AS PISTAS DA DESTRUIÇÃO – Amazônia tem 362 pistas de pouso clandestinas perto de áreas devastadas pelo garimpo via The Intercept Brasil
Por Hyury Potter
Um pequeno risco marrom que rasga o verde da mata. É assim que uma pista de pouso construída no meio da floresta se parece quando vista por imagens de satélite. Lá embaixo, no chão da Amazônia, são estradinhas de às vezes meros 300 metros de extensão e uns 20 metros de largura, o suficiente para pousos e decolagens de aeronaves de pequeno porte.
Esses aviões, que pousam carregados de combustível e mantimentos, são peças-chave para compreender como garimpos do tamanho de dezenas de campos de futebol surgem em poucos meses no meio da maior floresta tropical do planeta. Esse é o começo de uma cadeia que termina em grandes mercados internacionais de ouro, com empresas globais de tecnologia na clientela.
Na Amazônia Legal, há 362 pistas de pouso e decolagem clandestinas — ou seja, sem registro na Agência Nacional de Aviação, a Anac —, em volta das quais há rastros de desmatamento por mineração de ouro. Mas o número mais do que triplica se considerarmos todas as pistas abertas sem autorização e registro na Amazônia Legal: 1.269 vias para pouso e decolagem. Esse número supera o de pistas registradas na região, que chegou a 1.26o em abril deste ano. Os dados foram consolidados em 1º de maio.
O levantamento inédito de pistas clandestinas na Amazônia é resultado de uma colaboração do Intercept com o Pulitzer Center e a organização não-governamental americana Earthrise Media, que reuniu os dados a partir de imagens de satélite da Amazônia Legal coletadas em 2021.
O número a que chegamos também inclui pistas encontradas na plataforma de mapas OpenStreetMap, pela ONG Instituto Socioambiental e por investigações policiais, além de estruturas identificadas visualmente ao longo da apuração. Consideramos para o número total todas as pistas que apresentaram indicação visual de que foram usadas em 2021 e 2022. Os dados foram analisados pelo Intercept em parceria com repórteres do jornal The New York Times, parceiro nesta publicação.
A demanda da mineração na Amazônia por transporte aéreo tem relação direta com a dificuldade de acesso aos locais onde são feitos os barrancos, como são chamados os garimpos. Uma viagem de estrada ou barco, que pode demorar dias ou semanas, é transformada em um trajeto de minutos ou um par de horas em pequenas aeronaves.
Onde tem ouro, tem pista
Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, os três municípios do Pará que concentram a maior parte das permissões de lavra garimpeira, as PLGs, utilizadas para esquentamento de ouro, também reúnem a maior quantidade de pistas clandestinas relacionadas a desmatamento por mineração.
O cruzamento das coordenadas geográficas das pistas com alertas de desmatamento por mineração da plataforma Amazon Mining Watch, produzida pelo Pulitzer Center com a Earthrise Media, permite constatar que, das 234 pistas existentes nessas três localidades, há rastro de desmatamento por mineração em um raio de 20 quilômetros de 224 delas. Ou nada menos que 95,7% do total.
Não à toa, a região lidera o ranking brasileiro de destruição de áreas de mata nativa por garimpos de ouro. Segundo um levantamento da organização Mapbiomas, em 2020, Itaituba e Jacareacanga eram os líderes nacionais em desmatamento por mineradores, com 54.340 hectares tomados pela exploração de ouro, área maior que a de Maceió, capital de Alagoas. Em apenas 36 hectares se trata de mineração industrial. Considerando apenas os números de garimpo de ouro, as duas cidades paraenses somam mais de 50% da área desmatada em todo o país para essa finalidade.
Em 2021, a Agência Nacional de Mineração, a ANM, responsável por regular e disciplinar a exploração de jazidas minerais no Brasil, recebeu a declaração de R$ 4,6 bilhões em ouro extraído em Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso — 17% de todo o ouro declarado no país naquele ano. No entanto, como uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e inquéritos da Polícia Federal já indicaram, nem todo esse ouro saiu de minas legalizadas. Para manter esse negócio bilionário funcionando, pistas sem registro são utilizadas largamente.
A antropóloga Luísa Molina pesquisa os avanços das atividades ilegais do garimpo em povos indígenas do Médio Tapajós, no sudoeste paraense. Ela me explicou como o produtor ilegal de ouro exerce seu poder na região e cobrou ações dos órgãos de controle. “Não são trabalhadores humildes que usam essas pistas, são grandes empresários. Se o governo quiser combater de verdade o negócio do ouro ilegal, tem que fiscalizar a cadeia logística por terra, rio e ar. Até porque essa logística não serve apenas para a economia do ouro ilegal, mas também para tráfico de drogas e armas”, afirmou Molina.
