O termo “isótopos estáveis” ganhou novos espaços na mídia brasileira desde o discurso online de Jair Bolsonaro em meados de novembro durante a 12ª Cúpula do BRICS, grupo com Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Na reunião, o presidente criticou ataques políticos desferidos no Brasil pela explosão das queimadas e do desflorestamento e prometeu listar ao mundo os países que compram madeiras ligadas ao desmatamento ilegal da Amazônia. Acabou recuando. Mas também afirmou que a Polícia Federal usou a técnica semelhante a um “teste de DNA” para rastrear a origem de madeiras apreendidas e comercializadas. Para melhor explicar a questão aos leitores de O Eco, enviamos por e-mail algumas questões a uma das maiores especialistas brasileiras no assunto, a pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora na Universidade de Brasília (UnB) Gabriela Bielefeld Nardoto. Ela também preside a Rede Nacional de Isótopos Forenses, criada para difundir e ampliar no país o uso da metodologia em aplicações forenses, globalmente popularizadas por séries sobre investigações criminais como CSI, Criminal Minds e, para os não tão jovens, Arquivo-X.
*
O Eco: Poderia descrever como funciona a tecnologia dos isótopos estáveis?
Gabriela Nardoto – Um mesmo elemento químico pode ter variações no peso do núcleo de seus átomos. Assim temos isótopos leves e pesados para Carbono, Nitrogênio, Oxigênio e Hidrogênio. A proporção entre os isótopos pesados e leves varia conforme esses elementos circulam pelos ambientes naturais.
Isso ocorre, por exemplo, quando uma molécula de água passa do estado líquido, como temos em lagoas, rios e oceanos, para o estado gasoso, como o vapor que encontramos na atmosfera, ou como no caso do Carbono, absorvido pelas plantas na forma de CO2 e transformado em glicose durante a fotossíntese. Essas variações são reguladas por fatores predominantes em cada região geográfica.
Ao consumirem plantas, os animais, inclusive os humanos, incorporam os diferentes isótopos em seus tecidos – unhas, pelos, ossos e músculos. Essa transferência ocorre ao longo de toda a cadeia alimentar. Em “termos isotópicos”, quando comemos carne de boi na verdade estamos comendo indiretamente capim! Quando comemos peixes, estamos na verdade comendo pequenas algas (fitoplâncton) que alimentaram os peixes! Da mesma forma, quando bebemos água, incorporamos em nossos tecidos isótopos da fonte de água. Em seguida, se analisarmos os isótopos de um tecido humano podemos inferir a origem geográfica aproximada daquela pessoa.
Quais são outras aplicações básicas?
Dessa forma, cientistas utilizam os isótopos estáveis como “traçadores” da origem de determinados materiais. Assim como o DNA humano indica seus pais, os isótopos estáveis apontam sua origem geográfica. Seria como se os átomos de carbono, nitrogênio, oxigênio e hidrogênio tivessem um GPS (sigla em Inglês para Sistema de Posicionamento Global).
Esses GPS são muito menos precisos que os aparelhos usados em veículos ou caminhadas na natureza, mas ainda assim extremamente valiosos em inúmeras aplicações, como indicar a origem geográfica de uma determinada planta de interesse comercial e até de alimentos como os vinhos.
Mas, será que eu preciso de todas essas análises para saber onde uma pessoa mora? Se ela estiver viva e disposta a informar, provavelmente não. Mas, se ela estiver morta ou não quiser te informar, aí os isótopos estáveis entram em cena. Isso sem contar o caso de animais selvagens ou domésticos, que não tem o dom da palavra.
Jair Bolsonaro comentou que os isótopos estáveis ajudariam a identificar compradores de madeiras brasileiras ligadas ao desmatamento ilegal. Como isso funcionaria?
