Entenda como a atividade humana está exacerbando eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul, segundo relatório do IPCC, e conheça as medidas urgentes propostas por especialistas para enfrentar essa crescente ameaça ambiental.
Um relatório de 2023, elaborado pelos especialistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), estabeleceu pela primeira vez uma conexão entre as intensas precipitações na área do Rio Grande do Sul, registradas desde a década de 1950, e as mudanças climáticas causadas pela ação humana.
Thelma Krug, que foi vice-presidente do IPCC até julho de 2023, reforçou essa descoberta ao comentar sobre as recentes chuvas intensas e a tragédia subsequente que atingiu o estado na última semana.
De acordo com a matemática, que agora preside o Comitê de Direção do Sistema Global de Observação do Clima, os eventos recentes “de certa forma confirmam algo que estamos dizendo há tempos: que, para além das variabilidades naturais que levam aos eventos extremos, existe uma contribuição ou influência humana”, conforme declarou à BBC News Brasil.
A ciência da atribuição climática
Krug também menciona que, embora a ciência da atribuição climática, que analisa o impacto das atividades humanas na probabilidade de ocorrência de fenômenos específicos, seja um campo de estudo recente, as evidências apresentadas pelo IPCC sugerem que precipitações intensas como as atuais podem se tornar mais frequentes. “Infelizmente, acredito que há uma probabilidade muito grande de que esses eventos voltem a ocorrer de uma forma mais frequente e intensa”, afirma ela.
O IPCC, um grupo de cientistas designado pelas Nações Unidas para monitorar e avaliar a ciência relativa às mudanças climáticas, em seu relatório, reconhece a contribuição humana no aumento das chuvas na região conhecida como Sudeste da América do Sul (SES), abrangendo não somente o Rio Grande do Sul, mas também outros estados do sul do Brasil, além de partes da Argentina e Uruguai.
Evidências e impactos regionais
A SES é a única região no Brasil onde o IPCC encontrou evidências claras de precipitações intensas ligadas à ação humana, classificando essa conclusão como de “baixa confiança”, que, segundo Krug, é o maior nível de evidência atualmente disponível para essa área, dadas as complexidades dos cálculos envolvidos.
Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e colaboradora em alguns relatórios do IPCC, também observa fortes sinais da influência das mudanças climáticas antropogênicas nas chuvas que resultaram em 83 mortes e afetaram 345 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul. Conforme a ecologista e membra da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o estado é tradicionalmente um ponto de encontro entre sistemas tropicais e polares, gerando um padrão climático que alterna entre períodos de chuvas intensas e secas, com uma tendência de aumento na intensidade desses extremos. “Essa é uma região onde vamos viver muito mais extremos, segundo os modelos climáticos”, conclui a especialista.
Dinâmica climática e riscos combinados
As intensas chuvas que afetam o Rio Grande do Sul são resultado de uma combinação de fatores de risco, incluindo uma massa de ar quente estacionada sobre a parte central do Brasil. Esta massa de ar bloqueia a frente fria na região Sul, mantendo a instabilidade e provocando chuvas contínuas e fortes sobre o estado.
Adicionalmente, o fenômeno El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico, também exerce influência neste período entre o final de abril e início de maio de 2024, contribuindo para a permanência das áreas de instabilidade sobre o estado.
Esta conjunção simultânea de fatores é considerada rara, mas, conforme Mercedes Bustamante aponta, a ocorrência de “riscos compostos” tem se tornado mais frequente, conforme os dados do IPCC sobre mudanças climáticas.
“Há uma convergência de variáveis diferentes que atuam em sinergia e ampliam esse fator de risco”, explica Bustamante. “Anteriormente, muitas das preparações para riscos consideravam-nos de forma isolada, mas agora precisamos avaliar os efeitos em cascata e os riscos de forma integrada.”
Impacto do desmatamento e mudanças nos biomas
Bustamante também destaca que o desmatamento extensivo do Cerrado nas últimas décadas elevou a temperatura superficial e reduziu a evapotranspiração na região central do Brasil. Com menos umidade sendo devolvida à atmosfera, essa área tornou-se mais quente e seca, intensificando a estabilidade da massa de ar quente que bloqueia as frentes frias e perpetua a instabilidade sobre o Rio Grande do Sul.
“Há um fenômeno regional, que é o El Niño, mas também uma questão associada à transformação dos nossos biomas”, afirma ela.
Além disso, a massa de ar quente também bloqueia os chamados ‘rios voadores’ da Amazônia, correntes de umidade atmosférica originadas pela evaporação da floresta Amazônica, que normalmente circulam pelo continente sul-americano. Se essa umidade encontrasse uma região central menos seca, precipitaria ali. No entanto, devido às atuais condições atmosféricas, a umidade é desviada, encontrando os Andes e sendo redirecionada para o sul do país.
“Tivemos frentes frias que não conseguem ‘subir’ e massas de ar úmido que não conseguem se distribuir para o Brasil central e ‘vazam’ pelos lados”, resume Bustamante.
Este contexto resultou em chuvas mais extremas e disseminadas do que as observadas em setembro de 2023 no Rio Grande do Sul, segundo a pesquisadora.
Atividade humana
Thelma Krug destaca que há um crescente corpo de evidências científicas que associa mudanças climáticas a períodos mais longos e intensos de El Niño. “Já vimos o El Niño se estendendo por um período mais longo de tempo no ano passado”, observa ela. “E agora temos uma composição de dias muito quentes que influenciam a temperatura superficial do oceano, cenário que afeta diretamente as modificações nas chuvas.”
Ela explica que, embora seja complexo associar diretamente ações humanas a episódios específicos de fortes chuvas — ao contrário das ondas de calor, mais facilmente ligadas às atividades antrópicas —, é indiscutível que a influência humana aqueceu o sistema climático por completo. “Aqueceu o oceano, a atmosfera, a criosfera. Todos os elementos da biosfera terrestre foram afetados”, afirma. “E é impossível não imaginar que esse aquecimento generalizado não terá consequências em diversas áreas.”
Adaptação e planejamento
Krug e Bustamante enfatizam a importância de implementar ações de adaptação adequadas aos novos modelos climáticos para prevenir futuras tragédias em casos de eventos extremos.
“A ampliação da rede de monitoramento de dados ambientais é uma necessidade urgente para o Brasil”, aponta Bustamante, professora da Universidade de Brasília. Ela menciona que o mapeamento de risco elaborado pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) precisa ser atualizado. Este centro foi criado após a tragédia climática que resultou em mais de 900 mortos na Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011.
Para Thelma Krug, o planejamento para enfrentar esses desafios deve ocorrer nos níveis federal, estadual e municipal, com suporte de parcerias público-privadas. “A periodicidade e intensidade dos eventos climáticos no Rio Grande do Sul, particularmente os atuais, que podem ser alguns dos maiores já registrados no país, são preocupantes e exigem que tomemos medidas não apenas para recuperar a vida como era, mas para adaptarmos nosso modo de viver”, conclui.
Com informações da BBC
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