Anac acelera permissões de pistas
A Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, responsável por regular o setor no país, não parece disposta a fiscalizar as pistas irregulares. Até dezembro de 2021, o Código Brasileiro de Aeronáutica exigia que a construção de aeródromos demandava autorização prévia da agência, sob pena de multa – mas a agência pouco atuou para fazer valer a lei. De acordo com uma resposta que recebi em julho do ano passado, após um pedido feito por Lei de Acesso à Informação, a LAI, a Anac só emitiu seis multas por construção de pistas irregulares em todo país entre 2016 e 2021, nenhuma delas na Amazônia Legal.
Em nota enviada no início de julho, a Anac me informou que recebeu 49 denúncias sobre pistas clandestinas, operadores de aeronaves e pilotos na área da Amazônia Legal entre 2018 e 2021, e mais nove nos primeiros seis meses de 2022. De acordo com a agência, todos os casos passaram por apuração. Porém, considerando a resposta sobre multas aplicadas que recebi via LAI, nenhum dos 49 casos de 2018 a 2021 resultou em punição. Questionada sobre esses dados, a Anac mudou de discurso. As denúncias apuradas, aí, não seriam apenas sobre pistas clandestinas, mas também de aeronaves e pilotos que operavam voos irregulares.
A medida provisória 1.089/2021 do governo Bolsonaro deixou a vida de donos de pistas clandestinas ainda mais fácil. Desde 29 de dezembro, a Anac foi liberada do fardo que não parecia disposta a carregar. O artigo que exigia a autorização prévia da agência para a construção de pistas de pouso foi revogado na MP. A medida virou lei com a aprovação do Congresso, em maio, e a sanção presidencial no mês seguinte.
Questionei a Anac sobre as mudanças, e a agência reguladora me respondeu que “a autorização prévia para construção de aeródromo de uso público e privado continuam a vigorar, de acordo com a Resolução nº 158, de 13 de julho de 2010, que dispõe sobre a autorização prévia para a construção de aeródromos e seu cadastramento junto à ANAC”. No entanto, a mesma nota deixa escapar como a legislação ficou mais frágil: “Eventual ajuste regulamentar decorrente da ausência de exigência legal será estudado e passará por todo o rito normativo adequado”.
A alteração na legislação não afetou a exigência de que os voos precisam ser regulados pela autoridade aeronáutica. Mas até nisso o governo deu um jeitinho. O governo retirou indefinidamente as restrições de pouso e decolagem de vias sem registro na Anac, um presente para quem utiliza pistas clandestinas na Amazônia Legal. A mudança havia sido aplicada em julho do ano passado, por causa da pandemia de covid-19, para facilitar o atendimento de saúde de comunidades indígenas e ribeirinhas localizadas em regiões afastadas. Agora, virou definitiva.
Para o governo Bolsonaro, aliado de primeira hora do garimpo ilegal, o acesso livre a pistas clandestinas na Amazônia promove “o fomento regional, a integração social, o atendimento humanitário, o acesso à saúde e o apoio a operações de segurança”, que “precisam ser mantidos independentemente do caráter excepcional”.
Mas a realidade é bem diferente. Ao longo do trecho da BR-230, a Rodovia Transamazônica, entre Itaituba e Jacareacanga, é possível ver ao menos cinco pistas ativas de pouso e decolagem de pequenos aviões utilizados há anos por pilotos de garimpo. Três delas foram registradas pela Anac, no ano passado, após décadas na clandestinidade.
A mais antiga é conhecida como pista do 180, em referência à quilometragem da rodovia. A pista obteve o aval da Anac em agosto de 2021, mas opera desde a década de 1980 e, até hoje, funciona como uma escala para voos rumo a localidades mais afastadas para dezenas de pilotos de garimpo. Há até pousadas ao lado dela.
Em outubro do ano passado, quando estive no local para entrevistar pilotos para o mini-documentário Pilotos da Amazônia, do Intercept, vi ao menos 20 pousos e decolagens em apenas um dia, movimento equivalente ao do aeroporto de Maringá, no Paraná, cidade com 436 mil habitantes, Índice de Desenvolvimento Humano muito alto e o 50º maior PIB municipal do Brasil.
Pistas como a do 180 estão entre as 213 registradas pela Anac na Amazônia Legal em 2021, maior número de permissões da última década. É o triplo do total de novas pistas permitidas pela Anac em 2018, último ano do governo Temer, quando foram registradas 66 estruturas.
