Chloé Pinheiro | Agência FAPESP – O Brasil abriga o maior volume de água doce do mundo, mas essa reserva está se tornando mais escassa devido a fatores como mudanças climáticas, aumento do consumo e tratamento inadequado. Mais do que isso: as águas dos rios brasileiros estão perdendo qualidade por conta da falta de planejamento no uso do solo.
Agricultura e urbanização são os tipos de atividade que mais preocupam, mas não só. A mineração, apesar de ocupar pouco território, apresenta um alto potencial de dano à qualidade dos mananciais, apontam os autores de uma pesquisa brasileira publicada no Journal of Environmental Management.
A revisão foi liderada por Kaline de Mello, bióloga do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) apoiada pela FAPESP, e contou com a participação de pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade de Massachusetts e Universidade Estadual do Oregon, ambas nos Estados Unidos.
O trabalho é o primeiro a criar um panorama nacional sobre como cada tipo de uso do solo afeta os recursos hídricos nacionais. “A maioria dos estudos faz projeções sobre os impactos da mudança do uso do solo na quantidade de água disponível, não na sua qualidade, então não sabemos como estará a qualidade da água no país daqui a 30 anos”, comenta Ricardo Hideo Taniwaki, da UFABC, um dos autores.
A investigação, portanto, é um ponto de partida para vislumbrar o futuro da água no país em diversos cenários, otimistas e pessimistas.
Levantamento extenso
A análise foi dividida em etapas. Na primeira, os autores obtiveram informações sobre cobertura e uso da terra a partir da plataforma Mapbiomas. Nesse momento, foi possível observar a preservação da vegetação nativa e a extensão de atividades com possível impacto na qualidade da água: agricultura, pasto, silvicultura, mineração e urbanização.
“Depois, separamos os estudos que avaliaram em campo o efeito da atividade em questão nos rios próximos a ela, nos diferentes biomas brasileiros”, conta Mello. Entre os parâmetros usados para medir a qualidade da água estão a presença de coliformes fecais, sedimento, nitrogênio, fósforo, metais pesados e outros poluentes.
Em uma segunda fase, além da atividade em si, o grupo mostrou que a degradação varia conforme a escala usada para avaliá-la, e que isso deve ser levado em conta no planejamento de ações de preservação.
Na escala espacial, pode-se medir o efeito daquele tipo de atividade na margem do rio, exatamente no ponto de coleta da água, na faixa de vegetação ripária (também conhecida como mata ciliar) ou em toda a bacia hidrográfica. “Deste grupo, a análise da bacia hidrográfica parece refletir melhor a qualidade da água como um todo”, pontua Taniwaki.
Já a escala temporal mostra a variação de acordo com dados de temperatura, estações do ano e períodos de chuva. “Isso é bem importante no cenário de mudanças climáticas que vivemos, onde a previsão é de chuvas mais intensas e secas mais prolongadas e, se a atividade agrícola não tiver boas práticas, o potencial de poluição dos rios e riachos é maior”, continua Taniwaki.
Por fim, o grupo discute cenários possíveis projetados com modelos matemáticos capazes de prever a qualidade futura da água. “Destacamos modelos já disponíveis no Brasil que podem ser utilizados para simular o impacto de medidas positivas e negativas, bem como os dados que seriam necessários para isso”, comenta Mello.
Impacto por tipo de solo
Atualmente, 28,8% do território brasileiro é ocupado por pasto e agricultura, concentrados principalmente no Cerrado (42% do total) e na Floresta Atlântica (62%). “Nas áreas de pastagem, o solo é compactado pelos animais, o que afeta a absorção de água pelo solo, aumentando o escoamento superficial e faz com que uma maior quantidade de água e poluentes chegue ao corpo d’água quando chove”, destaca Mello.
A agricultura também afeta a dinâmica de escoamento, além de ser responsável por um grande aporte de poluentes como nitrogênio, fósforo e outras substâncias químicas nos rios e riachos. “Vale lembrar que o Brasil é um dos maiores consumidores de fertilizantes e agrotóxicos do mundo, o que gera um grande impacto nas águas superficiais e subterrâneas”, continua a pesquisadora.
Nas áreas urbanas há dois problemas principais. “Primeiro, a impermeabilização quase que total do solo, graças ao asfalto, então tudo que fica ali, inclusive metais pesados, é escoado para o rio quando chove, e não temos muitos programas de tratamento de água pluvial”, aponta Taniwaki.
