Cosme Ferreira, empreendedor, mestre e visionário
Foto: ACA
Por Alfredo Lopes(*)
Um visionário nordestino, que veio ainda criança do Ceará para viver no Amazonas, marcou a visão de mundo amazônico de muitas gerações nos negócios, crenças e propostas para o desenvolvimento econômico e prosperidade social do Amazonas eda região amazônica como um todo. Ele atuou como diretor na Associação Comercial do Amazonas (ACA), uma entidade com quase 150 anos de existência, muito atuante na dinamização da economia, cultura e desenvolvimento regional. Em Manaus trabalhou, também, durante muitos anos como redator e articulista no “Jornal do Commercio”, onde militou em defesa da borracha, guaraná, castanha e outras espécies o que também fez na tribuna e nas comissões da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, como deputado estadual e igualmente na tribuna e nas comissões da Câmara Federal. Como empreendedor pode ser considerado um pioneiro por ter feito de sua especialização nas culturas da seringueira, da castanheira, do guaraná e do pescado um conjunto de em-presas para cuidar dessas atividades com muito sucesso, cuja atualidade e oportunidade não desapareceram depois do seu falecimento, mas permanecem como desafios e alternativas.
Bibliografia combativa
Nos anos em que exerceu a função de diretor da Associação Comercial do Amazonas promoveu significativos trabalhos de organização e fomento das atividades comerciais e indutriais, que estão contidos o livro “Primeiro Centenário da Associação Comercial do Amazonas (1871-1971)”. Escreveu outros livros, a grande maioria relacionada com a batalha da borracha e as alternativas econômicas baseadas no aproveitamento racional dos recursos naturais. É de sua autoria: “Em Defesa da Borracha Silvestre Americana” (1928); “Notas Parlamenta- res sobre a Constituinte Amazonense” (1935); “Borracha, Pro- blema Brasileiro”(1938); “Problemas da Amazônia” (1940); “A Borracha na Economia Amazônica” (1952); “Novas Bases para a Política Econômica da Borracha” (1953); “Novos Ângulos do Problema Amazônico” (1954); “Economia da Produção” (1956); “Amazônia em Novas Dimensões” (1961); “Porque Perdemos a Batalha da Borracha”(1965).
Convicção visionária da prosperidade
Foi um refinado poeta, ocupando espaços nos jornais e revistas de Manaus nos primeiros anos de sua vida literária. Ocupou a Cadeira nº 1 da Academia Amazonense de Letras, que tem como patrono Péricles Moraes. Manaus o homenageia com uma de suas principais vias: Alameda Cosme Ferreira, no bairro do Aleixo. Uma justa homenagem de seu admirador e amigo, Gilberto Mestrinho. Faleceu em Manaus a 1.o de outubro de 1976, com 83 anos. Neste dia de outubro, em 1900, faleceu outro visionário nordestino, o maranhense Eduardo Gonçalves Ribeiro. Cosme fundou a Companhia Nacional de Borracha, Companhia Brasileira de Plantações e a Companhia Brasileira de Guaraná, empresas focadas na convicção visionária da prosperidade econômica fundada no aproveitamento da biodiversidade amazônica. Obstinado pela recuperação da economia do látex, Cosme Ferreira mobilizou cientistas e cobrou políticas públicas para materializar seu projeto. A Companhia Nacional de Borracha era uma empresa de beneficiamento, pesquisa e comercialização do látex, onde funcionava um laboratório experimental da Hevea brasiliensis, que ilustra a teimosia e a obstinação desse cearense caboclo em restaurar a economia da goma elástica e de outros produtos da biodiversidade amazônica.
