Na Amazônia, no Pantanal, no Cerrado, nas savanas africanas e australianas, a disseminação do fogo, fenômeno que é natural em alguns ecossistemas, vem causando preocupação na sociedade e intrigando a comunidade científica, que tenta entender suas causas e consequências em cascata.
Mesmo nos ambientes onde queimadas são naturais, como no Cerrado, as mudanças no regime de fogo para além do que esses ambientes conseguem suportar colocam em risco várias espécies, inclusive a humana.
Mais graves ainda são os incêndios em áreas onde o fogo não era comum até bem pouco tempo atrás. O impacto de incêndios provocados pelas pessoas na Amazônia é grave devido a pelo menos quatro pontos: maior perda de biodiversidade, maior emissão de carbono, dificuldade de regeneração da floresta e alteração no ciclo da água — que consequentemente, leva a mudanças na temperatura e no regime de chuvas global. Por isso, as consequências dos incêndios para os serviços ecossistêmicos fornecidos na região podem ser percebidas a quilômetros de distância das chamas.
1. Quando ouvimos sobre fogo na Amazônia, o que exatamente está queimando?
Primeiro precisamos diferenciar queimadas de incêndios florestais. A queimada é uma técnica milenar na agricultura familiar com o intuito de limpar áreas para o plantio de lavouras e pastagens. As cinzas contribuem para a fertilidade do solo, num primeiro momento, mas, se usado muitas vezes, o fogo pode empobrecê-lo. Quando ficam fora de controle, queimadas podem se transformar em incêndios. Incêndios devoram paisagens e avançam sem direção. O fogo atinge plantas secas ou mortas, animais que não conseguem escapar e seus abrigos. Os incêndios queimam também plantas vivas, mesmo que ainda estejam verdes e úmidas, como é típico em florestas tropicais como a Amazônia. É um evento raro, mas acontece.
As áreas que mais queimam são as áreas de desmatamento, de limpeza de pasto ou de floresta em pé. Nas áreas de desmatamento, o uso do fogo é uma técnica barata para consumir o que a derrubada de árvores deixou para trás: tocos, galhos, árvores. Mas a quantidade de biomassa na Amazônia é tão grande que o fogo muitas vezes precisa ser empregado mais de uma vez para consumir tudo e “limpar” o terreno. Já o fogo para limpeza de pasto possibilita a rebrota do capim e sua renovação. Essa prática tradicional está longe de ser o maior problema na Amazônia — a menos que vire um incêndio florestal ou que ocorra em ambientes naturais, como os lavrados e as campinaranas.
Entre 2019 e 2020, sabemos que no sul da Amazônia brasileira, por exemplo, mais da metade das queimadas tiveram relação com a derrubada da floresta. Elas ocorreram, majoritariamente, em áreas de fazendas, assentamentos rurais e florestas que pertencem ao Estado e que ainda não têm destinação.
2. Qual a relação entre fogo e desmatamento na Amazônia?
A triste imagem de uma área desmatada tem como primeira cena o corte das árvores. As motosserras cortam as toras de madeira, que têm valor econômico. Depois, fortes correntes arrastadas por um trator vão derrubando as árvores que sobraram. Esses processos deixam para trás uma quantidade imensa de tocos, galhos e folhas — o que chamamos de biomassa inflamável. É uma pilha de matéria seca que pode queimar por várias semanas.
Vale lembrar que esses fogos não começam com um raio, porque raios na época seca são raros. Conseguimos diferenciar o fogo de desmatamento dos demais tipos devido aos vários dias durante os quais essas áreas queimam, por meio da altíssima energia liberada no processo e porque esse fogo não se alastra, ficando concentrado nas leiras de madeira que os desmatadores deixam propositalmente para queimar.
Para iniciar um fogo são necessários três elementos: clima seco, combustível e uma fonte de ignição. O desmatamento contribui com dois desses três elementos: o clima seco e a biomassa inflamável. Isso porque o desmatamento afeta o clima local (tirando sua umidade) e cria bordas na floresta (área de transição entre a floresta e áreas estruturalmente mais abertas) que, expostas ao vento e a outras intempéries, tornam-se suscetíveis a incêndios. Fica faltando a fonte de ignição, que parece estar sendo mais usada do que nunca na Amazônia brasileira.
3. Quanta floresta está sendo destruída anualmente por incêndios e quais áreas são mais afetadas?
Entre janeiro e agosto de 2020, 3.437.300 milhões de hectares, uma área equivalente a 22 vezes a cidade de SP ou o estado de Alagoas e Distrito Federal juntos, do bioma amazônico queimaram. Doze por cento dos incêndios ocorreram em floresta em pé e 83% em áreas recentemente desmatadas. Em comparação com 2013 e 2018, isso significa um aumento de 100% e de 84% de áreas queimadas até agora, respectivamente. Como o manejo por meio do fogo está legalmente suspenso na Amazônia por 120 dias desde julho de 2020, a maior parte desse fogo é ilegal.