O governo Bolsonaro precisou de apenas quatro meses para superar esse número. Entre janeiro e abril de 2022, a Anac autorizou 76 pistas na Amazônia Legal. Uma das empresas que contou com as graças da agência foi a Gana Gold, que, após dois anos usando uma pista clandestina, conseguiu regularizá-la em janeiro sem precisar pagar qualquer multa à Anac. A pista serve de apoio a uma mina que foi embargada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, confirmados em decisões da Justiça Federal do Pará.
O procurador da República Gustavo Alcântara, do Ministério Público Federal de Santarém, lembra que pistas utilizadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai, seguem sem registro na Anac. Enquanto isso, pistas perto de locais com extração ilegal foram autorizadas pela agência.
“Existe um problema administrativo no governo federal, pois não parece haver um critério de avaliação sobre a função que a pista vai ter antes de ela ser aprovada pela Anac”, afirmou o procurador.
Mineradoras, políticos e lobistas
O cruzamento das localizações das 1.269 pistas clandestinas com dados públicos do Deter, o sistema de alertas de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, mostra que 72% das áreas desmatadas pelo garimpo estão onde sequer existe requerimento de mineração para ouro. Em outras palavras, se trata de garimpo ilegal, crime ambiental segundo o artigo 55 da lei 9.605/1998. Mesmo nos outros 28% em que a mineração teria chance de ser autorizada, em metade dos casos há irregularidades, com desmatamento fora do período autorizado pela ANM.
Consideramos neste levantamento a existência de desmatamento num raio de 20 quilômetros contado a partir do centro das pistas de pouso. Das 362 que se encaixam neste parâmetro, um dos casos mais graves é o da devastação de 10.541 hectares, o equivalente a mais de 14 mil campos de futebol juntos. Parte da área é objeto do requerimento minerário de número 850240/2003, feito em nome de André dos Santos. Ele chegou a obter uma autorização de pesquisa na área entre setembro de 2015 e setembro de 2018. Mas o Deter registrou alertas de desmatamento na região em março de 2021.
Além desse, há outros seis processos minerários em nome de Santos no perímetro de 20 quilômetros ao redor da pista. Todos têm ou já tiveram permissão da ANM para exploração, mas é possível verificar por imagens de satélite que o desmatamento ocorreu antes ou depois do período autorizado.
Considerando todos os processos minerários para ouro em nome de Santos em Itaituba, município do sudoeste do Pará que lidera a produção do metal por atividade garimpeira no Brasil, o número de requerimentos sobe para 16. No site da ANM, o minerador protocolou um documento informando como seus telefones e e-mail os dados de um lobista da mineração, o engenheiro florestal Guilherme Aggens.
Por telefone, Aggens me disse que representa André dos Santos em medidas administrativas na ANM, e que por isso o seu telefone celular foi indicado por Santos. Aggens afirmou, ainda que “não tem conhecimento” sobre a pista de pouso.
Com trânsito livre em Brasília, Aggens atuou diretamente no licenciamento irregular da empresa Gana Gold, que extraiu R$ 1,1 bilhão em ouro de uma mina irregular instalada na Área de Proteção Ambiental do Tapajós, uma unidade de conservação federal localizada entre os municípios de Itaituba, Jacareacanga e Trairão.
O Intercept revelou o caso com exclusividade em setembro do ano passado. Poucos dias depois, o ICMBio embargou a mina. No final de março, voltei a reportar sobre a Gana Gold, desta vez mostrando a pressão política feita por ocupantes de cargos do alto escalão no governo Bolsonaro, em Brasília, para liberar a mineradora dos embargos ambientais de que fora alvo. Também mostrei como a empresa descumpria as sanções ambientais impostas em setembro. Em julho, uma nova operação da PF cumpriu mandados contra a Gana Gold, que teve as suas atividades suspensas e R$ 1,1 bi em bens bloqueados, além da prisão de seus sócios.
Na região do Tapajós, ao menos 105 pistas clandestinas estão localizadas não apenas perto de áreas com processos minerários para pesquisar ou explorar comercialmente reservas de ouro, mas dentro das áreas requeridas para mineração. Porém, ainda que seja um indício importante, isso não é suficiente para comprovar que os donos dos processos na ANM operam pousos e decolagens nessas pistas.
Dono de duas aeronaves, João Ivan Bezerra de Almeida tem cinco requerimentos em Itaituba para garimpar em áreas que já contam com pistas de pouso. Empresário do ramo da construção civil, Almeida disputou as últimas duas eleições municipais em Itaituba por PSDB e PL, respectivamente – queria ser prefeito. Ele perdeu, mas estava sempre acompanhado de empresários do setor aurífero.