“ O Brasil não tem projeto para a Amazônia”
Na apresentação de seu livro, “Amazônia em novas dimensões” (Ed. Conquista, RJ, 1961), escrita pelo historiador e ex- -governador do Amazonas, Arthur Cezar Ferreira Reis, eclode uma denúncia de extrema atualidade e gravidade que o livro de Cosme Ferreira provoca e convoca à reflexão: “Não se criou ainda, no Brasil, uma consciência, fora do emotivismo ou do sensacionalismo de romance e de jornal, elaborada com serenidade e com realismo acerca da Amazônia. Temos preferido conhecê-la, quando não nos deixamos dominar pela frase macia, as sentenças euclidianas, pelas mãos dos homens de ciência do estrangeiro, que não se cansam de frequentá-la e de investigá-la com os propósitos de bem servir ao conhecimento humano, mas, também, aos interesses políticos de suas pátrias”. No livro, Cosme revive e reacende a questão amazônica, seus desafios de conhecimento e aproveitamento racional da floresta, os equívocos de sua ocupação, os mitos criados pelo distanciamento e descompromisso da União em relação ao homem da região. O Brasil, segundo ele, não tem projeto para a Amazônia.
Cosme contradiz Euclides da Cunha
As novas dimensões remetem à antropologia amazônica, no sentido renascentista de valorização do fator humano como o ser mais importante da cadeia evolutiva e que se contrapõe ao obscurantismo do teocentrismo medieval. Diz Cosme: “… o homem que Euclides da Cunha considerou um intruso, a perturbar com sua presença a serena e majestática gestação de um capítulo inacabado do Gênesis, é aqui, na realidade, o visitante longamente esperado, que apenas completará a paisagem, violando-a para que possa frutificar em benefícios que, de há muito, deveriam estar sendo fruídos pela comunidade brasileira, para não dizer pelo próprio mundo, tão carecedor desse imenso campo de trabalho, acolhedor e pacífico”. Euclides veio para a Amazônia por determinação de seu patrão, Júlio Mesquita, fundador do jornal O Estado de São Paulo, o Estadão. Ambos compartilhavam a ideia da intocabilidade amazônica, sem se importar com o fator humano, milhões de pessoas que aqui vivem. Para eles, o homem seria mais um dos habitantes do Último Jardim Botânico da Terra. Para contemplação…
Declinando o verbo empreender
Ao longo de suas obras, Cosme reflete sobre os limites e promessas de suas empresas, as companhias de produtos regionais, e defende a necessidade de inovação tecnológica, que ele incluía sob a letra de “bens de produção e de equipamentos que ainda não fabricamos”. Ainda estava viva em sua lembrança a colaboração da Amazônia “… quando fornecíamos ao país quase a metade de suas divisas através da exportação de um só produto – a borracha”. Em “Novos Ângulos dos Problemas Amazônicos,” de 1954, publicado pela Associação Comercial, ele defende o manejo florestal, para atender a demanda mundial de 800 milhões de metros cúbicos de madeira. “Nossas florestas podem fornecê-los se submetidas a um aproveitamento racional e econômico”. Hoje a engenharia florestal recomenda manejo sustentável de extração de madeira para renovar e conservar a floresta. “Há um mercado sem limites para a juta, originária dos climas quentes e úmidos – e nossas várzeas, que quase suprem as necessidades nacionais dessa fibra, poderão produzi-la em volume imprevisível e a pre- ços de competição – o mesmo se aplica ao arroz para atender a alimentação básica de mais de um bilhão de seres humanos”. A essa lista, Cosme acrescenta o guaraná, a castanha, a piscicul- tura e as oleaginosas, defendendo o beneficiamento local com agregação de valor decorrente da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico. Suas teses têm sido confirmadas e reafirmadas pela pesquisa científica e sua prática empreendedora ilustra o grau de pioneirismo que a história haverá de revisitar com apreço e admiração. (LOPES, 2012). Adaptado do livro “Lições do Ciclo da Borracha” Alfredo MR Lopes, EDUSP, São Paulo, 2014 e do mesmo autor, “Amazônia, Pioneiros e Utopias, Instituto Census, Manaus, 2013.
(*) Alfredo é filósofo, ensaísta, PUC-SP, USP, UFAM,
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