O Governo do Pará, por meio da Secretaria de Transportes (Setran), planeja a construção da Rodovia Liberdade, cujo traçado corta uma importante área verde de Belém, afetando Unidades de Conservação e uma comunidade quilombola – a do Abacatal –, que tem lutado para ser ouvida. A construção da rodovia tem como objetivo desafogar o trânsito na BR-316 e ser uma via alternativa para a entrada e saída da capital. O projeto ainda se encontra em fase inicial e ainda não começaram os estudos de impacto ambiental.
A BR-316 é a principal via de deslocamento para saída e entrada de Belém e é reputada por seu trânsito intenso e acidentes. Por conta disso, foi criado o projeto da PA-020, a Rodovia Liberdade, que pretende ser uma via expressa com traçado paralelo à BR-316, para reduzir a concentração de veículos nesta última e, com isso, diminuir acidentes de trânsito e melhorar o fluxo de carros. Por dia, 93 mil carros passam pela BR-316 neste trecho.
O projeto existe há cinco anos e foi pensado ainda na gestão do ex-governador Simão Jatene (PSDB). A sua implantação está dentro das ações estratégicas de desenvolvimento do Estado do Pará e contemplada no Plano Plurianual estadual, publicado no Diário Oficial. Em dezembro, a Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) aprovou uma lei autorizando o governo do estado a fazer um empréstimo de 400 milhões de reais para a construção da rodovia.
No dia 1º de julho de 2021, o governo paraense promoveu um encontro semipresencial realizado no auditório da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), em Belém, com transmissão pelo canal do órgão no YouTube. Na ocasião, foi apresentada a segunda versão da proposta da rodovia Liberdade. Essa etapa ainda não conta como consulta pública, obrigatória quando o projeto estiver definitivamente pronto e com os estudos de impacto ambiental apresentados. Enquanto essa etapa não vem, a comunidade que será afetada pela construção da via expressa segue apreensiva.
O governo minimiza as críticas e diz que vai ouvir a comunidade e trabalhar com alternativas. “Nós não temos ainda um projeto pronto, acabado. Nós não temos licenciamento pronto, acabado. Nós estamos hoje no momento de construção desse projeto”, afirma o procurador geral do Estado, Ricardo Sefer.
O projeto
A concepção do traço apresentado possui 13,4 km de extensão, sai da Avenida Perimetral, em Belém, e chega na Alça Viária, em Marituba, e passa por dentro do único mosaico de áreas protegidas da capital do Pará. A ideia é que a estrada acompanhe um lado do linhão da Eletronorte, tenha sentido duplo e com duas faixas por sentido, com largura máxima de 24,2 metros, resultando em uma supressão vegetal de 68 hectares.
“No primeiro projeto conceitual essa supressão de vegetação (68 hectares) era maior (114 hectares). Foram feitas adequações visando o menor impacto ambiental para que a gente possa garantir uma rodovia verde e em equilíbrio com a fauna e flora da região”, diz o secretário de Transporte, Adler Silveira, responsável pela concepção do projeto.
Como a rodovia atravessa o verde florestal, um risco primário é o atropelamento da fauna – e para evitar que animais terrestres atravessem a via expressa, ela será cercada com telas biodegradáveis e terá o total de 30 passagens de fauna no decorrer do percurso. O governo também estuda a adoção de passagem aérea para o uso de macacos e preguiças.
O traçado possui uma distância de 1,4 km do limite da pista até o Parque Estadual do Utinga e de 2,1 km até a comunidade quilombola Abacatal, cortando a estrada utilizada pelos moradores para chegar à cidade. A fim de que os quilombolas tenham o direito de ir e vir, foi desenvolvida a ideia de dois túneis de 3 metros quadrados, que passam por baixo da estrada, alternativa não aprovada pela comunidade.
Vanuza Cardoso, líder espiritual do quilombo, explica que a saída oferecida aos moradores de túneis não vai resolver o problema de locomoção da comunidade. “A gente é assaltado toda hora nessa estrada, pessoas já foram amarradas no mato, mulheres já foram violentadas, 1 km de túnel vai ser a morte”, alerta.
O Procurador Geral do Estado, Ricardo Sefer, reforça durante o encontro semipresencial, que o traçado não está finalizado e ainda está sujeito a alterações.
Olhar do Quilombo Abacatal sobre o traçado proposto
Localizado no município de Ananindeua, a 28,8 km da capital, Abacatal foi fundado há 311 anos. Antes de Vanuza ser líder espiritual, seu pai, Raimundo Cardoso, foi quem lutou durante décadas pela titulação das terras quilombolas. Hoje, ela dá continuidade à luta buscando a consulta prévia do Estado a essa população em relação ao projeto da Rodovia Liberdade, direito assegurado pelo artigo 6º da Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais: “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”.