Em 2016, Almeida recebeu uma doação de R$ 130 mil para sua campanha de Dirceu Frederico Sobrinho – 30% de total declarado pelo candidato à Justiça Eleitoral. Em 2020, Almeida teve como candidato a vice-prefeito Roselito Soares da Silva Filho, filho do ex-prefeito Roselito Soares. Pai e filho são sócios de empresas ligadas ao grupo da Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ourominas, a Ourominas DTVM.
Até mesmo mineradoras conhecidas assinam requerimentos de mineração em áreas já devastadas para a abertura de pistas clandestinas. Desde 1993, a gigante canadense Belo Sun é dona de um requerimento de lavra garimpeira na APA Tapajós. Na região, está a comunidade garimpeira Patrocínio, cuja abertura remonta à década de 1960. O processo minerário da Belo Sun teve autorização de lavra da ANM entre 2007 e 2014, mas isso não impediu que o garimpo seguisse aumentando nos anos seguintes, ao lado de uma pista de 800 metros de comprimento.
O requerimento minerário da Belo Sun na ANM registra, em outubro de 2020, que a empresa apresentou um pedido de cessão total de direitos, ou seja, a entrega da concessão que havia obtido a outra pessoa ou empresa. Ainda assim, o processo continua sob responsabilidade do grupo canadense, que tem como principal projeto no Brasil a exploração de uma mina de ouro entre Altamira e Senador José Porfírio, no Pará.
Belo Sun é uma das seis mineradoras signatárias de um acordo firmado com o governo paraense para beneficiar o ouro que extrai em uma refinadora recém-construída em Belém, capital do estado. O Intercept mostrou, em fevereiro, que um dos principais investidores na refinaria é um empresário belga condenado por fraude e lavagem de dinheiro em seu país – em negócios com ouro. No mês seguinte à publicação da reportagem, duas empresas ligadas ao empresário belga receberam sanções da Secretaria de Tesouro dos EUA.
Outra signatária do acordo com a refinaria de Belém que também pleiteia minerar em áreas com pistas sem registro é a mineradora Brazauro, que desde de 2010 pertence a grupos canadenses. Na região do Tapajós, oito pistas clandestinas estão localizadas em terras delimitadas em requerimentos minerários da empresa.
Enviei perguntas às duas mineradoras sobre as pistas clandestinas em áreas de requerimentos minerários pertencentes a elas, mas nenhuma respondeu até a publicação desta reportagem.
De garimpeiro a empresário da aviação
A Piquiatuba Táxi Aéreo é uma das empresas de aviação regional com maior volume de pagamentos em contratos com o governo federal para transporte na Amazônia Legal. O fundador, Armando Amâncio da Silva, que morreu em outubro de 2020, começou seus negócios como garimpeiro no final dos anos 1980. Dali, construiu uma das maiores empresas de táxi aéreo do país.
O Portal da Transparência informa que, desde 2014, a Piquiatuba já faturou mais de R$ 143 milhões em contratos com o governo federal. A maior fatia desse montante, R$ 107 milhões, é fruto de pagamentos feitos pela gestão Bolsonaro. Os serviços prestados pela empresa vão do transporte de equipes de saúde para atendimento em comunidades indígenas a apoio logístico às Forças Armadas.
Mas o governo federal não é o único cliente da Piquiatuba. A empresa também empregou seus aviões no apoio logístico a um garimpo ilegal do próprio Amâncio em Almeirim, norte do Pará. O barranco conhecido como garimpo do Limão fica em uma unidade de conservação de proteção integral, a Reserva Biológica Maicuru, e a apenas 10 quilômetros de distância de uma das bordas do território indígena Rio Paru d’Este. A informação é de uma investigação da Polícia Federal, a PF, deflagrada em outubro de 2020, poucos dias antes da morte do dono da Piquiatuba. Na operação, a polícia apreendeu na casa de Amâncio quase 45 quilos de ouro sem origem comprovada.
“Além de estar desacompanhado de documentação de origem, o modus operandi do requerido Armando Amâncio da Silva e o fato de ele ser responsável pela extração ilegal de ouro no Garimpo do Limão corroboram o caráter ilegal do ouro apreendido na residência do requerido”, afirma o Ministério Público Federal, o MPF, em ação civil pública apresentada no ano passado.
