Mulheres Kaingang e Guarani enfrentam o agronegócio e sustentam a luta para manter a floresta em pé, travando batalha de gênero com os homens indígenas
A Terra Indígena Mangueirinha, no sudoeste do Paraná, abriga 789 famílias, entre indígenas das etnias Kaingang e Guarani, que vivem ali há séculos, cercados pela maior reserva de araucárias do mundo. Preservar o inestimável patrimônio ambiental tem sido batalha tão dura como longeva – em 1947, a árvore representou perto de 80% da madeira exportada pelo Brasil. Hoje, no território indígena de 17.240 hectares, está uma das principais florestas da espécie, típica do Sul e do Sudeste.
O Brasil deve a sobrevivência das araucárias naquele trecho da baía do Rio Iguaçu às tenazes mulheres que vivem por lá. A conservação está diretamente ligada à luta dos Kaingang e dos Guarani Mbyá pelo direito à terra tradicional, garantido desde o início do século passado. Em 1903, por terem ajudado a construir estrada na região, os indígenas, receberam a escritura de toda a área, do governo estadual.
A partir da década de 1970, empresas exploradoras de madeira reivindicaram direitos sobre pedaços do território, estabelecendo litígio que se arrastou até 2005. Após uma década de estudos antropológicos e arqueológicos que comprovaram a ocupação original, a Justiça deu ganho de causa aos indígenas, formalizando a posse do território. Atualmente, a TI Mangueirinha é formada por seis aldeias: Passo Liso, Mato Branco, Paiol Queimado, Água Santa, Palmeirinha do Iguaçu e Aldeia Sede, onde estão as principais edificações, como escola, posto de saúde e posto da Funai.
Mas a luta parece que jamais encontrará um fim.
A floresta de araucárias é conhecida pelos indígenas como “mata preta” ou “pinhal preto”, integrando mosaico de vegetação com predominância da bracatinga, denominada “mata branca”. Com o passar dos anos e as mudanças de paradigmas referentes ao meio ambiente, a prática de abrir novas áreas para lavoura foi se tornando cada vez mais frequente entre os indígenas de Mangueirinha, consolidando a agricultura como uma das principais atividades econômicas. As lavouras ocupam hoje 14% do território.
A Associação dos Produtores Indígenas de Mangueirinha (Aproinma) organiza e apoia a produção com agricultura mecanizada em áreas coletivas e individuais. Cerca de 104 hectares de lavoura comunitária (soja, principalmente) são cultivados exclusivamente para gerar renda, realizar a manutenção do maquinário e manter a associação. Para famílias que plantam menos de 6,6 hectares, o apoio prestado pela Aproinma é gratuito. A entidade ainda administra os recursos advindos do ICMS Ecológico, repassados pelas prefeituras de Mangueirinha, Coronel Vivida e Chopinzinho, destinados às áreas que possuem reservas florestais de conservação no Paraná.
O dilema entre manter a floresta em pé e ampliar a área da lavoura espreita as comunidades, gerando conflitos que separam até famílias nas aldeias. Hoje, a floresta de araucárias está reduzida a 3% de sua área original e menos de 1% pode ser considerada floresta primária. A devastação é resultado tanto do corte das árvores para fins madeireiros como para a abertura de áreas agrícolas, geralmente associadas a solos mais férteis, como a “terra roxa” do Paraná.
Fica com as mulheres a missão de salvar a floresta, protegendo o meio ambiente, para manter viva a TI Mangueirinha. Uma das guardiãs é a Kaingang Jociele Luiz, 29 anos, que estuda pedagogia e dá aulas na comunidade. Mãe de dois filhos, ela atua em causas indígenas desde a adolescência. “Muitas lutas são herdadas e a preservação é mais uma, não apenas obrigação de todo indígena, que nasce sabendo a importância da terra preservada”, aponta ela. “Muitas pessoas não veem que o compromisso com a preservação diz respeito a tudo que envolve a proteção da nossa biodiversidade. Tem a ver com a preservação da vida humana na Terra”.
