Simulações indicam que a aplicação de campo elétrico estimula a formação de “bolhas” que tornariam a epiderme uma porta de entrada para medicamentos no organismo
Pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC) simularam em computador um mecanismo biológico pouco conhecido que, se vier a ser controlado satisfatoriamente, talvez possa possibilitar a passagem pela pele de qualquer substância solúvel em água, inclusive fármacos, e dar acesso direto à corrente sanguínea. Em ensaios digitais, o grupo chefiado pelo físico Herculano Martinho, do Programa de Pós-graduação em Nanociências e Materiais Avançados da instituição, percebeu que a aplicação na pele de um pequeno campo elétrico externo e constante, de valor comparável ao de um pente eletrizado por seu atrito com o cabelo, facilita a entrada de água – e do que ela possa carregar junto – no organismo.
Os pesquisadores construíram, no computador, um modelo de pele que, nos seus diversos elementos, contêm mais de 300 mil átomos para estudar seu comportamento em diversas condições. Ao aplicarem um campo elétrico, observaram a formação de vesículas (membranas similares a pequenas bolhas) com água que eram capazes de atravessar a barreira do epitélio, tecido que protege e reveste a pele e as mucosas. “Essa propriedade permitiria que medicamentos solúveis em água ‘pegassem carona’ nessas vesículas e fossem direcionados para órgãos específicos. Há trabalhos experimentais reportando esse tipo de transporte, mas não evidências sobre o seu mecanismo direto”, explica Martinho. “Até então, considerava-se como única hipótese para explicar esse transporte a possível formação de poros. Nosso trabalho indica que seria possível realizá-lo por meio da produção de vesículas.”
O trabalho faz parte do projeto de pesquisa de pós-doutorado na UFABC da bióloga Neila Cristina Fonseca Machado e rendeu um artigo científico no periódico Physical Chemistry Chemical Physics, em abril deste ano. Também participaram do estudo o biólogo Marcelo Christoffolete, da UFABC, e a médica Clarissa Callegaro, colaboradora que trabalha em uma clínica particular de dermatologia. O próximo passo do grupo de pesquisa é validar o modelo digital em experimentos de laboratório, com peles artificiais, correntes elétricas reais e membranas de difusão transdermal, que podem desempenhar um papel similar ao das vesículas.
A compreensão mais detalhada do funcionamento da permeabilidade da pele amplia o potencial de desenvolvimento de medicamentos e terapias que podem minimizar efeitos colaterais próprios da administração de fármacos via oral. Sob esse novo olhar, a pele deixa de ser considerada apenas como uma barreira natural que impede a entrada de compostos estranhos ao organismo e passa a ser vista, também, como uma possível porta de entrada para tratamentos farmacológicos mais personalizados, na seara da chamada medicina de precisão.
Responsável pela modelagem das moléculas da pele virtual, Machado explica que o trabalho foi além da mera observação da passagem de água de fora para dentro da pele. “Mostramos também que, alterando o nível da corrente elétrica, é possível controlar a permeabilidade do tecido, um dado valioso para a indústria farmacêutica e de cosméticos”, afirma a bióloga.
Martinho conta que sua equipe se deparou com a permeabilidade induzida da pele por acaso, quando investigava outra questão. A ideia inicial do projeto era estudar o processo de envelhecimento e seus efeitos. Com esse intuito, simularam uma pele virtual sendo exposta à radiação solar e a diversos comprimentos de onda da luz. “Testamos inúmeras variações até decidirmos aplicar um campo elétrico constante. Foi quando apareceu algo que não esperávamos”, recorda o físico.
A simulação gerava estruturas com capacidade de transportar água da superfície para o interior da pele – as inesperadas vesículas. A pele sempre foi considerada um tecido impermeável, mas os ensaios digitais descritos no artigo sugerem que, em determinadas condições, essa propriedade pode ser alterada. “Começamos a pesquisar se, de fato, não havia relatos na literatura científica a respeito dessa propriedade cutânea, e descobrimos que no campo da eletroforese [técnica usada para separar moléculas em razão de seu tamanho e carga elétrica] há trabalhos experimentais, mas o mecanismo biológico envolvido no transporte de substâncias pela pele, por via tópica, era algo desconhecido”, comenta Martinho.
A aplicação de campos elétricos na pele não é uma novidade completa para áreas como fisioterapia e dermatologia, como detalha Callegaro. “Existe uma técnica, chamada iontoforese, que utiliza campos elétricos para promover a maior absorção de fármacos pela pele. É algo aplicado, por exemplo, para tratamento de hiperidrose, que é a transpiração excessiva nas axilas, pés e mãos”, diz a dermatologista. “Sabemos que a iontoforese funciona, mas, até esse trabalho, desconhecíamos como isso ocorria em nível molecular.” Machado recorda-se de que, quando encontraram uma estrutura estranha na visualização da pele virtual em suas simulações, logo entraram em contato com a médica para checar se não era algum defeito de modelagem. Não era. Eram as vesículas.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP
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