Em um cenário crítico, o Porto de Manaus reportou que o Rio Negro alcançou um nível histórico mínimo. Segundo registros, a última vez que a cota esteve abaixo de 13 metros foi em 1902. O que antes estava coberto pelas águas agora é paisagem de bancos de areia.
A severa estiagem afetando o Amazonas tem levado muitas comunidades à vulnerabilidade. Um recente relatório governamental revelou que, dos 62 municípios no Amazonas, 59 declararam situação de emergência, impactando diretamente mais de 158 mil famílias.
Flutuante’ e barco encalhados em área da Zona Sul da capital na tarde desta quarta (14); colunas da ponte têm marcas do nível do Rio Negro durante a cheia (Foto: Leandro Tapajós/G1 AM)
A crise hidrológica coincide com o fortalecimento do fenômeno El Niño, fenômeno associado a mudanças nos padrões de vento e aquecimento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico. Essas alterações afetam os padrões climáticos em várias partes do mundo, influenciando a distribuição e intensidade das chuvas.
No entanto, para Marcos Freitas, pesquisador da UFRJ e especialista em recursos hídricos, o El Niño não é o único responsável pela situação crítica do Rio Negro. Ele sugere que o aquecimento global possa estar desempenhando um papel crucial na estiagem no Amazonas.
Freitas enfatiza que as chuvas que alimentam o Rio Negro são influenciadas principalmente por massas de ar que se originam no Oceano Atlântico, e não no Pacífico.
O géografo Marcos Freitas, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Foto Coppe/UFRJ
Freitas, que também é coordenador executivo do Ivig e membro do IPCC desde 2008, relembra a seca de 2010, quando o Rio Negro atingiu o nível de 13,36 metros. A situação atual, segundo ele, é mais crítica. Em uma entrevista exclusiva à Agência Brasil, ele compartilha insights valiosos sobre as semelhanças e diferenças entre as secas de 2010 e 2021, buscando um entendimento mais profundo sobre a crise hídrica atual.
O desafio agora é compreender a totalidade dos fatores que contribuem para estiagens como a atual e buscar soluções sustentáveis para proteger as comunidades vulneráveis e os ecossistemas vitais da região.
Confira a entrevista feita pela Agência Brasil
Agência Brasil – O avanço do El Niño pode explicar a seca do Rio Negro ou é possível associá-la também ao aquecimento global?
Marcos Freitas – Quando estudei a seca de 2010, mapeei o aquecimento do Oceano Atlântico, do Oceano Pacífico e também me debrucei sobre as mudanças no uso do solo com o desmatamento. Naquele ano, as águas do Atlântico tiveram aumento médio de temperatura mais acentuado. Mas o máximo que havia de desvio de temperatura era de 1 a 1,5 grau. Talvez com algum repique a 2 graus.
Nesse ano, temos um repique no Oceano Atlântico de 4 graus, no hemisfério norte. Já o El Niño tem provocado um repique de 2 graus no Oceano Pacífico, e ainda não é o auge, que será mais próximo de dezembro. O que a gente observa é que o clima, na região do Rio Negro, sofre forte influência das massas de ar que vêm do Oceano Atlântico. Então, é possível correlacionar sim essa seca com as mudanças climáticas. Estamos notando um repique muito forte no Oceano Atlântico.
Agência Brasil – Sem chuvas, os incêndios florestais podem aumentar?
Marcos Freitas – O período de queimadas tende a se alongar, com bolhas de calor tanto no Pacífico quanto no Atlântico impedindo a entrada de umidade. Essas bolhas de calor geram evaporação forte e fazem com que as chuvas caiam mais para dentro dos oceanos e menos dentro do continente. Alimenta, por exemplo, uma temporada de furacão que atinge a costa dos Estados Unidos. Há alguma compensação com chuvas a montante no Peru, provocadas pelo El Niño, que podem repercutir na bacia do Rio Madeira. Mas boa parte da chuva que cai na Amazônia vem do Atlântico.
As massas de ar que vem do Atlântico são barradas pela Cordilheira dos Andes, fazendo chover sobre a Amazônia. Sem essas chuvas, há um efeito muito nefasto na Amazônia, principalmente na porção mais próxima ao Rio Negro. Os efeitos do El Niño são sentidos mais no Peru, na Bolívia e nas fronteiras desses países com o Brasil.
Agência Brasil – Podemos afirmar que os incêndios florestais também influenciam no clima?
Marcos Freitas – Sim. É uma via de mão dupla. O clima mais seco favorece o desmatamento. E o desmatamento também estimula esse clima mais seco. Quando vai se aproximando o verão amazônico, as chuvas vão diminuindo. Isso acontece a partir de maio. E o pico é agosto, setembro. São os meses mais secos. E é nessa época que aumenta o desmatamento. Se o período seco se alonga, a Amazônia fica mais vulnerável às queimadas. Com a falta de chuva, a madeira das árvores vai perdendo umidade. Além disso, as chuvas na Amazônia também são resultado da evapotranspiração das plantas que estão ali. Árvores, principalmente. Com a remoção dessas plantas pelas queimadas, há um efeito de redução de chuvas.
Agência Brasil – Já existem estudos e modelos climáticos que simulam os impactos que o aquecimento global pode provocar especificamente na Amazônia?
Marcos Freitas – Vários dos modelos consideram a célula amazônica já há algum tempo. No início, havia muita incerteza e agora há maior precisão. Se a gente conseguir reduzir bruscamente a nossa taxa de desmatamento e estimular o retorno de vegetação na área que foi desmatada, podemos ter um efeito positivo de adaptação, recuperando alguma umidade. Se continuar a aumentar a taxa, teremos uma ação contínua de redução de umidade. Então, do ponto de vista das populações, você tem que separar aquelas que estão nas grandes cidades daquelas que estão nas áreas isoladas. Muitas comunidades ribeirinhas, por exemplo, não têm energia elétrica por fio.
Há geradores que precisam de combustível. Com os rios secos e o transporte por embarcação inoperante, pode ter desabastecimento de combustível. E sem energia elétrica, a preservação de alimentos é afetada, bem como a qualidade de vida das comunidades. Então, seria preciso se precaver para maior aumento do isolamento: apoiar o uso de energia renovável no interior, estimular a conservação de alimentos e outras medidas que permitam às populações atravessar esses períodos mais difíceis.
*Com informações Agência Brasil
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