As proporções dos isótopos estáveis nas madeiras, assim como em qualquer outro material biológico, podem revelar informações sobre sua origem geográfica. Isso é possível pois os isótopos refletem as variações dos processos naturais que ocorrem no solo e na água de cada região e que são transferidos às plantas. Estas alterações locais são incorporadas pelos vegetais, servindo como marcadores de sua origem.
Para essa identificação, são utilizados modelos isotópicos para inferir a provável origem geográfica de cada amostra analisada. Ou seja, comparamos amostras de origem desconhecida às prováveis localidades com isótopos mais semelhantes à da amostra ou grupo de amostras. Os testes podem atribuir amostras individuais aos potenciais locais de origem, diferenciar entre duas ou mais regiões de origem, certificar que as madeiras vieram de uma determinada região ou excluir áreas de menor probabilidade de origem.
Especialistas também defendem o uso de isótopos estáveis para reduzir o tráfico de vida selvagem. Nesse caso a tecnologia poderia apoiar a distinção de animais traficados, criados em cativeiro ou livres na natureza?
Como os isótopos estáveis são uma ferramenta comum para determinar as origens de espécies migratórias, há inúmeros estudos demonstrando isso, o mesmo princípio pode ser aplicado para estimar origens de animais comercializados ilegalmente. A mesma metodologia usada no caso da madeira ilegal pode ser usada nesse caso.
No ambiente natural, a alimentação dos animais é mais diversificada do que em cativeiro, onde predomina uma dieta com base em rações comerciais. Assim as proporções de isótopos estáveis serão diferentes, tanto devido à dieta como à água que estes animais ingerem. Com isso consegue-se rastrear a origem dos animais capturados.
Os isótopos estáveis são usados em diferentes regiões do mundo para diferenciar animais de origem silvestre daqueles criados em cativeiro, no controle da captura de animais na natureza para fins de conservação da espécie ou para detecção de fraudes de rotulagem em alimentos de origem animal.
Quais usos ocorrem no Brasil e no Exterior? Tais aplicações são comuns ou exceções?
O uso dos isótopos estáveis está consolidado há décadas no meio científico mundial. Para termos uma noção de quão sedimentada está a metodologia no mundo, a base Web of Science reúne 7.400 artigos publicados em todo o mundo. Aplicações forenses ocorrem em vários países para esclarecer homicídios e desaparecimento de pessoas, tráfico de drogas, falsificação de moedas e crimes ambientais.
A grande maioria dos estudos no Brasil está relacionada à hidrologia e à ecologia, mas nos últimos anos sua aplicação forense vem ganhando importância, principalmente pelo edital Pró-Forenses, lançado em 2014 pela Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Coordeno um dos projetos aprovados pela iniciativa, com o qual iniciamos no Brasil uma linha pioneira no uso dos isótopos estáveis para rastreamento de animais traficados, incluindo doutoramentos e pós-doutoramentos. O trabalho destes pesquisadores é de grande importância para ampliar a aplicação prática dos isotópicos estáveis.
Os custos de pesquisa, desenvolvimento e aplicação são elevados?
A proporção entre os isótopos pesados e leves em uma amostra de um dado elemento é medida em laboratório por meio de uma técnica que separa os átomos conforme sua massa. Assim, isótopos pesados e leves são coletados e equipamentos especiais geram dados relativos a essa proporção, que são em seguida computados.
O investimento inicial para implantação de um laboratório para análise isotópica está acima de R$ 5 milhões. No entanto, devida à capacidade instalada de realizar grande volume de análises laboratoriais, o custo por amostra fica muito reduzido. Isso torna viável o investimento, tanto em nível acadêmico-científico como comercial.
Isso tudo deixa clara a importância da manutenção e da ampliação de investimentos e financiamentos públicos em ciência. A Capes abriu recentemente um novo edital na área forense, mas ainda são necessários novos investimentos para colhermos resultados de abrangência nacional no médio e longo prazos, como consolidar o uso forense dos isótopos estáveis baseado na formação de recursos humanos especializados na interpretação de resultados isotópicos.
Fonte (O) Eco
Comentários