Criar empregos dignos é essencial. Porém, mais imperativo é garantir o bem-estar das maiorias. Novo governo precisa expandir a proteção social, reconstruir o Ministério do Trabalho, valorizar salários e reverter contrarreforma trabalhista
Por Guilherme Zocchio, na Repórter Brasil
Não basta gerar empregos, é necessário combater a informalidade e garantir condições dignas de trabalho. Para isso, é fundamental que haja uma revisão da reforma trabalhista, além do fortalecimento do Ministério do Trabalho e do aumento do salário mínimo. Essas devem ser as prioridades do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no que diz respeito à proteção dos trabalhadores, de acordo com especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.
“Evidentemente, você precisa criar empregos, mas empregos capazes de gerar uma vida digna. Isso não depende apenas do funcionamento da economia. Depende das políticas públicas de emprego, dos órgãos de fiscalização e dos meios de proteção”, afirma Laís Abramo, ex-diretora do escritório da OIT (Organização Internacional do Trabalho) no Brasil e uma das coordenadoras da área que discute o assunto no governo de transição.
Os técnicos ouvidos pela reportagem concordam que a implementação das medidas ocorre em um cenário com relações laborais precárias. Apesar de o desemprego estar caindo – de 14,9% no primeiro trimestre de 2021 para 8,3% no final de outubro de 2022, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, essa tendência não reflete a qualidade dos postos que estão sendo criados. A mesma pesquisa mostrou que a taxa de informalidade atingiu, no mesmo período, 39,1% dos cerca de 99,7 milhões de brasileiros com trabalho, após atingir no primeiro trimestre de 2022 um recorde percentual de 40,2% de pessoas empregadas nessas condições.
“Na prática, isso significa que 4 em cada 10 trabalhadores estão desprotegidos. Se esse desmonte [dos direitos trabalhistas] é a ‘nova realidade [do mundo do trabalho]’, ela não tem auxiliado a vida do trabalhador, nem contribuído para a melhoria da economia, que se beneficia da geração de emprego”, afirma Ivone Silva, presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região. O IBGE considera informais quem não possui registro em carteira, autônomos sem CNPJ, entregadores e motoristas de aplicativo, empregados domésticos sem registro ou pessoas que realizam outras atividades sem observar direitos ou contribuir para a Previdência.
O crescimento da informalidade – uma tendência mundial, segundo dados da OIT – se intensificou ainda mais com a pandemia de Covid-19 e é responsável por agravar desigualdades, como as diferenças salariais entre homens e mulheres ou brancos e negros, de acordo com um relatório produzido em conjunto pela OIT e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
Para reverter esse cenário, os especialistas ouvidos pela reportagem elencaram as seguintes prioridades:
1. Aumento do salário mínimo
Retomar uma política de valorização do salário mínimo foi uma das principais promessas de campanha do presidente eleito. E deve ser a prioridade número um, na avaliação dos especialistas ouvidos. A política, segundo eles, é importante não só para redução da pobreza, mas para tornar o mercado de trabalho formal atrativo. Também serve para corrigir os efeitos do aumento da desigualdade social que são provocados pela inflação.
Atualmente fixada em R$1.212, a remuneração mínima é reajustada anualmente considerando o valor da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor(INPC) mais um acréscimo que faça com que os ganhos do trabalhador aumentem além do encarecimento do custo de vida. No entanto, no início de 2022 o salário mínimo foi corrigido apenas de acordo com o INPC, sem aumento dos ganhos reais.
“Essa política foi um aspecto muito importante dos governos Lula e Dilma, negociado com o setor sindical e patronal, e que levou a um reajuste do salário mínimo de mais de 70%, com aumento real [acima da inflação] e, consequentemente, redução da pobreza. O novo governo já está negociando isso”, afirma Abramo.
2. Revisão da reforma trabalhista
Outro ponto considerado fundamental é rever a reforma trabalhista, sobretudo no que tange ao trabalho intermitente e o pagamento desigual de indenizações por danos morais.
Entidades sindicais e autoridades em direitos trabalhistas avaliam que a reforma executada em 2017 pelo governo de Michel Temer (2016-2018) na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) trouxe para a classe trabalhadora mais prejuízos do que os ganhos que foram prometidos à época de sua aprovação.
“A reforma foi muito drástica e desigual para o mundo do trabalho, se comparada com os outros segmentos. Algumas questões já foram corrigidas pelo STF, como o acesso à Justiça e o trabalho das gestantes. Mas a revisão é um anseio da sociedade”, observa o juiz do Trabalho Luiz Colussi, que é presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
Entre os principais pontos que o próximo governo deveria rever, segundo Colussi, estão amudança nos regimes de trabalho intermitentes, os meios de cálculo para indenização por danos morais.
Outra questão importante, na avaliação dos especialistas, seria a de fortalecimento dos sindicatos de trabalhadores. “A expectativa é a de que no novo governo Lula a CUT e demais centrais sindicais tenham assegurado espaço para participar de debates sobre todos os temas relacionados ao mundo do trabalho. Também é preciso construir uma proposta de financiamentos das entidades sindicais que substitua o chamado imposto sindical. Porém, é importante frisar que defendemos que qualquer desconto [na folha de pagamento dos empregados] seja feito somente após discutido e aprovado em assembleia pelos trabalhadores”, diz Douglas Izzo, presidente da CUT-SP”.
