Queimadas em ecossistemas naturais são, em geral, desastres para a biodiversidade. São marcantes os impactos em espécies de plantas, animais e mesmo microrganismos de casos como o aumento no número de focos de queimadas na Amazônia Brasileira e a imensa tragédia que assolou o Pantanal em outubro deste ano.
Adicione a isso exemplos internacionais, como na Bolívia, onde incêndios florestais destruíram mais de 2 milhões de hectares no ano passado e, mais recentemente, a queimada na Califórnia – um dos focos da qual foi iniciado por uma “gender-reveal party” (versão estadunidense do “Chá revelação”) – e temos mais do que motivo para temer os efeitos que a imprevisibilidade do fogo pode trazer ao funcionamento dos ecossistemas do nosso planeta.
Em alguns biomas secos e abertos, porém, incêndios naturais não apenas ocorrem com certa periodicidade, como são parte de seu funcionamento normal e da dinâmica das espécies ali presentes. Isso tudo muito antes da chegada dos humanos – e suas práticas igualmente imprevisíveis – a essas localidades. Um artigo científico, resultado de pesquisa conduzida pela PUC-RS, publicado em novembro na Scientific Reports, do prestigiado grupo Nature, debruçou-se sobre a importância do fogo para a manutenção da biodiversidade em um desses tipos de bioma.
Essa é a história das plantas e aves que vivem nos Campos de Cima de Serra, e dos incêndios que moldam os padrões de diversidade nessas áreas campestres. É também a história de pessoas que se dedicam a entender a dinâmica desses incêndios em biomas brasileiros para melhor conservá-los.
A inesperada história de um artigo
“Esse artigo acabou nascendo de um acidente.”
Converso com a doutoranda Mariana Beal Neves, do Laboratório de Ecologia de Interações da PUC-RS, a menos de um mês de sua qualificação de doutorado. Apesar da proximidade desta avaliação de peso, etapa obrigatória e fonte de ansiedade para estudantes de pós-graduação em todo o Brasil, a bióloga se mantém bem-humorada ao contar dos incêndios que redirecionaram sua pesquisa mais recente: duas das áreas que seriam estudadas no projeto, que já estava esquematizado, aprovado e com as licenças de coleta emitidas, acabaram por pegar fogo.
Os incêndios, inerentes à existência dos Campos de Cima de Serra, permitiram que os pesquisadores coletassem informação sobre a diversidade de plantas e aves em sete localidades que haviam sofrido ação do fogo em intervalos diferentes de tempo. Os sete pontos, localizados na região do Parque Estadual de Tainhas e do Parque Nacional da Serra Geral, na porção nordeste do Rio Grande do Sul, próxima à divisa com Santa Catarina, permitiram analisar características funcionais do hábitat, além da composição de espécies vegetais e de aves, e do tipo de alimentação das aves, comparando áreas que haviam acabado de ser queimadas com aquelas que não viam a influência do fogo há tempos mais longos.
“Tivemos sorte no azar”, diz a bióloga, rindo. E explica: “Sorte porque o Eduardo já estava trabalhando nas áreas e não precisava de licença para amostrá-las. E azar porque ele teve que rearranjar todo o projeto que já tinha coletas antes da queima. Se ele não estivesse trabalhando nestas áreas, demoraria muito tempo até ter todas as licenças.”
O Eduardo ao qual Mariana se refere é o também doutorando Eduardo Chiarani, do Laboratório de Ornitologia do Museu de Ciências e Tecnologia da PUC. Segundo autor do artigo, que também contou com participação dos orientadores Pedro Maria Abreu Ferreira e Carla Suertegaray Fontana, Eduardo adaptou sua investigação para tentar identificar padrões de diversidade de aves nativas que estivessem relacionados ao fogo. Já Mariana entrou com a análise da vegetação e da estrutura do hábitat.
Os resultados destas análises conjuntas apontaram para direções bastante diferentes.