Em anos de seca intensa (como foram 2005, 2007, 2010, 2015 e 2016), até 2% das florestas da Amazônia podem queimar. Vale lembrar que mapear as cicatrizes que o fogo deixa é um trabalho muito difícil, e precisaríamos dessas cicatrizes para medirmos precisamente a área queimada de floresta. Portanto, os números calculados de 2020 devem ser ainda maiores do que os que sabemos até agora.
Tudo indica que em 2020 estamos vivendo um aquecimento da superfície das águas do Atlântico. Isso aumenta a intensidade das secas que este ano acometeram o Pantanal, a Argentina e o sudeste da Amazônia, região que mais queimou até agora. Para citar um exemplo, em um único dia (17 de agosto de 2020), quase 10 mil hectares foram consumidos pelo fogo em São Félix do Xingu, no Pará.
4. Há uma estimativa de perda de espécies pelo fogo?
Talvez essa seja uma das estimativas mais difíceis de serem feitas, especialmente quando se fala dos animais. Isso porque a maior parte deles pode fugir. Aliás, grande parte da adaptação dos animais ao fogo é comportamental e implica em correr na hora certa.
Para as plantas, metade das espécies que estão sob risco de extinção ocorrem em áreas que estavam a menos de 10 km dos focos de incêndio na Amazônia em 2019. A maior parte dessas espécies pode ter perdido, no mínimo, de 20 a 30% de suas ocorrências.
Vale lembrar os malefícios do fogo à própria espécie humana. No sudeste da Amazônia, não são raras as manhãs de inverno encobertas por fumaça. A prática de atividade física é praticamente inviabilizada. Para os indígenas, a caça, a pesca e o trabalho nas roças de mandioca são muito dificultados. A fumaça impõe riscos de acidentes nas estradas e de doenças respiratórias que podem surgir ou se agravar. Síndromes respiratórias agudas graves, como a covid-19, provocada pelo novo coronavírus, podem ter seu quadro piorado em pacientes que estejam em uma região com alto índice de queimadas. Durante a pandemia, com as distâncias amazônicas, muitas pessoas estão sofrendo pela falta de assistência médica ou de equipamentos básicos de socorro.
5. Os incêndios na Amazônia têm se tornado comuns. Mas eles são naturais?
Incêndios na Amazônia não são naturais, embora sejam cada vez mais comuns. Sabe aquela sensação de frescor que sentimos ao entrar embaixo de uma árvore? Ela é causada por um processo conhecido como evapotranspiração. A evaporação da água do solo e a transpiração das plantas geram vapor de água e consomem calor, deixando o ambiente mais fresco. Graças a esse microclima úmido e fresco favorecido pelas árvores, a floresta fica protegida dos incêndios.
Mesmo quando iniciados, a maioria dos incêndios em florestas tropicais se extingue durante a noite, quando a umidade do ar e do combustível atingem seu pico. Em raras ocasiões, as frentes de fogo dentro da floresta persistem durante as partes mais quentes do dia em regiões com estações secas prolongadas (por exemplo, o sudeste da Amazônia), embora esses incêndios raramente avancem mais que 40 metros por hora ou liberem mais de 300 kW/m — o que é, digamos, um fogo brando.
Trilhas e ninhos de formigas cortadeiras também impedem frentes de fogo. Isso porque esses espaços geralmente não contêm combustíveis, agindo como aceiros (espaço sem vegetação seca e que é criado para conter o fogo) naturais. Os incêndios florestais geralmente queimam pequenas áreas em anos normais, quase exclusivamente nas regiões mais secas. Anos e anos de evolução da floresta que se protege do fogo ajudaram a selecionar espécies de plantas que não conseguem sobreviver ao calor das chamas. Plantas de áreas onde queimadas são naturais – como o Cerrado – têm características que denotam uma relação íntima e duradoura com o fogo. Entre elas, estão cascas mais grossas para suportar altas temperaturas e sementes que germinam só depois de queimadas. Contudo, quando chega alguém e inicia uma queimada na vizinhança da floresta, ou até mesmo no seu interior, esse fogo brando pode ter consequências catastróficas. Por não serem adaptadas ao calor das chamas, 75% das árvores da Amazônia morrem depois de um fogo de baixa intensidade no sub-bosque.
6. Como sabemos onde está pegando fogo? E qual o impacto das queimadas nos estoques de carbono?
Graças aos satélites que sobrevoam a maior parte da superfície da Terra, não precisamos mais ir até cada lugar para averiguar se ali está chovendo ou se está ocorrendo uma queimada ou desmatamento. Conseguimos até mesmo saber qual é a temperatura do solo e do ar em cada hectare da floresta amazônica sem sair de casa.
