Em tempos normais, conduzir a agenda de reforma tributária é tarefa desafiadora. Em tempos de fragilidade econômica e de severas restrições fiscais de curto e médio prazos, podemos ter soluções indesejadas. Pior ainda é quando se discute tema tão relevante sem estudos robustos de impactos socioeconômicos e setoriais. Estamos navegando em mares desconhecidos e podemos atracar em porto ainda mais inseguro.
Márcio Holland
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O custo do trabalho no Brasil é excessivamente elevado. O país tem um dos maiores custos não-salário do trabalho do mundo, de acordo com dados do Bureau of Labor Statistics, dos Estados Unidos. Com 8,5% de carga tributária sobre a folha de salários, o país tributa muito mais o trabalho do que a média dos países da OCDE, com 4,5%. Uma reforma tributária ampla precisa encontrar soluções para reduzir esse custo fiscal. Contudo, a questão é sobre como desonerar a folha de salários no contexto atual de grande estresse fiscal de curto e médio prazo.
Antes, porém, de acordo com estudo da FGV (A. Portela et al. 2012. Custo do Trabalho no Brasil, FGV EESP), “o custo de um trabalhador pode ser de 2,83 vezes o salário de carteira dele (aumento de 183%), no caso de um vínculo com doze meses de duração. Isto deriva não apenas de encargos, mas de um conjunto de obrigações acessórias, benefícios negociados, burocracia e até da gestão do trabalho. Esse valor pode cair para 2,55 vezes (ou 155%) se o vínculo se estender por cinco anos. Essa redução deve-se a diversos fatores relacionados ao elevado peso que a rotatividade tem no custo do trabalho”.
Ou seja, o problema do mercado de trabalho no Brasil é bem maior do que seus custos tributários, incluindo prioritariamente a falta de qualificação profissional. Não há dúvida, contudo, de que a solução para esses elevados custos passa pela questão tributária. A contribuição patronal (20% de INSS) eleva o custo de se empregar e, assim, estimula a informalidade. De acordo com a PNADC/IBGE, mais de 41% da força de trabalho do país está na informalidade. A contribuição patronal na folha de salários chega aos preços dos consumidores. Os próprios trabalhadores, ao adquirem produtos e serviços, acabam pagando por ela.
O Brasil tem um sistema tributário altamente regressivo. Famílias que ganham até 2 salários mínimos pagam 48% de tributos, enquanto famílias que ganham mais de 30 salários mínimos pagam 26% de tributos. De acordo com a OCDE, o Brasil tributa 51% a mais em consumo de bens e serviços do que a média de países da OCDE, posicionando com a maior carga tributária sobre o consumo perante economias ricas. No outro extremo, o Brasil é o país que menos arrecada em tributos sobre a renda e lucro na comparação com economias da OCDE. Ao reformar apenas tributos sobre o consumo, como propõe a PEC 45/2019, por exemplo, a partir do novo IBS (imposto sobre bens e serviços), de base ampla, muito provavelmente a carga tributária sobre famílias com menor rendimento tende a aumentar.
É tarefa bastante desafiadora encontrar soluções neutras, em termos fiscais, para a desoneração da folha de salários. Afinal, a receita com a contribuição patronal está na casa dos R$280 bilhões anuais. Há pelo menos três alternativas.
Primeiro, poderia se adicionar à alíquota de eventual novo IBS proposto nas PEC 45/2019, mas teríamos o maior IVA do planeta. Na verdade, como está na proposta, o Brasil corre sérios riscos de ter a maior tributação sobre o consumo do mundo. O IBS pode variar entre 28 e 31%, bem acima dos 19,5% de média da OCDE. Cada 1% do IBS arrecada algo em torno de R$32 bilhões. A desoneração completa da folha, com compensação no IBS, levaria a sua alíquota para algo entre 34 e 39%!
A segunda alternativa seria a compensação via um novo tributo sobre movimentação financeira, diferentemente da antiga CPMF. A CPMF, com alíquota de 0,38%, arrecadava 1,4% do PIB, ou seja, tem potencial para arrecadar R$101 bilhões. Se fosse reeditada, permitiria desonerar a folha de salários em 35%. Contudo, esse tributo em cascata já não condiz mais com as taxas de inflação e de juros básicas baixas.
Em uma base mais ampla, sobre toda a movimentação financeira do país, pode-se chegar a uma base de incidência de R$80 trilhões, bem superior à base da CPMF, incluindo pagamentos e recebimentos, operações nas cadeias produtivas, movimentações com cartão de crédito e de débito, na bolsa de valores, em contratos de câmbio, em pagamentos de salários, entre outros.
Um tributo desta natureza teria o poder de arrecadar R$80 bilhões para cada 0,1% de alíquota. Mas, seria alíquota suficiente para sufocar e matar diversos negócios financeiros no país, muitos deles importantes para a própria atividade produtiva. A proposta do Ministério da Economia, de alíquota de 0,2%, desorganizaria diversos sistemas econômicos.
A terceira alternativa seria a desoneração seria a eliminação da incidência sobre o primeiro salário mínimo da renda de todos trabalhadores da contribuição destinada ao financiamento dos benefícios programáveis, com estimado R$ 75 bilhões, pelos cálculos do CCiF. Mas, aqui fica a dúvida sobre o comportamento dos agentes econômico (empresários e trabalhadores) para caso de rendimentos no limitar do salário mínimo. Corre-se o risco de achatamento de salários para o enquadramento na faixa de isenção.
Provavelmente, eventual compensação da folha de salários passaria por rebalancear a tributação sobre a renda e o patrimônio, nos aproximando das melhores práticas da OCDE. Alíquota adicional de IRPF em torno de 35% e revisão da tributação sobre dividendos e sobre IRPJ combinada com mudanças em alguns tributos sobre o patrimônio parece ser o caminho socialmente mais justo para a redução do peso dos tributos sobre a folha de salários. Mas, seria esse o timing apropriado para majorarmos tributos, mesmo sobre aqueles que pagam relativamente menos?
Em tempos normais, conduzir a agenda de reforma tributária é tarefa desafiadora. Em tempos de fragilidade econômica e de severas restrições fiscais de curto e médio prazos, podemos ter soluções indesejadas. Pior ainda é quando se discute tema tão relevante sem estudos robustos de impactos socioeconômicos e setoriais. Estamos navegando em mares desconhecidos e podemos atracar em porto ainda mais inseguro.
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