Distúrbios, espécies e a passagem do tempo
Como o próprio texto do artigo ressalta, o estudo da ecologia possui diversas publicações e experimentos analisando a relação entre diversidade e distúrbios como o fogo. Distúrbios, em diferentes intensidades e frequências de ocorrência em um sistema ecológico, podem influenciar a diversidade local de espécies de diversas formas. E é por isso que, especialmente em ecossistemas onde distúrbios como o fogo são naturais, o estudo dessa relação entre as queimadas e a diversidade de espécies é importante, para que se possa saber como melhor conservar aqueles ambientes.
Isso porque o controle da vegetação e dos riscos de incêndio, por exemplo em Unidades de Conservação, pode acabar resultando em um cenário que desfavorece a conservação das espécies nativas.
Nos Campos de Cima de Serra estudados por Mariana Beal Neves e seus colaboradores, a vegetação segue um padrão de diversidade “em pico”, quando analisada em função da frequência de eventos de queima. Isso significa que a riqueza de espécies de plantas, a heterogeneidade de hábitat e mesmo a riqueza de grupos específicos, como gramíneas e um grupo de plantas herbáceas chamada de forbs são mais altas em situações de distúrbio intermediário, quando o fogo não é nem muito frequente e nem muito raro.
Tanto nas localidades nas quais o último incêndio havia sido muito recente quanto naquelas que haviam passado por um longo tempo desde a última queimada, o número de espécies destas plantas é menor. Isso resulta também em ambientes mais homogêneos, com menor diversidade de possibilidades para as espécies animais que forem habitá-las.
Neste último tipo de campo, que passou por um longo período sem queima, a vegetação é mais alta, e há uma maior abundância de arbustos. “Arbustos, para atingir altura, levam muito mais tempo. Inclusive, se você for ver um campo sujo – que é como a gente chama aquele campo há mais tempo sem queima – ele tem uma presença relevante de arbustos. A gente vê claramente assim que ele já está quase na transição para um outro sistema, que não é mais aquele campo que a gente tem na cabeça, aquele campo rapadinho”, afirma Mariana.
Ao contrário do padrão “em pico” observado para a vegetação, o estudo da diversidade de aves revelou que esses animais formam uma comunidade mais rica em espécies logo após a queimada. Essa riqueza de espécies tende a diminuir à medida que passa o tempo, e que a comunidade de plantas torna-se mais homogênea.
Mas algo mais importante aparece quando se consideram quem são essas aves, e como elas utilizam o ambiente dos campos ao longo do tempo. Um exemplo bastante óbvio é o das aves que se alimentam de grãos, que estão mais presentes nos locais há mais tempo sem queimada.
“Isso tem uma relação bem forte com a questão da altura das gramíneas, porque esse é um grupo em que as plantas produzem sementes. Então quanto maior a biomassa de gramíneas, maior o número de sementes e, consequentemente, mais granívoros.”, explica Mariana.
A jovem bióloga completa, ainda, com outro exemplo: “Os carnívoros e nectarívoros (aves que se alimentam do néctar de flores), por outro lado, tiveram bastante relação com as áreas abertas, que tiveram queima recente. Porque isso facilita a visualização das presas. São relações que fazem muito sentido.”
Outra questão importante, ao se avaliar a importância dos regimes de queima para a biodiversidade dos campos, é saber como esse tipo de distúrbio afeta populações de espécies ameaçadas de extinção. No caso dos Campos de Cima de Serra estudados no artigo, foi possível detectar algumas aves descritas na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza. Mas essas espécies têm preferências por características de vegetação diferentes, associadas a diferentes regimes de queima.
É o caso do caminheiro-grande (Anthus nattereri), ave insetívora classificada como vulnerável que, no estudo, foi encontrada apenas nas áreas de vegetação baixa, mais comuns após uma queimada. Também associado a áreas recém-queimadas está o pedreirinho (Cinclodes pabsti), classificada como quase ameaçada. Mas, longe de serem a totalidade das espécies relevantes do ponto de vista de conservação, essas aves que gostam da vegetação baixa são acompanhadas pelo caboclinho-de-barriga-preta (Sporophila melanogaster), ave também quase ameaçada que prefere campos de vegetação alta.