No dia 1º de julho, dia em que ocorreu o encontro na Procuradoria-Geral do Estado para apresentação do projeto, a comunidade não foi convidada, o auditório era aberto apenas a imprensa e algumas entidades do Estado, como a Defensoria e Ministério Público. Vanuza relata que ao ter conhecimento da reunião, solicitou por e-mail sua participação ao Procurador Geral, expressando o interesse da quilombo no assunto e, a partir disso, foi permitida a entrada de apenas duas pessoas no auditório, a própria Vanuza e Thamiris Cardoso Teixeira, coordenadora da Associação de Moradores e Produtores de Abacatal e Aurá (AMPQUA). Ao ser questionada sobre a transmissão no YouTube que, como alega o Governo, serviria para a participação da população, ela explica que esse contato online não é suficiente, devido ao péssimo acesso à internet experienciado em Abacatal. De acordo com a liderança, o estado deve consultá-los primeiro, mas o que está acontecendo é o contrário, já que a comunidade precisa ir atrás para ser ouvida.
Os moradores do quilombo saíram de seu município em direção à Belém para protestar em frente da Procuradoria-Geral do Estado, contra a construção da via expressa, onde o governo iniciava a apresentação do projeto à comunidade.
O traçado planejado pelo governo bloqueia a estrada de terra que os moradores utilizam para se locomover em direção a cidade, além de facilitar o acesso de pessoas de fora à comunidade. “A gente tem um portão, uma metodologia de vida e as pessoas acham que por ser uma comunidade elas têm o direito de entrar e fazer o que quiser e não é assim. Temos uma cultura, e aí vem essa aproximação e a gente vê que a comunidade muda”.
“A gente vê esse projeto como uma afronta para a comunidade”, diz a líder Vanuza Cardoso.
Além das consequências ao quilombo, ela destaca o quanto será prejudicial aos animais e também à população de Belém. “Vocês [moradores de Belém] vão sentir com o calor, daqui a pouco vamos ter que discutir a situação climática, porque essa cidade é muito quente, aí tirar a única área verde que Belém tem? O respiro é por conta dessas áreas, aí fazer esse projetos só vai aumentar todo esse processo de calor, depois teremos que planejar como aliviar”, alerta.
“A gente pede a consulta prévia porque o túnel não é a solução para o nosso problema, não é o que o abacatal quer. A gente chama o estado a conversar, é a comunidade indo atrás do diálogo, era pra ser o inverso, não era dessa forma para acontecer. O estado com seu poder hegemônico cria projetos, passa por cima de vidas, e quando eu falo de vidas não é só a humana, estou falando da fauna e da flora, e quer que eu engula isso. Não dá. Ou a gente senta pra conversar pra gente ver minimamente como amenizar todo esse impacto, ou não dá” defende.
Possíveis impactos ambientais
Projetos de infraestrutura, como estradas, causam impactos diretos e indiretos no ecossistema e, historicamente, essas construções têm sido facilitadoras do desmatamento na Amazônia.
((o))eco entrou em contato com o professor de ecologia da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), Fábio Hatano, para discutir os possíveis impactos ambientais da obra. A UFRA tem um papel importante na história da nova rodovia. A reitoria cedeu o terreno ao governo do Pará onde está preservada parte da área verde que será desmatada para a construção da infraestrutura e, de acordo com o projeto, a distância do limite da pista até a universidade é de 80 metros. O Secretário de Estado de Transportes, Adler Silveira, afirma que haverá um muro acústico para não atrapalhar o ambiente de ensino com os ruídos.
Segundo Fábio Hatano, a construção de uma rodovia em uma área verde implica em impactos variados. Ele cita que uma via expressa deste porte tem grande fluxo de veículos pesados, como caminhões de carga, trafegando 24h por dia, e isso desencadeará um aumento da poluição sonora e atmosférica nas proximidades do novo traçado. A rodovia, conforme o planejamento inicial, passa a 1,4 km da área do Utinga, onde estão os maiores reservatórios de mananciais que provêm água para Belém. O aumento da poluição e as prováveis ocupações nas beiras de estrada que, segundo Hatano, são imprescindíveis em construções como essa, pois facilitam a circulação de pessoas no local, podem colocar em risco a proteção desses mananciais. A ocupação, regular ou irregular, não é descartada, já que se trata de uma área verde situada ao lado de uma grande e populosa região metropolitana. Só Belém possui 1.499 milhão de habitantes, segundo estimativas do IBGE.
A relação entre estradas e desmatamento é direta. Um estudo realizado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) demonstra que 75% dos desmatamentos, entre 1978 e 1994, ocorreram dentro de uma faixa de 100 km de largura ao longo das BR 010 (Belém-Brasília), BR 364 (Cuiabá-Porto Velho) e PA 150. Como mostra o gráfico, o grau de desmatamento aumenta de acordo com a proximidade da estrada, representando como a construção de rodovias facilita a derrubada das árvores.
“Se nós não tivéssemos alternativas, se essa fosse a primeira via e iria melhorar a qualidade de vida das pessoas, realmente é uma discussão que nós temos que pensar, porque todo mundo tem direito à qualidade de vida adequada, uma delas é você ter acesso a um deslocamento seguro, tudo bem eu entendo isso, mas Belém já tem traçados variados. Um dos questionamentos que a gente faz é que com 400 milhões será que as rodovias que já existem não podem ser melhoradas?”, questiona o professor.
Fonte: O Eco
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