linha de país com grande biodiversidade e que irá comandar as questões ambientais junto à ONU. Esperamos contribuir com o conhecimento ancestral com o Estado brasileiro e o planeta, porque é importante unificar os conhecimentos. Esperamos trabalhar o desenvolvimento de um país que respeita as realidades do seu povo e dos seus biomas”, explicou.
A liderança indígena também pediu a “canetada” de Lula para a demarcação das cinco TIs apresentadas por Sônia Guajajara. E lembrou que, além das TIs, é fundamental demarcar e criar novas Unidades de Conservação.
Joênia Wapichana, primeira mulher indígena a ocupar o cargo de deputada federal, que não se elegeu para o próximo mandato, parabenizou a conquista de Lula nas eleições, apresentando-se como uma parlamentar da Amazônia, de Roraima, e mais especificamente, alguém que lutou junto com o presidente eleito pela demarcação da TI Raposa Serra do Sol.
“Como primeira mulher indígena eleita, foi um período de resiliência e resistência, mas, acima de tudo, foi uma prova do nosso compromisso com o povo brasileiro, para não permitir que acabassem com muitos direitos. E hoje, nós vemos que a boiada e a tratorada não passaram muitas vezes por nossa mobilização junto aos povos indígenas ”, relatou a deputada.
Joênia citou o tema da COP-27, intitulado “a COP da implementação”, para afirmar que este também é o momento da implementação e da reconstrução no Brasil, onde, segundo ela, será importante a escuta das diferentes regiões e o respeito à diversidade cultural, como é de premissa do movimento indígena, inclusive no que se refere ao Ministério dos Povos Originários.
A deputada também lembrou a violência sofrida pelos territórios, a exemplo do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, e o assassinato de indígenas – como o ocorrido há poucos dias em Boa Vista (RR), onde uma mulher foi assassinada durante uma feira de produtores, segundo Joênia, uma morte efeito do ódio propagado pelo garimpo.
Para finalizar, a líder solicitou que planos que são tratados na conferência, como os que dizem respeito ao combate ao desmatamento, à inclusão social e ao desenvolvimento da bioeconomia, sejam efetivamente colocados em prática.
Fonte: O Eco
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