Documento divulgado pela organização Climate Policy Initiative compila e expõe fragilidades das mudanças introduzidas por Bolsonaro na aplicação de multas ambientais no país
Relatório divulgado na última segunda-feira (7) pela organização Climate Policy Initiative (CPI/PUC-Rio) detalha, tecnicamente, os problemas que servidores públicos ambientais têm enfrentado, na prática, com as mudanças no processo de autuação de infrações ambientais no país.
Intitulado “Análise do Novo Procedimento Administrativo Sancionador do Ibama e seus Reflexos no Combate do Desmatamento na Amazônia”, o relatório traz uma revisão de leis e normas que regulam e regulamentam o assunto – a partir da publicação do Decreto 9.760, de abril de 2019, até as recentes Instruções Normativas 1 e 2, publicadas em 2021 (leia mais abaixo) –, com o objetivo de entender os impactos destas alterações e avaliar em que medidas elas são efetivas.
O relatório traz cinco pontos de destaque que, de acordo com suas autoras, comprovam que as profundas mudanças implementadas pelo atual governo no processo sancionador na esfera federal o tornaram mais complexo, frágil e sujeito ao controle político:
1 – Deficiências nas audiências de conciliação – O decreto 9.760/2019 suspendeu a cobrança da multa até que seja realizada a audiência de conciliação. O mecanismo, criado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi justificado como uma tentativa de fazer órgãos fiscalizadores chegarem a um acordo, sem a necessidade de contestação judicial.
No entanto, segundo o relatório da CPI/PUC-Rio, a regulamentação da etapa de conciliação se deu de forma tardia, descoordenada e com normas ambíguas sobre o agendamento das audiências, o que prejudicou a implementação desta nova etapa. E o problema não foi a pandemia, diz o documento, já que o novo formato foi implementado em abril de 2019, um ano antes do início das restrições sanitárias no país.
De fato, segundo apurou ((o))eco, passados dois anos da criação dos Núcleos de Conciliação, nem mesmo o sistema usado pelos servidores, chamado Sabiá, funciona corretamente. “Até as coisas básicas deste sistema eles não resolveram, vive dando problema, você abre está desatualizado ou não conseguimos mexer”, diz um servidor, cuja identidade será mantida em sigilo. Desde 2019, servidores da área ambiental estão proibidos de dar entrevista sem autorização prévia da assessoria de imprensa do Ministério do Meio Ambiente.
O relatório também reforça o fato de que as audiências não estão sendo realizadas em número necessário, atrasando o processo de milhares de autos de infração. Levantamento realizado pelo Observatório do Clima em outubro de 2020 mostrou que o Ibama havia realizado apenas cinco audiências de um total de 7.025 agendadas, entre outubro de 2019, quando o decreto entrou em vigor, e agosto do ano passado. O ICMBio não havia feito nenhuma.
Nos quatro primeiros meses de 2021, o Ibama realizou 247 audiências, das quais 171 resultaram em conciliação e 76 não tiveram acordo e os autos seguiram para a etapa seguinte. O número, diz o relatório, é muito pequeno diante do universo de autos de infração ambiental lavrados que, em 2020, chegaram a 8 mil.
No dia 12 de maio passado, o então superintendente de Apuração de Infrações Ambientais do Ibama, Wagner Tadeu Matiota, tentou promover um “arrastão” de conciliações, ao enviar despacho a todas as regionais do país determinando a realização de audiências para 2.838 multas ambientais, entre 11 de junho e 20 de agosto. Em alguns Estados, haveria apenas uma semana para executar o trabalho, segundo revelou matéria publicada na última sexta-feira (4) pelo Estadão. Com o baixo número de servidores, o prazo se mostrou impossível de ser executado.
Uma semana depois, Matiota, que é coronel da PM de São Paulo, foi afastado da função, no âmbito da Operação Akuanduba, da Polícia Federal.
De fato, relatório da CPI/PUC-Rio aponta que “os integrantes dos Núcleos de Conciliação Ambiental (NUCAM) foram designados sem critérios claros e objetivos e em número insuficiente em vários estados”. Essa situação foi agravada pelas novidades trazidas por uma das Instruções normativas publicadas este ano, que atribuiu aos NUCAM a competência de análise preliminar dos autos de infração, adicionando uma camada de complexidade ao processo.
