Esta reportagem foi produzida pela Ambiental Media com o apoio da Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center.
“O fogo está se tornando uma coisa perigosa, conta Pedro Pantoja, 69 anos, conhecido como Seu Pedrinho. “Se tiver outro jeito para o pessoal fazer seu plantio sem queimadas, vai ser muito melhor”, explica o ribeirinho, um dos mais antigos moradores da comunidade de Jamaraquá, na Floresta Nacional do Tapajós, noroeste do Pará, onde cada produtor tem o seu pequeno roçado para plantar mandioca e uma data própria para queimar a área. “Em outubro ou novembro, mais perto da época de chuvas, o pessoal se organiza para a queima”.
A Flona do Tapajós é uma das unidades de conservação mais visitadas da Região Norte e uma das mais pesquisadas da Amazônia. O rio que empresta o nome à Flona é o protagonista de uma das maiores e mais belas bacias fluviais de toda a Amazônia e é conhecido pelas praias de areia branca – suas águas também banham o mundialmente famoso distrito de Alter do Chão, no qual pousadas com ar-condicionado e restaurantes de comida típica oferecem cardápios em inglês. Na Flona, onde vivem mais de quatro mil pessoas distribuídas por 23 comunidades e três aldeias indígenas, o turismo é mais rústico, e o rio Tapajós é o centro da vida comunitária.
Em Jamaraquá, uma das maiores comunidades da Flona, o turismo, ainda que incipiente, é uma das principais fontes de trabalho e renda para as 40 famílias que lá vivem, juntamente com o seringal e o cultivo de frutas – além, é claro, da mandioca. Cada família ainda tem um pequeno roçado para a mandioca em seu terreno, que é preparado com o uso do fogo – na ausência de métodos mecanizados, como o uso de tratores, os pequenos agricultores da Amazônia utilizam o fogo para a renovação do solo em seu sistema de alternância de cultivos. Da mandioca, vem a farinha para consumo próprio, e o excedente é vendido na feira de produtores familiares no município de Santarém. A mandioca – e, com ela, o fogo – faz parte da vida dos ribeirinhos há gerações.
Seu Pedrinho conta que os comunitários conhecem outras técnicas de plantio sem fogo, como o sistema agroflorestal e o uso de tratores para preparar o solo, mas dependem de ajuda e conhecimento externo. “Nós não temos suporte técnico. Se você quiser continuar a plantar mandioca, precisa limpar o mato”. O “mato” é a vegetação secundária, ou capoeira. Depois de colher a mandioca, o agricultor deixa o terreno descansar durante anos, enquanto cultiva a área ao lado. Nesse tempo, chamado de pousio, a vegetação daquele espaço se regenera e contribui com serviços ambientais, como manutenção da biodiversidade, filtragem da água e prevenção da erosão do solo. Quando chega o momento de reutilizar o terreno em descanso, seu Pedrinho corta a mata de capoeira (ou floresta secundária) e queima a biomassa para fertilizar a terra – as cinzas guardam nutrientes, como fósforo e potássio.
O fogo de manejo agropecuário, utilizado por pequenos produtores rurais – como seu Pedrinho –, povos indígenas e populações tradicionais na agricultura de subsistência, é caracterizado por incêndios em áreas já desmatadas anteriormente e utilizadas para fins agrícolas, o que também inclui a limpeza de pastagens e lavouras comerciais de grande porte. Os cientistas ainda classificam o fogo na Amazônia em mais dois tipos principais: o fogo de desmatamento, que é aquele utilizado na eliminação da biomassa após o desmate (atividade quase sempre ilegal na Amazônia), e os incêndios florestais, que são ocasionados quando qualquer um dos tipos de fogo mencionados anteriormente invadem a floresta em pé. “O manejo do fogo na Amazônia exige a compreensão do que está queimando, quais fatores influenciam a extensão e disseminação dos incêndios, e como diferentes aspectos se combinam para tornar as florestas mais inflamáveis”, detalha Jos Barlow, pesquisador da Universidade de Lancaster com duas décadas de experiência na região amazônica.