A indígena observa os biomas se esvaindo de modo gradual mas constante – e se espanta quando chamam de desenvolvimento. “Não acredito que isso seja desenvolver, mas destruir. O que aprendi com minha mãe foi proteger os meus e o meu povo enquanto a maior parte da população não indígena pensa no agora, e os que pensam no futuro só se preocupam em deixar uma boa situação econômica para seus filhos”, analisa. “Mas aí pergunto: o que vale o dinheiro se você não vai poder comprar o ar e a água para o seu filho amanhã?”
O porvir motiva também o engajamento de outra Kaingang, Derci Alves. Ela ensina aos filhos a importância de viver em comunidade, para fortalecer a luta contra os preconceitos que espreitam os povos indígenas. “Nossa ancestralidade é maior, e nosso orgulho indígena precisa prevalecer”, convoca, garantindo sequer se lembrar quando começou a luta pelas araucárias. “Isso vem conosco, essa conexão com tudo que está na natureza, só lembro que quando ouvíamos o chamado, agasalhávamos os filhos e íamos, para protestar fechando a BR”.
Para Derci, a vida não faz sentido sem a proteção do território exatamente como é. “Lutamos contra muitos crimes, o genocídio, a fome entre outras pragas que estão aí para dizimar os povos indígenas”, lamenta, contando que a luta exige enfrentar as novas formas de destruição do solo sagrado. “Mas o bom é que muda dos dois lados – hoje temos muitas formas de denunciar o que afeta nossa comunidade”.
Jociele confirma. “Hoje a gente tem mais autonomia de sair dos nossos territórios para falar das nossas pautas; temos contatos com outros povos e discutimos formas de nos proteger”, lista. “Acima de tudo, podemos espalhar a semente da proteção do meio ambiente. Não estou falando só da minha aldeia, mas do planeta”.
Nascida e criada na Mangueirinha, Carla Carneiro, também professora, se define como indígena em ascendência graças à educação. Mãe de uma filha, enxerga no ensino a ponte para transmitir a cultura e o respeito pelo sagrado por tudo que rodeia os povos tradicionais. “O ar, a água, as plantas, o alimento que cultivamos fazem parte de uma grande rede. O ar se conecta com as árvores que se conectam com o solo, que se conecta com a água, que se conecta com os seres vivos”, argumenta a indígena. “Se um dia uma dessas conexões acabar, toda a rede se perde, o que significará a extinção. Daí a importância da proteção de nossa floresta nativa. Parar de destruir o meio ambiente não basta! Temos de reflorestar, pois a partir do momento em que você planta uma árvore, está plantando água, ar – vida”.
A professora se divide em relação às políticas de preservação. Reconhece o potencial da teoria que está no papel, mas é cética sobre a transposição para vida real. “O impedimento para a proteção concreta está nos que deveriam aplicar as leis. Aquelas falas todas cultas adiantam pouco sem ações práticas”, critica. “Muitas políticas ajudam e muito os povos indígenas, mas precisa haver ajuda mais efetiva, mostrando, por exemplo que o desmatamento dá lucro, mas a preservação rende muito mais. Isso é pouco falado, não está nos meios de comunicação”, atesta.
Carla ainda lamenta o desequilíbrio na atenção às populações ameaçadas, muito concentrada na Amazônia. “Algumas políticas públicas deveriam englobar mais territórios e regiões. Não é só a Amazônia que tem povos indígenas”, sublinha. “Aqui no sul mesmo tem vários parentes que lutam quase solitários na preservação de nosso bioma para o futuro”.
Para outra guardiã, a dona de casa Roseli Carneiro Cipriano, o amanhã com a floresta em pé exige mais comprometimento dos governantes. “Eles não podem esquecer que sem os indígenas protegendo o meio ambiente, não vai sobrar nada”, sustenta ela, 58 anos. “Não luto por mim, mas por meus filhos e netos, por meu povo e também pelos homens brancos. A preservação não vai beneficiar apenas a nós”. Com tristeza, ela aponta que a preocupação está cada vez mais restrita aos povos da própria floresta. “Infelizmente só um povo luta pela vida de todos os povos. Uma pena, gostaria muito que os não indígenas tivessem a visão de que a terra não é apenas lucro, mas riqueza também”, ensina. “Ela nos dá vida. Quer algo mais valioso do que viver e não apenas tentar sobreviver?”
Fonte: O Eco
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