Quando aquela região queima, a temperatura local aumenta, e alguns satélites percebem a elevação dos índices. Acontece que alguns lugares da Amazônia estão cobertos por nuvens, o que dificulta e até impossibilita a captura de informações por esses satélites. Outros locais da região não têm cobertura de nuvens, mas o dossel da floresta – aquele teto formado pelas copas das árvores – fecham tão bem o tapete verde do seu topo, que torna quase impossível identificarmos incêndios florestais ou de sub-bosque.
Além dos satélites MODIS que são atualmente utilizados pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), hoje existe um novo satélite, o VIIRS, que consegue identificar quando o fogo acomete a floresta em pé, mas não de maneira imediata e acurada. O que conseguimos ver é o efeito do fogo na região depois de algum tempo. Na Global Fire Emissions Database, uma plataforma lançada recentemente pela Nasa, é possível ver onde o fogo está queimando e qual é seu tipo: se é fogo de desmatamento, na floresta em pé (ainda que um pouco subestimado) ou em área de pasto.
Para saber quanto carbono foi perdido devido ao fogo, basta pensar que, quando queimamos um pedaço de papel, uma árvore ou uma floresta, liberamos o carbono que compunha esses elementos. É esse ganho ou perda de biomassa que os satélites conseguem medir. A partir daí, é só calcular quanto dessa biomassa era carbono.
7. Como o fogo afeta o ciclo da água?
A floresta tem um papel crucial na manutenção do ciclo da água. Derrubá-la tem consequências diretas para onde os recursos hídricos vão.
Primeiro, vamos pensar na escala local. Quando pega fogo na mata ao redor de um corpo d’água, como um rio, a vegetação queimada vai para dentro desse rio, levando para ele mais nutrientes, numa situação que só vai normalizar vários meses depois. Quando a floresta queima muito, aumenta também a entrada de luz e de sedimentos, como terra e areia, na água, o que causa erosão. O aumento de luz e de nutrientes na água é uma condição ideal para as algas, cujo crescimento acaba saindo logo do controle e causando o que chamamos de eutrofização do corpo d’água (entrada de nutrientes na água para além do que pode ser incorporado, diminuindo o oxigênio disponível e deixando a água turva). O avanço desordenado das algas mata os outros organismos que vivem no corpo d’água, desde insetos aquáticos até peixes e plantas mais sensíveis. Resultado: água suja e seres vivos morrendo.
A vegetação queimada também pode morrer ou perder muito da sua capacidade de bombear água para a atmosfera, quando se pensa na escala regional. Uma árvore de porte médio, saudável, pode bombear até 500 litros de água para o ar todos os dias. Para se ter uma ideia, a potência de resfriamento de uma árvore é equivalente a 70 kWh para cada 100 litros de água transpirada (o suficiente para alimentar duas unidades centrais de ar condicionado residenciais médias por dia). Cada árvore perdida para o fogo vai resultar em menos calor dissipado e menos vapor de água que em condições normais se condensaria, formaria nuvens e cairia novamente no solo em forma de chuva.
8. Quais os impactos das queimadas para a saúde humana?
A floresta amazônica armazena algo em torno de 90 a 100 pentagramas de carbono. Para se ter uma ideia, isso é equivalente a todo o carbono emitido pela queima de combustíveis fósseis por toda a humanidade por um período de 10 anos. A queima de áreas de vegetação natural culmina na liberação desse carbono — ela vai converter todos os açúcares, proteínas e lipídios que compõem as plantas, o solo e os animais em gases tóxicos, gases de efeito estufa e material particulado inalável, entre outros.
A conversão dessa biomassa afeta e muito a saúde humana. A fuligem (especificamente o material particulado de 2,5 micras (micra é o mesmo que dividir 2.5 milímetros por mil) entra em nossas vias respiratórias e não sai mais. O material irrita nossas vias respiratórias e causa problemas respiratórios graves, especialmente em crianças, que podem também apresentar déficit de atenção e aprendizagem. Um relatório publicado em agosto de 2020 pelo Ipam (Instituto de Pesquisas da Amazônia) e colaboradores utilizou dados de saúde de 168 dos 450 municípios da Amazônia e mostrou que, em 2019, 4,5 milhões de pessoas na região respiraram um ar de menor qualidade do que o recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Um ar de menor qualidade do que do centro urbano da cidade de São Paulo. No contexto de uma pandemia de uma doença que acomete os pulmões, parece uma ideia ainda pior colocar fogo e produzir fumaça na floresta.