Depois, apesar de ocuparem apenas 0,6% do solo do país, as cidades são grandes responsáveis pela degradação das águas por conta do esgoto não tratado, que despeja nos rios coliformes fecais, matéria orgânica e outros poluentes. Para se ter ideia, cerca de 48% da população não conta com coleta de esgoto em casa. E apenas 10% das 100 maiores cidades brasileiras tratam mais do que 80% do esgoto coletado.
O padrão “pouco espaço, muito estrago” se repete no caso da mineração, atividade que sabidamente libera nos cursos de água metais pesados tóxicos aos humanos e à fauna e flora locais. As recentes tragédias nas barragens de Brumadinho (MG) e Mariana (MG) evidenciaram esses impactos.
Depois do rompimento em Mariana, mais de 650 quilômetros do rio Doce, um dos mais importantes do país, foram poluídos, afetando mais de 1 milhão de pessoas. Já as análises de água do rio Paraopeba, um dos afetados pelo colapso em Brumadinho, mostram valores de chumbo e mercúrio 21 vezes acima do aceitável depois do acidente.
“E ainda temos mais de 40 barragens que estão em risco de acidentes do tipo”, alerta Taniwaki.
Biomas mais ameaçados
Mello destaca que, no geral, a perda da mata nativa é o que mais ameaça os recursos hídricos nos biomas brasileiros e menciona a situação dos rios e outros cursos d’água na região da Mata Atlântica, que concentra 65% da população brasileira.
Um mapa elaborado pela equipe de pesquisadores revela que apenas 26% de mata nativa está preservada na Floresta Atlântica. Não à toa, apenas 6,5% dos principais rios da região têm água avaliada como de boa qualidade.
Outros dois biomas que preocupam são a Amazônia e o Cerrado. A Amazônia, apesar de ainda conservar boa parte de sua vegetação nativa, vive um momento delicado. “Em 2019, enfrentou sua maior perda florestal em dez anos, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais”, destaca Mello.
O desmatamento na região cresceu 108% em janeiro de 2020, em comparação com o mesmo mês de 2019. No Cerrado, só restam 19% da vegetação original. “Faltam estudos sobre a qualidade da água nessas duas regiões, que são justamente as que mais estão sofrendo com a expansão das fronteiras agrícolas”, afirma Mello.
O futuro da água no Brasil
Com modelos matemáticos já disponíveis na literatura, gestores e pesquisadores podem projetar o futuro da qualidade de água em suas regiões e detectar que tipo de intervenção é mais eficaz naquela situação específica. Uma das ferramentas destacadas pelos autores, a avaliação multicriterial, utiliza a participação social, estatal e privada para priorizar áreas a serem restauradas em um cenário de escassez de recursos financeiros.
Para que essa análise seja feita de maneira mais assertiva, contudo, é preciso melhorar a qualidade dos dados disponíveis, que, para os pesquisadores, é escassa. “É difícil fazer projeções com as informações sobre qualidade da água e uso do solo que temos agora, e elas são fundamentais para criar políticas públicas”, comenta Taniwaki.
“Até agora, as estimativas que temos indicam uma severa degradação da qualidade da água caso o desmatamento e o saneamento básico não melhorem nos próximos anos”, prevê Mello. As consequências negativas no longo prazo incluem mais gastos para tratar a água poluída antes que ela seja utilizada ou para trazê-la de regiões mais distantes, um custo transmitido à população via conta de água, e mudanças drásticas nos outros serviços ambientais oferecidos por rios e riachos.
“Por outro lado, simulações feitas da restauração das Áreas de Preservação Permanente [florestas ripárias] com o cumprimento do Código Florestal evidenciam uma melhora da qualidade da água com a redução de sedimentos, nitrogênio e fósforo”, diz Mello.
Daí a necessidade de atuar em prol do cumprimento das legislações ambientais e de uma expansão agrícola e urbana planejada. “Os estudos que avaliamos mostram ainda os efeitos negativos do afrouxamento das leis e a diminuição do investimento em pesquisas”, encerra Taniwaki.
O artigo Multiscale land use impacts on water quality: Assessment, planning, and future perspectives in Brazil, de Kaline de Mello, Ricardo Hideo Taniwaki. Felipe Rossetti de Paula, Roberta Averna Valente, Timothy O. Randhir, Diego Rodrigues Macedo, Cecília Gontijo Leal, Carolina Bozetti Rodrigues e Robert M. Hughes, está disponível em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0301479720308094?dgcid=coauthor.
Fonte: Agência Fapesp
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