O plano da União Européia de eliminar suas emissões de gases de efeito estufa até 2050 pode ser história para boi dormir. O bloco tem terceirizado para outros países danos ambientais e emissões associados à produção, alertou artigo publicado na revista Nature.
Anunciado em dezembro de 2019, o Acordo Verde – Green Deal, em inglês – europeu prevê um conjunto de políticas para os setores florestal, agrícola, de energia, de transportes, entre outros. O objetivo é reduzir significativamente as emissões, de forma a tornar o continente neutro até 2050.
Apesar do discurso de sustentabilidade, a União Européia deixou de fora do acordo um aspecto fundamental. A vida cotidiana do bloco se sustenta em parte sobre importações. Parcelas relevantes de produtos agrícolas consumidos na Europa são provenientes de outros países.
As importações agrícolas europeias representam uma transferência de problemas ambientais para outros lugares do mundo. Segundo o artigo, as importações permitem que o setor agrícola do continente opere com menor intensidade, provocando menos impactos e facilitando a implantação de políticas de sustentabilidade.
As florestas constituem um bom exemplo. Entre 1990 e 2014, verificou-se um crescimento de 9% na área florestal da União Européia, equivalente ao tamanho da Grécia – 13 milhões de hectares. No entanto, em países produtores de produtos agrícolas consumidos na Europa, em especial o Brasil e a Indonésia, o desmatamento correspondeu a 11 milhões de hectares no mesmo período.
Varrendo a poeira para debaixo do tapete
O Acordo Verde europeu tem falhas que fazem com que a poeira seja varrida para debaixo do tapete. Ele pode promover uma profunda modificação no setor agrícola do bloco, mas que seria minimizada pelos impactos em outros países associados às importações europeias.
Até 2030, a meta do acordo é reduzir em 20% o uso de fertilizantes e em 50% o uso de pesticidas na Europa. Espera-se que o cultivo orgânico alcance um quarto de toda a terra cultivada. Ao mesmo tempo, serão promovidas medidas de recuperação ambiental, como o plantio de 3 bilhões de árvores ou a restauração de milhares de quilômetros de rios.
Quanto ao comércio exterior, o acordo não inclui qualquer medida efetiva. Ele continuará regido por um marco legal genérico e irregularmente aplicado. Um marco legal que autoriza, para as importações agrícolas, práticas que são proibidas na Europa. Além disso, o sistema alfandegário europeu não dispõe de recursos para verificar os critérios de sustentabilidade de produtos importados.
Nesse sentido, mesmo sob o Acordo Verde, as importações agrícolas da União Européia continuariam a reproduzir a situação atual. Elas estiveram ligadas a mais de um terço de todo o desmatamento relacionado ao comércio mundial de cultivos desde 1990.
As importações europeias também incluíram produtos com uso de herbicidas e pesticidas proibidos na Europa ou em quantidades muito superiores aos padrões europeus. Elas também englobam produtos geneticamente modificados, proibidos na Europa, ou com uso excessivo de fertilizantes.
Exemplo brasileiro
O Brasil fornece um bom exemplo dos problemas ambientais de importações agrícolas da União Européia. O país consiste em dos principais parceiros comerciais do bloco.
O artigo relata que, com um apetite crescente por oleaginosas, as importações de soja brasileira da Europa entre 1990 e 2008 estiveram associadas ao desmatamento de 9 milhões de hectares na Amazônio e Cerrado.
O país também cultiva soja geneticamente modificada e resistente ao glisofato, ambos proibidos na Europa. O uso de fertilizantes no cultivo brasileiro dobrou desde 1990, alcançando 60 kg por tonelada em 2014 – um volume quase quatro vezes maior do que a média europeia.
Finalmente, o Brasil vem se destacando na aplicação de pesticidas. Desde 2016, o país aprovou a aplicação de 193 pesticidas, muitos deles proibidos na União Européia.
Um Acordo Verde sem furos
Para se tornar efetivamente verde, o acordo firmado pela União Européia, que mal saiu do forno, precisa de revisão. Imprescindível incorporar as importações no corpo das metas e ações do acordo.
Entre as medidas, o artigo recomenda o estabelecimento de padrões ambientais para as importações e o fortalecimento do sistema alfandegário europeu. Pode-se incluir, por exemplo, metas para o usos de fertilizantes e pesticidas, desmatamento e emissões de gases de efeito estufa.
Outras ações importantes abrangem a revisão do programa de bioenergia europeu, um dos motores por trás da importação de oleaginosas como a soja. O acordo também deveria incluir a análise e gestão da pegada de carbono da União Européia globalmente.
O sucesso do acordo dependeria também de intervenções no consumo e na produção. Do lado do consumo, políticas poderiam incentivar a redução da carne e dos laticínios, diminuindo, com isso, as importações.
Do lado da produção, a União Européia poderia reduzir a dependência das importações agrícolas. Implicaria no aumento da produção doméstica – por exemplo, de grãos de soja. Isso exigiria a expansão da fronteira agrícola europeia, a intensificação dos sistemas produtivos e o desenvolvimento de novas tecnologias, como o cultivo vertical.
O Acordo Verde da União Européia sinaliza que o meio ambiente e as mudanças climáticas ocupam cada vez maior centralidade na política do continente. As consequências ecoarão para além de suas fronteiras. Resta saber se ela será efetivamente implementada.
Fonte: Ciência e Clima
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