Essa diferenciação é importante por várias razões. Uma delas reside no fato de que representantes do governo Bolsonaro têm repetidamente atribuído a responsabilidade pelos incêndios florestais ao uso tradicional do fogo pelos pequenos produtores rurais das populações tradicionais. Mas os dados não sustentam essa narrativa: segundo o Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam), em 2019, dos 31% de focos de calor registrados em imóveis rurais (o restante se distribuiu por outras categorias fundiárias), 22% estavam naqueles considerados médios ou grandes (maiores do que 440 hectares), enquanto 9% aconteceram em pequenos (menores do que 440 hectares). Já no primeiro semestre de 2020, os imóveis de médio e grande portes registraram sozinhos a metade do número de focos de calor na Amazônia.
Análises complementares relacionam de maneira ainda mais direta o fogo ao desmatamento. Uma nova ferramenta de mapeamento de queimadas desenvolvida pela Nasa, a agência espacial americana, aponta que 54% dos focos de fogo este ano na Amazônia têm origem no desmatamento. Uma forma mais efetiva de combater o fogo na região, portanto, seria reduzir drasticamente o desmatamento. “Se não há fonte de ignição, não tem como o fogo escapar para a floresta em pé”, explica a bióloga brasileira Erika Berenguer, pesquisadora nas Universidades de Oxford e Lancaster.
A busca por alternativas
No caso do fogo usado na agricultura de subsistência, as práticas de cultivo foram herdadas das populações originais. Ainda hoje, indígenas da Amazônia repetem os métodos milenares usados por seus ancestrais. O fogo é um recurso primordial para o preparo da mandioca e de outros alimentos; faz parte da formação mitológica dos povos, estando presente em ritos de passagem e celebrações; e é usado na obtenção de materiais para moradia.
Do papel na formação da identidade cultural de diferentes povos ao uso como ferramenta de trabalho para o plantio no roçado, o fogo é indispensável no dia a dia das populações tradicionais. Mas o modo de vida secular na Amazônia rural começa a sentir de maneira mais direta os impactos da crise climática provocada, em primeira instância, pela parcela industrializada da humanidade. O clima mudou a tal ponto, que a floresta, mais seca e inflamável, parece incompatível com os velhos hábitos. “Antigamente”, conta seu Pedrinho, “o trabalho na roça era das 7 horas da manhã até o meio dia, mas hoje se você for pro roçado às 10 horas já não suporta mais. É muito aquecimento”.
Na roça, os pequenos produtores rurais têm suas técnicas para evitar que o fogo da agricultura de subsistência escape. Seu Pedrinho conta que a família e os vizinhos se reúnem para fazer o aceiro, como é chamado o processo de limpeza da vegetação em volta do terreno para impedir que mais material combustível esteja à disposição das chamas. Com até três metros de largura, e a uma distância de dez metros da faixa de plantio, os comunitários tentam controlar o fogo de roçado e impedir que ele se transforme em incêndio florestal.
Eles também tomam outros cuidados, como acender o fogo nos períodos menos quentes do dia, contra o vento e da borda da área para dentro. “Quanto mais pessoas, melhor, porque elas ajudam a apagar”, explica. No passado, havia mais gente, mas hoje, por conta do êxodo de jovens que partem das comunidades no interior da Amazônia para buscar educação ou saúde nas zonas urbanas, há menos mãos disponíveis.
“Os comunitários têm uma percepção forte dos problemas que surgem com o aumento do escape do fogo, tanto os da Flona do Tapajós quanto os da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns”, conta Joice Ferreira, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental. A Resex Tapajós-Arapiuns, mencionada pela cientista, fica do outro lado do rio numa área de mais de 6 mil quilômetros quadrados. Nas 75 comunidades, 13 mil pessoas vivem principalmente da agricultura de subsistência, da criação de pequenos animais e do extrativismo. Por causa das suas atividades econômicas, os moradores da Resex sentem bastante os impactos do fogo. Os incêndios diminuem a caça e os frutos para venda e consumo, além de destruir colmeias de abelha e produtos medicinais extraídos da floresta.