“Soma-se [à reforma trabalhista] a Lei de Terceirização irrestrita, também promulgada durante o governo Temer, que possibilita a terceirização na atividade fim dos bancos. Todas essas ações tendem a aprofundar a desestruturação de um mercado de trabalho já fragilizado. Essa tendência intensifica a fragmentação das bases sindicais e, assim, a organização dos trabalhadores”, complementa Silva, do Sindicato dos Bancários.
A Anamatra publicou um documento com pontos que precisam ser aprimorados na legislação, como a subordinação de trabalhadores aos algoritmos de aplicativos.
3. Proteger os trabalhadores de aplicativos
Há anos a natureza da relação entre motoristas e entregadores de aplicativos é objeto de polêmicas e decisões conflitantes na Justiça. A princípio, as plataformas diziam apenas conectar clientes e prestadores de serviço autônomo. Hoje, no entanto, algumas já admitem a possibilidade de estender direitos aos trabalhadores – desde que não seja reconhecido o vínculo empregatício nos moldes da CLT.
Na opinião do presidente da seção de São Paulo da Associação de motofretistas de aplicativos e autônomos do Brasil (AMABR), Edgar da Silva, é preciso fazer uma ressalva. Quando aplicativos “tratam o entregador com características de vínculo empregatício”, determinando unilateralmente o pagamento e exigindo o cumprimento de jornadas mínimas, deveriam valer as regras da CLT, disse ele em entrevista à Repórter Brasil em agosto.
Já o representante da associação de motoristas do Rio de Janeiro (AMA-RJ), Marcelo Adifa afirmou à época ser contra o reconhecimento do vínculo empregatício. Declarou que “uma nova legislação não deve burocratizar as relações entre aplicativos e motoristas, mas garantir aos condutores direitos que eles hoje não possuem”.
4. Reforço de equipes e meios de fiscalização
Não só o número de trabalhadores informais cresceu no Brasil, mas a quantidade da força de trabalho como um todo também aumentou. O IBGE estima que 99,7 milhões de brasileiros tinham alguma forma de ocupação empregatícia no final de outubro de 2022. No entanto, o crescimento nesse contingente não acompanhou o número de auditores fiscais trabalhistas em serviço para o governo federal.
O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) calcula que 40% dos cargos deste setor estejam desocupados, já que não são abertos concursos públicos o suficiente. Atualmente, de acordo com o Sinait, há pouco mais de 2 mil servidores exercendo a função para inspecionar todo o mercado de trabalho brasileiro.
Outro aspecto importante para fortalecer a fiscalização é a revisão das portarias publicadas pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) que enfraqueceram regras, como normas regulamentadoras (NRs) que balizam a gravidade e o valor de multas trabalhistas. Um exemplo foi uma tentativa de alterar as NRs incidentes sobre frigoríficos, em abril de 2021, fragilizando a proteção dos empregados deste setor.
“Tivemos normas enfraquecendo a própria fiscalização, tirando poderes do auditor fiscal, que é quem vai na ponta, que vai na fábrica, na propriedade rural. E ele que está na linha de frente para verificar as condições de trabalho”, afirma Colussi, da Anamatra.
5. Fortalecimento do Ministério do Trabalho
Quando os especialistas falam em retomar a importância do Ministério do Trabalho referem-se a sua função de ser o ponto de encontro central para a discussão dos principais problemas de direitos trabalhistas no país. Antes do governo Bolsonaro, o ministério abrigava, por exemplo, comissões de diálogo tripartite, entre trabalhadores, empregadores e governo, para alinhar ações governamentais sobre o mundo do trabalho.
Segundo Abramo, do Grupo de Trabalho de transição, é importante que o futuro ministério recrie tais espaços de participação. “Foram destruídos ou muito debilitados diversos espaços colegiados que compunham a estrutura do Ministério do Trabalho. Em toda a questão do diálogo social tripartite havia instâncias de prevenção e erradição do trabalho escravo e do trabalho infantil, que eram inclusive referências internacionais, mas foram extintas ou precarizadas.”
Além disso, recursos financeiros adequados para a pasta continuam a ser fundamentais. A Repórter Brasil mostrou que no final deste ano, após os sucessivos cortes no orçamento trabalhista, as equipes que investigam denúncias de violações em Minas Gerais ficaram sem recursos para realizar operações. A falta de dinheiro prejudicou não só a inspeção de casos de trabalho escravo ou infantil, mas todas as ações de combate à informalidade, prevenção de acidentes e doenças ocupacionais do ministério no Estado.
“A gente sabe que uma das decisões dos primeiros anos de Bolsonaro — e que há unanimidade que teve repercussão negativa — foi extinguir o Ministério do Trabalho e torná-lo uma secretaria do Ministério da Economia. Não significa apenas perda de pessoal e orçamento, mas reflete que o trabalho está subordinado a uma visão muito financeira”, observa Abramo.
Originalmente publicado em : OUTRAS PALAVRAS
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