“Essa espécie é endêmica do Brasil, e é uma ave que precisa que a paisagem tenha áreas que estão há muito tempo sem queima, para que a vegetação tenha tempo de ficar alta mesmo. Ele precisa dessa estrutura para adquirir alimentos, construir seus ninhos… uma série de funções”, explica Mariana. “Fica evidente a importância de ter os dois tipos de hábitats, né? Para englobar toda a biodiversidade de aves dos campos.”
O pesquisador que aprendia com o fogo
“Acho esse artigo especialmente interessante, em primeiro lugar, porque ele avalia um tipo de formação vegetal que tende a ser subvalorizado em relação às áreas florestais, que são os campos de altitude no sul do Brasil, os chamados Campos de Cima da Serra”, comenta por e-mail o professor e pesquisador responsável pelo Laboratório de Ecologia de Vertebrados do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB), Dr. Emerson Monteiro Vieira.
Com um interesse pela biologia que o acompanha desde a primeira infância, quando perseguia e observava caranguejos guruçá nas férias em praias capixabas, atualmente o Prof. Vieira dedica sua carreira de pesquisa a estudar pequenos mamíferos. Desde seu mestrado, em 1990, a importância do fogo para as comunidades de pequenos roedores e marsupiais do Cerrado brasileiro é uma questão de grande importância em sua carreira de pesquisa.
“Eu procuro investigar os padrões das respostas da fauna a eventos do fogo, a maioria dos quais são pouco ou nada conhecidos. Além disso, procuramos investigar o papel de diversos fatores – tais como frequência das queimadas e a extensão das áreas a intensidade do fogo, tipo de hábitat e características específicas dos animais – nos efeitos detectáveis das queimadas na nossa fauna.”, explica ele sobre sua pesquisa.
Emerson comenta que, ao olhar para os estudos de seu grupo de pesquisa, é possível avaliar que muitas espécies de mamíferos, especialmente as de menor tamanho, não morrem diretamente pelo fogo, devido a se abrigarem em buracos no solo ou em cupinzeiros. “No entanto, as alterações no ambiente decorrentes do fogo afetam vários animais de forma distinta. Por exemplo, pode haver mais ou menos alimento, dependendo do que determinado animal come, fazendo com que a composição de espécies mude em decorrência dessa perturbação,” conta o professor.
Ainda comentando a importância do artigo de Mariana Neves e colaboradores, o professor ressalta o fato deste indicar claramente a necessidade de haver um manejo de fogo em ecossistemas que têm esse distúrbio como parte intrínseca de seu funcionamento. “Ao contrário do que muita gente ainda pensa, esse tipo de perturbação propicia a heterogeneidade de ambientes e aumenta a diversidade, tanto de plantas quando de aves. Estudos ainda são necessários [para se entender como melhor conduzir o processo]. No entanto, a falta desse manejo de fogo com certeza acarretará prejuízos maiores para a biodiversidade nessas áreas.”
Projetistas de queimadas
Mariana Beal Neves descobriu, no primeiro dia de graduação, ter nascido no Dia do Biólogo. Muito antes disso, durante a infância no interior de Santa Catarina, aproveitou a proximidade com “o meio do mato” para observar a natureza e colecionar insetos e pedras. Muito depois disso, durante a iniciação científica, descobriu que sua principal paixão dentro da observação da natureza era aprender como funcionam os processos ecológicos em si.
Não foi por falta de possíveis distrações.
“Eu trabalhei com o processo de dispersão de sementes por bugio ruivo, e nesse meio tempo eu tive o incrível privilégio de ser a primeira pessoa do laboratório à época, junto com minha colega Walesca Martins, a ver um parto em vida livre de bugio-ruivo”, conta ela. “Naquele momento eu tive certeza de que eu estava ali na hora certa, no lugar certo, fazendo a coisa certa. Mas o que realmente me encantou nisso tudo foi o processo de dispersão das sementes em si. Por incrível que pareça, eu me encantava mais olhando as fezes dos bugios e os [besouros] rola-bosta trabalhando do que observando os bugios propriamente ditos!”
