Florestas no coração da Amazônia já estão sendo substituídas por savanas nativas devido a incêndios florestais recorrentes, revela um estudo publicado na última quarta-feira, 3 de março, na revista científica internacional Ecosystems. A partir de imagens de satélites dos últimos 40 anos e de pesquisas de campo, os cientistas constataram uma série de mudanças na composição do solo e na distribuição de espécies de árvores. O trabalho foi conduzido por Bernardo M. Flores, pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Milena Holmgren, professora da Universidade Wageningen, na Holanda.
Os autores destacam que, por muito tempo, as partes periféricas da Floresta Amazônica foram consideradas as mais vulneráveis, à medida que as atividades humanas avançavam ao longo do Arco do Desmatamento – região que vai de leste e sul do Pará em direção oeste, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre. O artigo divulgado nesta semana, contudo, refere-se a uma paisagem de ecossistemas inundáveis no médio Rio Negro, uma região remota, longe da fronteira agrícola, na qual manchas de savana de areia branca ocorrem espalhadas em meio a áreas bem preservadas.
Os pesquisadores mapearam, por meio de imagens de satélite, quatro décadas de incêndios florestais e coletaram informações detalhadas em campo, visando avaliar alterações na abundância de espécies de árvores e nas propriedades do solo em florestas queimadas em diferentes momentos do passado. Eles salientam que os incêndios florestais mataram praticamente todas as árvores, permitindo que a camada superficial do solo, rica em argila, sofresse erosão com as inundações anuais e se tornasse gradualmente arenosa. Além disso, os tipos de árvores mudaram à medida que as espécies típicas das savanas de areia branca se tornaram cada vez mais dominantes nas florestas queimadas, junto com as plantas herbáceas nativas.
“Nossas descobertas demonstram que savanas nativas ainda podem se expandir na Amazônia, não ao longo do Arco do Desmatamento, onde as gramíneas exóticas estão se espalhando, mas sim a partir de manchas de savana de areia branca espalhadas por toda a bacia em regiões remotas”, afirma Flores. “Este estudo fornece evidências de campo de que se o clima amazônico se tornar mais seco e os incêndios mais frequentes, as florestas inundáveis provavelmente serão as primeiras a colapsar, como um ‘calcanhar de Aquiles’ do sistema amazônico”, complementa Holmgren.
O que antes era uma floresta agora se assemelha a uma savana de areia branca, conhecida localmente como campina. Segundo os pesquisadores, os povos locais veem claramente os benefícios das campinas e provavelmente contribuíram para moldar sua distribuição na paisagem. “Uma vez um ribeirinho me disse ‘nós fizemos aquela campina’, e foi aí que eu percebi que essa mudança era mesmo possível em tão pouco tempo”, conta Flores. A vegetação dessas regiões pode se recuperar depois de ser queimada uma vez em pequenas áreas, mas não após incêndios recorrentes.
O estudo mostra ainda como a seca durante o El Niño de 2016 queimou uma área sete vezes maior do que a acumulada nos 40 anos anteriores no médio Rio Negro. A perda adicional de florestas inundáveis pode resultar na emissão de enormes quantidades de carbono estocado nas árvores e no solo, além de reduzir a disponibilidade de recursos para os povos locais, como peixes e produtos florestais.
Uma preocupação em particular dos autores do estudo é que secas mais quentes e cada vez mais severas podem intensificar os regimes de incêndio e desestabilizar o sistema. “Uma questão importante neste momento é se o fogo pode se tornar contagioso, atingindo extensas áreas florestais do centro da Amazônia”, diz Flores, e também “quais serão as implicações para os padrões de chuvas, a biodiversidade e as culturas que aqui evoluíram”, acrescenta Holmgren. Ambos pretendem continuar estudando o risco desses incêndios para as florestas inundáveis da Amazônia, bem como para as florestas de terra firme adjacentes.
Os achados reforçam a urgência de fortalecer a resiliência dessas florestas remotas, ressaltam eles. A implementação de um programa de manejo de fogo na Amazônia, por exemplo, ajudaria a diminuir a propagação de incêndios florestais quando a próxima seca acontecer. “Se queremos manter a Amazônia como um bioma florestal, devemos entender que as áreas inundáveis são inflamáveis e requerem atenção especial”, enfatiza Flores.
Fonte: Ciência e Clima/USFC
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