Com menos de dois meses de vida, o bebê S.D, da etnia kalapalo, está internado numa UTI neonatal em Cuiabá, Mato Grosso, para que tenha chances de sobreviver à covid-19. O recém-nascido é mais um infectado pelo novo coronavírus dentro da Terra Indígena Xingu – a primeira a ser criada no Brasil, em 1961.
“Os parentes [como indígenas se referem a outros indígenas] estão muito assustados. A gente sabia que, quando a covid-19 chegasse, a gente não teria estrutura. É muito triste o que está acontecendo”, diz Watatakalu Yawalapiti, liderança na TI Xingu.
Devido à gravidade do caso, a Justiça atendeu a um pedido do Ministério Público Federal e obrigou o governo do estado a remover o bebê para algum hospital público ou particular. A transferência ocorreu na última quinta-feira (11/02), três dias depois da decisão judicial.
Além do recém-nascido, pelo menos dois outros casos de covid-19 foram confirmados entre os indígenas do Xingu. Para evitar uma disseminação mais rápida, lideranças tentam isolar as aldeias e pregar o distanciamento social, o que é antinatural na cultura indígena, totalmente baseada na coletividade. No estado, a primeira vítima da doença foi um bebê da etnia xavante, de oito meses.
“Temos que proteger os parentes porque não temos apoio do governo, que é ausente. Pedimos muitas vezes que colocassem barreiras sanitárias, mas não aconteceu até agora”, afirma Yawalapiti.
Aterrorizados com o avanço da pandemia nos territórios isolados, eles clamam por apoio. “A gente está pedindo socorro”, diz Eliane Xunakalo, da Fepoimt (Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso).
“Não podemos esperar que os povos sejam dizimados, extintos, como já aconteceu no passado. A gente não pode contar com governo federal, porque para ele não é interessante que a gente receba ajuda”, afirma Xunakalo.
Contrário à demarcação de terras indígenas, o presidente Jair Bolsonaro repete desde sua campanha eleitoral que tem intenção de autorizar atividades econômicas, como mineração e monocultura, nos territórios.
Desde o início da pandemia, 264 indígenas morreram vítimas do novo coronavírus, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), atualizados nesta quinta-feira. A maior parte dos casos ocorrem em Amazonas (133), Pará (52) e Roraima (29).
Em todo o país, o número de mortos ultrapassa a marca de 40 mil.
Experiência contra outros vírus
No Vale do Javari, Amazonas, região conhecida por abrigar o maior número de referências de povos isolados no mundo, algumas medidas de prevenção que surgiram depois dos primeiros contatos com o homem branco foram resgatadas em nome da sobrevivência.
Na década de 1980, a chegada às aldeias de funcionários da Funai (Fundação Nacional do Índio) significava também a chegada do vírus da gripe. “Era uma gripe simples, mas era um desastre para nós”, comenta Beto Marubo, do Movimento Indígena do Vale do Javari, sobre o contato fatal para os povos.
Naquela época, quando os agentes entravam nas aldeias, indígenas, em pequenos grupos, se “mudavam” temporariamente para a floresta para evitar o contágio. Três semanas depois, depois de uma espécie de quarentena, os visitantes não eram mais considerados perigosos para transmitir vírus.
“Agora, com a pandemia, alguns povos reativaram esse costume. Existem algumas iniciativas do tipo entre os kanamari, mayoruna (ou matsés) e sobretudo marubo. Eles fazem um acampamento afastado e ficam distantes”, detalha.
Na região chamada de Médio rio Javari, a covid-19 entrou no território com três técnicos de enfermagem infectados – agora já são 14 casos positivos. “Há informações de que há equipes que estão sendo removidas de outras regiões com diagnóstico positivo da doença”, relata Morubo.
O território de 8 milhões de hectares tem 67 aldeias espalhadas pela Floresta Amazônica. “Não há infraestrutura para tratar pacientes em caso de surto. Os indígenas do Vale do Javari estão sob risco grave. Precisamos de medidas efetivas do governo”, argumenta Morubo.
Covid chega de avião
No Pará, o vírus também circula por territórios remotos. Há casos, por exemplo na TI Tumucumaque, onde só se chega de avião. Na região, onde vivem indígenas de diversas etnias, povos isolados habitam a floresta.
“Não podemos esquecer que a doença também chega através das invasões de terra diante da situação que o país está vivendo, com esse governo genocida, que é a favor de madeireiros, de mineração em terras indígenas”, pontua Puyr Tembé, vice-presidente da Fepipa, Federação dos Povos Indígenas do Pará.
No estado, há mais de 250 casos entre indígenas xikrin numa aldeia de difícil acesso, relata Tembé. Entre os munduruku, etnia mais numerosa no Pará, a situação é tida como grave.
Na TI Yanomami não é diferente. “Nós estamos sofrendo junto com o mundo, com os indígenas e não indígenas”, diz Dário Kopenawa, da Hutukara Fundação Yanomami.
Com o apoio de pesquisadores, a fundação contabilizou 82 casos de covid-19, com quatro mortes confirmadas e outras quatro suspeitas.
Como forma de combate à doença, os yanomami buscam a expulsão dos garimpeiros. “Fora garimpo, fora covid. É a mensagem para as autoridades e para o mundo inteiro também. É dever do governo brasileiro expulsar os mais de 20 mil garimpeiros que invadiram nossa terra”, afirma Kopenawa, sobre os detalhes da petição que busca apoio de 350 mil assinaturas.
Dinamam Tuxá, da diretoria da Apib, critica a falta de um plano para frear o novo coronavírus. “Não vemos um plano estrutural do governo para evitar que um genocídio aconteça”, diz por telefone à DW Brasil.
A cada notícia que chega das aldeias, a angústia aumenta. “É desesperador. Recebemos áudios dizendo que mais um morreu, e mais um… Ficamos arrasados. A gente não percebe um senso de humanidade dos nossos políticos. Pouco importa a vida das pessoas, pouco importa a vida dos indígenas”, desabafa.
Nenhum porta-voz da Funai foi encontrado pela reportagem da DW Brasil para comentar o assunto.
Fonte: Dw Brasil
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