Essas questões foram apontadas por diversas vezes pelos servidores, uma delas em 14 de maio, por ocasião do “arrastão” de audiências, quando a chefe substituta da Divisão de Conciliação Ambiental enviou um despacho ao MMA dizendo que “com a estrutura atual do Nucam e com o quantitativo de audiências proposto, é humanamente impossível que os trabalhos sejam realizados por um único servidor, principalmente se o conciliador for submetido ao rito da INC 01/2021, que prevê a realização da análise preliminar, da audiência, e dos trâmites administrativos anteriores e posteriores à audiência”.
Por último, em relação a este ponto, o relatório da Climate Policy aponta que a falta de transparência dos dados relativos às audiências impede o acompanhamento e avaliação, pela sociedade civil, desta nova etapa procedimental.
2 – Discricionariedade – Outro ponto levantado no relatório foi o estabelecimento de uma etapa preliminar de análise dos autos de infração “por autoridade hierarquicamente superior” ao agente que promoveu a fiscalização. Isto é, a multa aplicada por um fiscal tem que ser aprovada pelo seu chefe para seguir em frente. O problema é que não está definido qual o prazo para esse superior emitir seu parecer e não existe obrigação de fundamentação desta decisão.
Tais mudanças, diz a Climate Policy, “permitem que estas autoridades atuem com demasiada discricionariedade e controle sobre as atividades dos agentes de fiscalização e sobre a continuidade ou não do processo administrativo”.
Em carta enviada em abril ao então presidente do Ibama, Eduardo Bim, servidores do Ibama compararam a existência da autoridade hierarquicamente superior à figura de um censor, “com ampla e irrestrita discricionariedade”. Bim também foi afastado do cargo na Operação Akuanduba, da PF.
3 – Centralização de tarefas – As novas regras do sistema sancionador concentram toda a instrução processual em uma equipe nacional, sob a orientação do Ibama sede. Segundo o relatório, se esta equipe for formada por número insuficiente de servidores ou por servidores sem qualificação técnica necessária, este pode ser um ponto de represamento dos processos. Além disso, os julgamentos dos autos estão centralizados nos superintendentes estaduais (1ª instância) e no presidente do Ibama (2ª instância) o que, além de constituir um gargalo na tramitação dos autos, torna os procedimentos “mais facilmente sujeitos ao controle político dessas pessoas”, diz o relatório, ao lembrar que os superintendentes não têm garantia de permanência no cargo e podem sofrer pressões externas visando o direcionamento das decisões proferidas.
4 – Alterações constantes na Lei – Segundo o relatório, a alteração sucessiva dos marcos legais dos procedimentos sancionadores “gera uma enorme insegurança jurídica, paralisa as atividades de fiscalização e a apuração das infrações ambientais até que os órgãos consigam se adaptar às novas regras”. Além disso, tais mudanças acarretam um grande desperdício de recursos públicos usados para a capacitação do corpo técnico e compra e/ou desenvolvimento de novos sistemas.
5 – Substituição de servidores capacitados – O documento da Climate Policy Initiative lembra ainda que servidores qualificados que ocupavam cargos estratégicos foram exonerados e substituídos por pessoas sem experiência em gestão ambiental e qualificação técnica necessária, o que põe em xeque a capacidade e vontade do atual governo tornar o procedimento administrativo mais eficaz para apurar as infrações ambientais.
Segundo Cristina Lemes Lopes, analista sênior do CPI/PUC-Rio e uma das autoras do estudo, os números falam por si. O desmatamento na Amazônia em 2020 foi 47% maior do que a taxa registrada em 2018, enquanto a quantidade de autuações por infrações ambientais caiu pela metade em 2020, também na comparação com 2018.
“Como o comando e controle é fundamental na política de combate ao desmatamento na Amazônia, no momento que esse procedimento se torna mais complexo, mais frágil e mais sujeito ao controle político, há um impacto muito grande na agenda de controle do desmatamento. É como se estivesse passando uma mensagem negativa de apoio aos ilícitos ambientais: se não tenho esse sistema de repressão funcionando, não preciso me preocupar em ser repreendido, portanto, estou livre para desmatar”, avalia.
Fonte: (O)Eco
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