O artigo do qual Mariana é primeira autora tem a ver com a compreensão dos vários processos ecológicos associados à dinâmica do fogo de ecossistemas campestres. Aprender sobre esses processos, e sobre seus resultados para a biodiversidade, é de alta importância para que se possa planejar melhor ações de conservação.
O controle do fogo por humanóides é anterior à nossa espécie, e aprender as melhores maneiras de se criar e preservar uma chama talvez seja uma das primeiras descobertas de algo que viria a se tornar a ciência. Mesmo com essa longa história, a imprevisibilidade do fogo e os riscos inerentes ao seu alastramento embasam o que Mariana chama de uma espécie de “tabu” quando o assunto é manejar ecossistemas com uso proposital do fogo.
Especialmente em um país onde queimadas propositais são tão corriqueiras como no caso do Brasil, há necessidade e grande cuidado ao se apresentar a mensagem de que, em alguns ecossistemas onde o fogo é natural, o manejo da paisagem com fogo pode preservar espécies, desde que executado de maneira muito controlada, embasada em dados e modelos, e com grande planejamento.
“As pessoas – inclusive alguns gestores de Unidades de Conservação, embora a maioria, principalmente no Cerrado já reconheça a importância deste tipo de manejo – enxergam o distúrbio como algo ruim e não como algo que deve ser acompanhado. O fato de faltar conhecimento sobre o assunto, falando dos ecossistemas inflamáveis que temos no Brasil, é em parte porque [muitas das] áreas onde poderia haver queimadas programadas são em Unidades de Conservação que detêm ecossistemas campestres e que não possuem um plano de manejo com fogo”, conta a bióloga, cujo trabalho evidencia a importância de áreas com diferentes regimes de distúrbio para a manutenção da biodiversidade de aves.
A pesquisa sobre este assunto, especialmente em ecossistemas menos estudados como os Campos de Cima de Serra, ainda precisa prosseguir muito para chegar em um ponto no qual seja possível desenhar planos de manejo com as complexas estratégias necessárias para realizar o manejo do fogo. Mas tanto Neves quanto o professor Vieira concordam que existem evidências de que diferentes regimes de queimada geram uma paisagem mais heterogênea, com capacidade de abrigar e atender às necessidades de mais espécies nativas destes ecossistemas historicamente marcados por chamas naturais.
“Um manejo adequado deve incluir, necessariamente, a proteção contra queimadas indesejadas – naturais ou provocadas – de algumas áreas. Deve incluir também a realização de queimadas controladas em outras. Essa ação deve ser integrada em uma escala maior, de milhares de hectares (que chamamos de escala de paisagem). Estudos ainda são necessários para se determinar a periodicidade das queimadas controladas e a extensão das mesmas”, explica o Dr. Emerson.
Reforçando o quanto é relevante o fato de as conclusões do estudo da PUC-RS estarem em consonância com os resultados de pesquisadores que, como ele, estudam os efeitos do fogo no Cerrado, Vieira ressalta ainda outro motivo para a importância de se manejar a ocorrência do fogo:
“Áreas que ficam muito tempo sem queimar, quando pegam fogo, muitas vezes acabam causando efeitos mais graves na fauna. [Isso porque] a extensão de área queimada e intensidade do fogo geralmente são maiores. Temos dados indicando que, em uma escala regional, de centenas de hectares, a manutenção de áreas com regimes distintos, mantidos por queimadas controladas, em épocas diferentes e áreas pequenas, mantêm uma diversidade de fauna até mais alta do que áreas que não queimam por muito tempo. Esse é o conceito conhecido como Pirodiversidade, a diversidade propiciada pelo fogo.”
Fonte: O Eco
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