Com essa prática, há ainda a liberação de gases como o CO (monóxido de carbono), que fica no ar por poucas semanas, mas pode causar irritação nas mucosas, e o CO2 (gás carbônico), que pode persistir na atmosfera durante muitas centenas de anos. Suas moléculas ficam no ar absorvendo calor e tornando o ambiente mais quente.
9. O que são programas de crédito de carbono? Como eles podem ajudar a controlar o fogo?
Os programas de crédito de carbono são incentivos para pessoas físicas ou governos que adotam práticas que ajudam a preservar a vegetação nativa, evitando a degradação e o desmatamento de florestas. A ideia é recompensar financeiramente os atores por seus resultados na redução de emissões de gases de efeito estufa, considerando ações de conservação de estoques de carbono florestal, manejo sustentável de florestas e aumento de estoques de carbono no solo.
As políticas que mitigam o risco de incêndios podem alcançar uma vitória tripla que reduz as emissões de gases de efeito estufa, a degradação florestal e promove o desenvolvimento econômico inclusivo. O primeiro passo que os governos podem tomar é fiscalizar e punir quem promove desmatamento e incêndios a fim de especular e grilar terras. O segundo passo é promover uma política de incentivo a práticas livres de fogo junto aos produtores que ainda utilizam queimadas para o preparo do solo.
O risco de incêndio na Amazônia perpetua atividades agrícolas de baixo rendimento e degradantes do meio ambiente. Agricultores que usam fogo geralmente têm uma renda cinco vezes mais baixa, são menos capazes de investir em tecnologias livres de fogo e estão mais distantes dos mercados. Optar por práticas livres de fogo é importante, mas este manejo precisa ser coordenado entre produtores vizinhos. As famílias que investem em tecnologias agrícolas livres de fogo com uso intensivo de capital experimentam maiores perdas de receita com incêndios evitados do que os que usam o fogo. Isso porque o fogo de um vizinho que o utiliza acaba escapando para o vizinho que o evita. Para superar essa armadilha da pobreza incendiária, é necessária a criação de incentivos locais coordenados.
10. Por que a criação de unidades de conservação e terras indígenas pode evitar incêndios catastróficos?
Cerca de 2% dos incêndios que ocorreram na Amazônia em 2020 ocorreram em áreas protegidas e terras indígenas. Por outro lado, áreas de florestas públicas cuja destinação ainda não foi feita concentram altíssimas taxas de desmatamento e fogo. Áreas sem destinação são áreas que pertencem ao Estado e que ainda não receberam um título. Em 2019, as categorias fundiárias representadas pelas fazendas, assentamento, florestas públicas não-destinadas e áreas sem qualquer informação cadastral nas bases de dados do governo foram responsáveis por 85% dos focos de calor associados ao desmatamento, sendo que desse montante 33% ocorreu nas florestas não destinadas e áreas sem informação. Áreas não não destinadas são aquelas que pertencem aos Estado, mas às quais ainda não foi dada qualquer destinação de uso, sendo alvo de ocupação ilegal e grilagem. Áreas sem informação são aquelas que não constam em qualquer base de dados do governo e que portanto não sabemos a quem pertence.
Por outro lado, cerca de 2% dos incêndios na Amazônia em 2020 ocorreram em áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas. A maior porção da vegetação remanescente nas áreas mais atingidas por desmatamento está em áreas protegidas, representadas principalmente por terras indígenas demarcadas. Embora as áreas protegidas estejam sendo constantemente desmatadas, invadidas e queimadas criminalmente, elas ainda são os melhores lugares para se preservar a biodiversidade, especialmente em regiões de floresta muito fragmentadas, como o arco do desmatamento, que se estende pelo sul da Amazônia até o Maranhão.
Como a incidência de desmatamento e fogo é bem menor em áreas protegidas e terras indígenas do que em áreas privadas ou não designadas, a solução parece simples: dar uma destinação às áreas que ainda pertencem ao Estado e fiscalizar as áreas de propriedade privada. Acompanhar as mudanças rápidas nos regimes de fogo da região exige a inovação tecnológica que já temos com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) cooperação além das fronteiras políticas na Amazônia e comunicação entre agências de monitoramento e fiscalização em uma escala nunca vista antes.
Embora o sucesso anterior do Brasil na redução do desmatamento, que entre 2009 e 2015 teve uma média de incremento nas taxas anuais de desmatamento mantidas numa média de 5.6 mil km2 por ano, mas que de 2016 em diante vem crescendo a cada ano, sugira que o país poderia ser um líder eficaz nesse sentido. Contudo, sua resposta lenta aos incêndios na Amazônia de 2019, e o desincentivo à fiscalização em 2020, contam uma história bem diferente. O fato é que o futuro da floresta depende de ações decisivas agora.
Fonte: Nexo Jornal
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