Para servidores federais que trabalham em órgãos de controle, proteção a terras indígenas e ao meio ambiente, a suspeita de que empresas contratadas pelo governo também prestem serviços a criminosos cria mal-estar e desconfiança em operações mais sensíveis.
“A Piquiatuba é a empresa contratada para fazer voos da Funai e de Saúde indígena em determinadas regiões do Pará, mas sabemos que ela também voa a serviço de garimpos. Se precisamos fazer um sobrevoo para identificar um garimpo ilegal dentro de terras indígenas, preferimos não chamar a Piquiatuba e tentar uma carona em aeronaves de outras instituições, pois sabemos que há um conflito de interesse envolvido”, me explicou um servidor da Fundação Nacional do Índio. Ele preferiu não ter o nome revelado para evitar represálias do governo.
A PF investigou os aviões que pousaram numa pista próxima ao garimpo chamado de Limão, entre 2015 e 2018. “Ao menos 182 voos” para a mina ilegal foram operados pela Piquiatuba, afirmam os policiais.
Dois meses após a operação, a Justiça Federal atendeu a um pedido do MPF e bloqueou provisoriamente R$ 268 milhões do espólio da Piquiatuba e de seu fundador, para garantir o ressarcimento dos danos ambientais causados pelo esquema de garimpo ilegal. Mais de cem quilos de ouro foram retirados da mina ilegal, segundo a investigação.
Em fevereiro do ano passado, o procurador Gustavo Alcântara, do MPF, apresentou ação civil pública em que pede que a Piquiatuba e Amâncio sejam condenados a pagar quase R$ 400 milhões por venda ilegal de ouro, danos ambientais pela extração ilegal e danos coletivos aos povos indígenas da terra Paru D’Este. Na ação, o procurador explica como a empresa de táxi-aéreo que ganha milhões do governo federal também prestou serviços ao garimpo.
“Armando Amâncio da Silva fez com que sua empresa aérea, a Piquiatuba Táxi Aéreo, funcionasse como aparato fundamental da atividade criminosa, tendo sido registrada elevada atividade de aviões da companhia para a pista de pouso de apoio ao garimpo do Limão”, ele escreveu, na denúncia.
Conversei com o procurador Alcântara por telefone, e ele apontou um problema no combate a atividades ilegais que usam aeronaves na Amazônia: os equipamentos muitas vezes permanecem com os donos mesmo após operações de órgãos de controle.
“Há jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a perda de qualquer bem que seja utilizado para crime ambiental. Aeronaves que forem apreendidas em situação que se configure crime ambiental, como é um garimpo ilegal, deveriam ser tomadas imediatamente do dono. Mas nem sempre isso acontece”, disse o procurador.
Para a defesa de Amâncio e da Piquiatuba Táxi Aéreo, um conhecido escritório de advogacia de Brasília foi acionado: o Catta Preta Advogados. Entre seus clientes, o advogado Paulo Emílio Catta Preta de Godoy tem Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro no caso das rachadinhas. Ele também representou legalmente o miliciano Adriano da Nóbrega, morto em 2020, um dos suspeitos por ter participado do assassinato da vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes em março de 2018.
Catta Pretta me respondeu que todo o ouro de Amâncio foi “regularmente extraído de áreas com as necessárias PLGs”. Ele disse ainda que a Piquiatuba Táxi Aéreo não tem relação com negócios de ouro com DTVMs, e que o bloqueio judicial nas contas da Piquiatuba e do espólio de Amâncio foi reduzido a R$ 13 milhões.
Sobre os 182 voos de aeronaves da Piquiatuba para a operação de garimpos ilegais, o advogado afirmou que a empresa “não exerce ou contribui com nenhuma atividade relacionada ao garimpo”. Em janeiro de 2021, ainda durante a investigação, a defesa de Amâncio e da Piquiatuba chegou a se manifestar na justiça informando que as viagens identificadas pela PF seriam para “pistas não homologadas localizadas em aldeias indígenas, na execução de contratos públicos de transporte no interesse da saúde indigenista”.
As regras de aviação brasileira não permitem planos de voos para pistas não homologadas. Apesar do garimpo do Limão ser ilegal, a pista próxima ao barranco chegou a ter homologação ativa na Anac entre 2011 e 2018, então poderia receber voos oficiais. Segundo a defesa, a empresa indicava essa pista nos planos de voos, mas as viagens seriam para as pistas sem homologação em terras indígenas na região. Porém, na ação do MPF, o procurador Alcântara explicou que a defesa da Piquiatuba seria “manifestadamente improcedente”, pois o contrato para atendimento nas terras indígenas na região só foi assinado em agosto de 2018, após o período analisado pela PF.
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