Outra mudança recente é o aumento de animais peçonhentos, como escorpiões e cobras, algo inédito na literatura, de acordo com Joice Ferreira. A pesquisadora coordena um projeto na Resex e na Flona centrado na dinâmica do fogo na agricultura familiar. Mais de 500 moradores das duas unidades de conservação já participaram das oficinas do projeto, inclusive seu Pedrinho.
Os encontros são feitos em uma comunidade de fácil acesso, e todas as outras são convidadas a participar. Por meio de conversas e dinâmicas, os pesquisadores buscam entender como os comunitários veem o fogo, quais os riscos inerentes e sua percepção dos mesmos, quais fatores aumentaram os incêndios ao longo do tempo e quais as alternativas possíveis. O projeto, desenvolvido por profissionais de 12 instituições de ensino e pesquisa nacionais e internacionais, incluindo órgãos federais, começou em abril de 2019 e vai até 2022. Em abril deste ano, teria sido realizado um curso sobre biodiversidade, risco de fogo e mudanças climáticas para professores da região, mas, com a pandemia, o planejamento anual sofreu alterações.
“Os comunitários têm interesse em reduzir o fogo e têm vontade de entender melhor como funcionam os sistemas de agricultura sem queima e os sistemas agroflorestais, mas se veem aprisionados na situação em que estão”, explica Joice Ferreira. “Falar em proibir o fogo não é factível, porque a mudança das práticas depende de ferramentas que eles não têm.”
Em locais da Amazônia onde pequenos produtores têm acesso a maquinários cedidos pelo poder público, o agricultor paga o aluguel por hora e o combustível, além de arcar com os custos do adubo em alguns casos. O fogo, por outro lado, é barato e fácil de adotar. “Do ponto de vista ambiental e de diminuição de risco, seria importante acabar com o fogo, mas quando você pensa que as práticas com fogo na agricultura são milenares, precisamos entender, junto com os produtores, como eles se adaptam a uma mudança de regime de clima”, afirma a cientista.
Um dos principais objetivos do projeto, chamado Sem Flama, é construir um sistema de alerta e previsão de incêndios a partir dos dados coletados nos encontros. O sistema vai melhorar a visualização dos focos de fogo, evitar ou tornar a resposta aos incêndios mais rápida na Resex e na Flona. O sistema, sob a coordenação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, vai conter informações sobre a localização das comunidades na região, a densidade populacional de cada uma, onde há mais roçados e quais locais estão mais perto de estradas ou de áreas desmatadas. “A queda rápida de umidade vai alimentar o sistema e gerar alertas em determinadas regiões. Tanto o ICMBio quanto os comunitários terão acesso à informação e poderão responder rapidamente ao evento, com brigadistas externos e com pessoas da comunidade treinadas no combate a incêndios”, explica Joice.
“É da terra e do rio que tiramos o sustento. Se você acabar com a floresta e queimar, o que vai fazer depois? Não vai ter fruta, não vai ter caça, não vai ter mais floresta”, fala seu Pedrinho. Sua sabedoria rudimentar, talhada em roça e rio, em nada destoa das cobranças vindas do mercado global ao Brasil. Em junho último, gerentes de fundos de investimento estrangeiros, avaliados em 4 trilhões de dólares, cobraram do governo Bolsonaro o fim do desmatamento, e o parlamento holandês rejeitou o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia pelo mesmo motivo. Tal qual fogo e desmatamento na Amazônia, o futuro da floresta mais biodiversa do planeta e o da humanidade estão atrelados. Esta realidade, não há cortina de fumaça capaz de esconder.
Fonte: National Geographic
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