“Ainda falta muito para a busca na construção de uma abstração chamada de cidade ou país para todos e de todos, nos preceitos mais amplos de liberdade. O pior é ver donos de automóveis querendo destruir as ciclovias e ainda chamar isso de liberdade e proteção ao pedestre e ao ciclista. Não dá para aceitar.”
Augusto Cesar Barreto Rocha
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Nestas vésperas do 7 de setembro, veio-me à mente o filme “Ladrões de bicicleta” (de Vittorio de Sica, 1948) e o John Stuart Mill e seus “Ensaios Sobre a Liberdade” (1859). Ambos são muito contemporâneos para refletir sobre o Brasil, a partir de uma única Avenida de Manaus: a Av. Coronel Teixeira, que liga os bairros Lírio do Vale e Ponta Negra. Nela há muito da nossa diversidade: quartéis do Exército, casas de luxo, edifícios de luxo, ladeados pela exuberante floresta, rio, condomínios de classe média-alta, shopping center, supermercado, Ministério Público do Estado e casas de classe média-baixa. Muito de “nossas” Bélgicas e Índias misturadas.
Em um momento no qual a gasolina chega a R$ 5,90 (versus R$ 3,10 em 2013) e o desemprego passa de 14 milhões de pessoas, reflito sobre como é difícil pedalar em Manaus. Antonio Ricci (no filme, representado por Lamberto Maggiorani), era um trabalhador de origem humilde que tinha naquele veículo a possibilidade de acessar um emprego. Será que o Brasil de hoje tem algo de semelhante com a Itália de 1948? Uma ciclofaixa que “atrapalha os carros” e os carros que tentam expulsar os ciclistas. Note que não se falam de pessoas, mas de veículos: carros versus bicicletas. Por que disputas, ao invés de integração? Por que “carro” e não o motorista? Desenhos animados clássicos Disney discutiam isso.
Sem analisar como se faz uma obra com os erros que ali estão, mas partindo do momento presente, é interessante observar que a liberdade de pedalar em Manaus inexiste, mesmo tendo uma cidade com mais pessoas que possuem seu poder aquisitivo mais apropriado para bicicletas do que para automóveis. No Brasil, o salário médio mensal é R$ 2.975,74. Seriam necessários quase 15 meses deste salário para comprar um automóvel barato e novo, enquanto com menos do que um salário destes seria possível adquirir uma bicicleta. Fica no ar uma questão: por que o modo principal da infraestrutura para o deslocamento na cidade não é a bicicleta? Como ter efetiva liberdade sem esta possibilidade de ir e vir, sem este modal? Por que temos uma cidade para automóveis e não para bicicletas?
A Liberdade de John Stuart Mill foi prescrita como “liberdade para unir-se, por qualquer propósito que não envolva danos a outros”. Quando a bicicleta é excluída da cidade, quando as calçadas não são seguras para ser pedestre e quando apenas carros são bem-vindos nos deslocamentos, pergunto-me: temos liberdade de movimento na cidade? Para quem, além daquelas pessoas que possuem a potência econômica para seus automóveis? Não vejo um carro como um bem que faça sentido para aqueles que têm a renda média brasileira. Por outro lado, percebo a bicicleta como tendo todo o sentido. Por que a cidade não é concebida como uma cidade para pedestres e bicicletas? Isso faria de Manaus uma cidade para as suas pessoas.
A parte mais forte (“automóvel”) impõe-se nas vias de Manaus sobre os demais (“pedestres e ciclistas”). Será isso liberdade? A sociedade precisa estar atenta sobre os males que devem ser evitados. Como afirmou Mill, pode existir “uma tirania social mais terrível do que muitos tipos de opressão política”. Asseverou ainda o risco de “obrigar que todo os tipos de caráter ajustem-se a seu próprio modelo”. Temos que tomar cuidado com aqueles “motoristas” que querem atropelar os “ciclistas” ou explorar os “passageiros”. Ainda falta muito para a busca na construção de uma abstração chamada de cidade ou país para todos e de todos, nos preceitos mais amplos de liberdade. O pior é ver donos de automóveis querendo destruir as ciclovias e ainda chamar isso de liberdade e proteção ao pedestre e ao ciclista. Não dá para aceitar.
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