O desmatamento e a grilagem aumentaram no governo do Acre de Gladson Cameli, que vê no modelo do vizinho a solução para o estado
Por Amanda Audi
Uma área do tamanho da Holanda está sendo ocupada aos poucos, e silenciosamente, por posseiros no Acre. São 4,6 milhões de hectares formados majoritariamente por floresta nativa, no estado que possui uma das maiores presenças vegetais intactas do país e que nos últimos anos quebrou recordes de desmatamento.
As terras pertencem à União, mas não têm uso definido. Isto é, não são áreas de preservação ambiental, assentamento, território indígena ou quilombola. Sem destinação específica, elas são vistas como um convite para grileiros que querem botar a mata abaixo para plantar soja ou criar gado.
Há a possibilidade de parte da área já ser ocupada por moradores, mas de forma irregular, como indicam os dados do relatório “Leis e práticas da regularização fundiária no estado do Acre”, do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
O documento ainda mostra que a legislação do estado não define um prazo-limite para ocupação de terras públicas para regularização. Ou seja, elas podem ser invadidas a qualquer momento – ontem, hoje ou mesmo no futuro – e ainda assim serem regularizadas para os posseiros.
Além disso, cerca de um terço das terras indígenas – que já têm destinação legal – ainda não foram homologadas e também são alvo de invasões. Sozinhas, essas áreas somam quase 300 mil hectares.
O desmatamento e a grilagem se intensificaram principalmente nos últimos anos com o governo de Gladson Cameli, governador do Progressistas que apoia o presidente Jair Bolsonaro e lidera as pesquisas de intenção de voto, com chance de ser reeleito no primeiro turno.
Como Bolsonaro, Cameli formou a sua articulação política com evangélicos, ruralistas e grandes empresários das maiores cidades do estado. Em quatro anos, ele propôs o enfraquecimento de mecanismos de fiscalização ambiental, disse para produtores não pagarem multas e continua prometendo a madeireiros “desburocratizar” o setor.
O analista ambiental Govinda Terra, que trabalhou por seis anos na fiscalização de desmatamento do estado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama), pondera que o discurso não é de um político específico, mas que costuma sempre ganhar força em ano eleitoral por ter alta adesão na sociedade. “O apoio à ocupação irregular dá resultado eleitoral no curto prazo, e isso gera mercado para os grileiros, pois muitas vezes eles utilizam as pessoas pobres para consolidar a ocupação e o local vira um curral eleitoral”, diz.
Cameli é um dos principais defensores da “rondonização do Acre”, um nome dado por especialistas para a mudança de foco no modelo de desenvolvimento do estado inspirado no estado vizinho de Rondônia.
“Em especial no primeiro ano de mandato, eram frequentes as idas do atual governador a Rondônia para visitar empreendimentos agropecuários, com o propósito de importar o modelo do agronegócio e atrair investidores para o estado”, afirma Luci Maria Teston, coordenadora estadual do Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal (Legal-Amazônia).
Um dos exemplos da união dos governos para impulsionar o agronegócio foi a aliança entre Acre, Rondônia e Amazonas para criar o Amacro (acrônimo com os nomes dos estados) em 2019, com o apoio do presidente Jair Bolsonaro.
Liderados por governadores bolsonaristas, os estados atuaram para permitir que a região da “tríplice fronteira” entre eles virasse um grande polo agrícola – ou basicamente uma gigantesca plantação de soja e pasto para gado. A iniciativa foi “gestada no âmbito das federações de agricultura”, de acordo com a pesquisadora.
Após duras críticas, principalmente de ambientalistas, o Amacro acabou se tornando uma versão mais soft, com a alegada proposta de conciliar sustentabilidade e desenvolvimento, e rebatizado como Zona de Desenvolvimento do Acre, Rondônia e Amazonas Abunã-Madeira.
Mas isso não impediu que a região se tornasse o novo marco do desmatamento ilegal no país. Somente no ano passado, ela concentrou 12% de toda a mata devastada no país, em um aumento de mais de 30% em apenas dois anos.
“O processo de desmatamento e queimadas no Acre não é recente, apesar dos dados mostrarem que houve aumento considerável nos últimos anos, em especial a partir do deslocamento da inclinação ideológica do sistema partidário da esquerda para a direita, na esteira das eleições de 2018”, diz Teston.
O meio ambiente tampouco é uma preocupação relevante na agenda legislativa acriana. Dos mais de 600 projetos de lei apresentados entre 2019 a 2021, apenas 13 proposições envolveram a temática na Assembleia Legislativa, mostram pesquisas desenvolvidas pelo Legal Amazônia.
Terra de posseiros
O problema da regularização de terras no Acre é antigo. Há quem diga que o estado deveria ter três andares de altura para conseguir comportar todas as terras que foram registradas de forma sobreposta. “O Acre tem várias gerações de documentos antigos de terra emitidos no Rio de Janeiro, Manaus, Bolívia e Peru”, diz Govinda Terra.
Na década de 1970, quando o estado ainda era recém-criado, os fazendeiros usavam avião para medir terras e depois registrar em cartório. “Quando se faz o georreferenciamento, é possível argumentar que a área é maior do que consta no documento antigo. E aí vêm as sacanagens”, ele continua.
Com mais de 80% de território ocupado por mata e pouco populado (metade dos seus cerca de 900 mil moradores vivem na capital, Rio Branco), sempre foi fácil para os posseiros driblar a fiscalização e se estender por terras cada vez mais extensas. Nos últimos anos, porém, o processo escalonou de forma nunca vista.
