André Julião | Agência FAPESP – As três espécies de peixe-boi hoje existentes têm em comum um ancestral do qual divergiram cerca de 6,5 milhões de anos atrás – quando um imenso lago na Amazônia, então ligada ao Caribe, se fechou para o mar. O peixe-boi-africano (Trichechus senegalensis) não é tão próximo geneticamente do peixe-boi-marinho (T. manatus) quanto se pensava. E a adaptação do peixe-boi-da-amazônia (T. inunguis) a esse ambiente complexo deixou pelo menos uma marca em seu código genético.
As conclusões são de um estudo apoiado pela FAPESP e publicado na revista Scientific Reports, que traz detalhes até então desconhecidos sobre a história evolutiva dos peixes-boi. Liderado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o grupo internacional de cientistas realizou o primeiro sequenciamento do DNA mitocondrial das três espécies hoje existentes do mamífero aquático.
“Cerca de 20 milhões de anos atrás, a Amazônia estava conectada com o mar do Caribe pelo hoje extinto lago Pebas. Tanto na área caribenha como na amazônica havia peixes-boi, não os atuais, mas um ancestral comum. Há mais ou menos 9 milhões de anos, o nível do mar baixou e o lago Pebas foi se reduzindo e se desconectando do Caribe. Dessa maneira, os peixes-boi da região amazônica ficaram semi-isolados, uma vez que ainda havia alguma entrada do mar nesse lago. Mas, entre 6 e 5 milhões de anos atrás, a Amazônia tornou-se totalmente isolada da região caribenha, as populações foram separadas e começaram a se especializar no ambiente fluvial ou no marinho”, conta Mariana Freitas Nery, professora do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp apoiada pela FAPESP e coordenadora do estudo.
Uma vez que são poucos os registros fósseis de peixe-boi, o cruzamento das informações existentes com dados geológicos e genéticos possibilitou escrever a história evolutiva do gênero Trichechus, que engloba as três espécies atuais do mamífero. Amostras de tecido foram obtidas em colaboração com pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no Amazonas, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de instituições da Bélgica e dos Estados Unidos.
O grupo realizou então o sequenciamento do DNA da mitocôndria, a organela responsável pela produção de energia das células. Ainda que tenha menos genes do que o material genético existente no núcleo da célula, o DNA mitocondrial – herdado somente da mãe – pode ser sequenciado com mais facilidade em laboratório. Além disso, possui informações cruciais sobre a evolução de um ser vivo. Os dados são os mais completos já obtidos dos peixes-boi.
“Pudemos adicionar informações que não existiam nos trabalhos realizados até então, principalmente da espécie africana. Nas filogenias [histórias evolutivas do grupo] já feitas só havia informação das espécies que ocorrem nas Américas, ainda assim de apenas alguns genes. Era sempre muito difícil ter acesso ao material do T. senegalensis, o que foi possível graças a essa colaboração internacional. Finalmente conseguimos uma hipótese bem fundamentada a respeito da distribuição desses animais”, explica Érica Martinha Silva de Souza, uma das autoras principais do trabalho, que é parte de seu doutorado no IB-Unicamp.
Da América do Sul para a África
“É muito interessante como a história da bacia amazônica influenciou a distribuição de várias espécies de peixes, aves, répteis e mamíferos. E aqui vemos claramente a influência da formação da bacia amazônica na distribuição dos peixes-boi”, conta Souza à Agência FAPESP.
Em janeiro deste ano, enquanto as autoras finalizavam o artigo, foi publicada a datação dos primeiros fósseis de um quarto membro do grupo, o peixe-boi-do-oeste-da-amazônia (Trichechus hesperamazonicus), já extinto. Encontrados no atual Estado de Rondônia, os fragmentos da mandíbula e de parte do crânio tiveram idade estimada em 45 mil anos. Não existem peixes-boi atualmente na região (leia mais em: https://revistapesquisa.fapesp.br/o-antigo-peixe-boi-de-rondonia)
Segundo as pesquisadoras da Unicamp, encontrar um fóssil na África seria crucial para estabelecer quando o peixe-boi chegou ao continente. Como esse registro ainda não foi obtido, não é possível saber quando ocorreu a provável migração, via correntes marinhas, que originou o peixe-boi-africano.
Estudos realizados por outros grupos comparando a morfologia das espécies e analisando alguns genes haviam concluído que a espécie que ocorre na África – mais precisamente na costa que vai do Senegal ao norte de Angola e em rios que desaguam nela – seria mais próxima do peixe-boi-marinho (T. manatus), presente numa área que vai da costa sudeste dos Estados Unidos, passando pelo Caribe e chegando ao nordeste brasileiro.
As análises do DNA mitocondrial mostraram, na verdade, que o T. manatus está mais relacionado geneticamente com o T. inunguis do que com a espécie africana. Provavelmente, as relações entre T. senegalensis e T. manatus verificadas nos outros trabalhos se devem às características dos hábitats em que a espécie costeira americana e a africana vivem.
Ambas as espécies se alimentam de plantas aquáticas que crescem no fundo, o que moldou o formato de suas mandíbulas e dentes; além disso, transitam entre a água salgada e salobra, respectivamente do mar e de porções de rio parcialmente invadidos pelo oceano. A espécie amazônica vive apenas em água doce. Essa capacidade é sinalizada por uma mutação no gene ND4, relacionado à cadeia respiratória da célula, e exclusiva dessa espécie.
A mesma alteração está presente em golfinhos de água doce, mamíferos de vida subterrânea e alpacas de altas altitudes. Outros estudos mostram ainda que a mutação pode estar relacionada a mudanças de temperatura do ambiente e adaptações necessárias para equilibrar uma dieta pouco energética em um corpo de grandes dimensões – problemas que o peixe-boi-da-amazônia tem de lidar frequentemente.
“Encontramos o que chamamos de uma seleção positiva nesse gene específico da cadeia respiratória da célula. A água doce é um ambiente complexo e dinâmico, com variações de temperatura, quantidade de sedimentos e acidez, especialmente na bacia amazônica, então era até esperado que essa espécie apresentasse mais ‘pegadas’ moleculares de sua adaptação a esse meio”, afirma Nery.
Extremamente dóceis à presença humana, o comportamento das três espécies facilitou a ação de caçadores – o que representa uma ameaça à sua sobrevivência, assim como a perda de hábitat. Atualmente, as três estão na categoria “vulnerável” da lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). Conhecê-las melhor é um passo importante para conservá-las.
Por isso, além de apoiar grupos que trabalham na conservação das espécies, a equipe está realizando o sequenciamento do genoma nuclear completo dos animais que ocorrem no Brasil. “Do ponto de vista da história evolutiva, não acredito que os resultados devem mudar muito em relação ao que já encontramos com o genoma mitocondrial. Mas buscamos novas informações que ajudem a entender melhor esses animais. Por enquanto, escrevemos a história mais completa possível sobre eles”, encerra Nery.
O artigo The evolutionary history of manatees told by their mitogenomes pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41598-021-82390-2.
Fonte: Agência FAPESP
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