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre 2018 e 2021 o desmatamento no Acre mais do que dobrou. Passou de pouco mais de 400 km2 por ano para o recorde de 889 km2 – o equivalente a 90 mil campos de futebol. Foi o maior índice em quase duas décadas.
O rebanho de gado também tem aumentado continuamente, e hoje já há quatro vezes mais bovinos do que habitantes no estado. A boiada depende de áreas desmatadas para pastar. “Tanto os migrantes como os filhos de seringueiros tradicionais entendem a pecuária como um modo de vida próspera”, diz o analista ambiental.
O látex, extraído pelos seringueiros para fazer borracha, já foi o principal motor econômico do estado. Hoje o cenário mudou drasticamente. Por anos, os produtos derivados de madeira foram os mais exportados. E, em 2022, pela primeira vez, a soja passou a liderar as exportações, com 31%, segundo o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.
O resultado da devastação já é sentido na pele pelos acrianos, que nos últimos anos passaram a sofrer com extremos climáticos que vão de enchentes a estiagens históricas.
A bacia do rio do Acre, que nasce no Peru, percorre a Bolívia e desemboca no Brasil, teve a sua segunda pior seca em 2021. Apenas um ano antes, metade dos municípios foram afetados por enchentes tão poderosas que colocaram o Acre em estado de calamidade pública. Tudo isso no meio da pandemia de covid-19.
Reviravolta na política
Durante a campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro subiu em um trio elétrico em Rio Branco, empunhou um tripé de câmera e simulou um fuzil. “Vamos fuzilar a petralhada”, bradou. O gesto não foi simbólico apenas para o que viria a ser o seu governo nos quatro anos seguintes, mas também para uma transformação profunda no estado.
O Acre tem histórico de politização até pela demora em ser reconhecido como um estado brasileiro, o que ocorreu de modo oficial apenas em 1962. Passou por revoltas e tentativas de anexação e sofreu constantes pressões e interferências externas para ser explorado.
Foi lá que o sindicalista Chico Mendes liderou movimentos de seringueiros nos anos 1980 e cunhou conceitos de exploração sustentável da floresta – a chamada “florestania”, união de floresta e cidadania. Também foi lá que a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, que ajudou a criar o Partido dos Trabalhadores (PT) no estado junto com Chico Mendes, deu seus primeiros passos na política.
O Acre ainda foi berço do PT durante 20 anos, com governos consecutivos do partido entre 1999 e 2019, e ganhou fama de ser um dos estados mais de esquerda do país.
Tudo mudou há quatro anos, com a eleição de Cameli para o governo estadual e o banimento de petistas de quase todos os cargos políticos que antes eram dominados por eles. Em 2018, apenas dois deputados estaduais do partido foram eleitos. Bolsonaro teve cerca de 80% dos votos válidos, sete vezes mais do que o candidato do PT, Fernando Haddad, e o Acre se tornou o estado mais bolsonarista do Brasil.
Na época, segundo cientistas políticos, a população estava cansada da “dominação familiar” de poucos grupos na política. No caso do PT, havia uma estafa da família de Jorge e Tião Viana, que se alternavam no poder no governo e no Senado, e de seus indicados, que venciam eleições com facilidade.
O Acre é um dos estados com forte presença de evangélicos, que são impactados pelo discurso conservador bolsonarista. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não tem os dados por crença religiosa, mas o último censo mostra que 40% da população de Rio Branco é evangélica.
Há também pouco interesse dos eleitores por questões ambientais, como demonstrou uma pesquisa do Legal-Amazônia com moradores das capitais dos nove estados da Amazônia Legal publicada este ano.
“É consenso que a temática ambiental não integra o conjunto de motivações para o voto, independente do cargo em disputa. Os participantes avaliam que o assunto não faz parte das promessas dos candidatos porque ‘não dá voto’”, diz o relatório.
O pensamento é pautado por um discurso antiambientalista que ganhou força na sociedade nos últimos anos, que entende que a preservação do meio ambiente não garante riqueza para o estado. Por outro lado, a agricultura, a modernização e a industrialização cumpririam esse papel.
A reviravolta política no estado se explica também pela mudança dos quadros. Antes, a oposição era desestruturada e liderada por nomes como Hildebrando Pascoal, conhecido como “deputado da motosserra” por ter sido condenado por comandar um grupo de extermínio. Já Cameli, quando foi eleito, conseguiu uma coligação ampla que lhe rendeu tempo de propaganda no rádio e na televisão.
Cameli é sobrinho de um ex-governador, Orleir Cameli, que atuou entre 1995 e 1999, e pertence a uma família tradicional com influência no Vale do Juruá. A família chegou a ser acusada de extração ilegal de madeira de uma terra indígena, mas se livrou da denúncia após ter pago uma multa de R$ 14 milhões.
O governador foi citado na Operação Lava Jato como suposto beneficiário, entre outros políticos do PP, de mesadas vindas de contratos da Petrobras. Mas não chegou a ser denunciado e sempre negou irregularidades. A reportagem tentou contato com o governador, que não retornou até a publicação.
Ao que tudo indica, o Acre deve manter a sua vocação bolsonarista no próximo pleito, mesmo que Bolsonaro perca na disputa nacional. Na última pesquisa Ipec no estado, divulgada este mês, o presidente tinha 53% das intenções de voto. Cameli saiu-se ainda um pouco melhor: registrou 54% de preferência.
Fonte: Agência Pública
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