Como diziam os antigos: primeiro as coisas primeiras, ou seja, o nível estrutural de que precisamos para assegurar as múltiplas demandas das quais estamos rodeados. E o cuidado estrutural começa pela re-união de forças, cumplicidade de propósitos e reforço munições de luta. Em todo e qualquer momento, porém, precisamos de novas doações – insistimos – para não interromper a distribuição de alimentos.
Por Régia Moreira Leite
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Os estoques de alimentos em nossos depósitos estão vazios. Por que as doações cessarem se a fome não pára de crescer? É como se a retirada das máscaras também significasse a boa notícia que a fome acabou e a pandemia está chegando ao fim. Ainda não chegamos lá, lamentavelmente. As demandas constantes e crescentes das entidades filantrópicas que atendemos – incluindo agora os órfãos da COVID-19 – nos últimos dois anos, soam aos nossos ouvidos como a confirmação derradeira de que o pesadelo não chegou ao fim. Muito menos nossa batalha!
É inquietante, a propósito, o noticiário do aumento na média de mortes e de contaminados pelo país afora. A isso se somam as vítimas do mosquito e a insustentabilidade de nosso Sistema de Saúde. As pessoas pedem ajuda e o orçamento doméstico/empresarial nos diz que o drama é muito mais complicado do que poderíamos imaginar ou como desejaríamos socorrer. Sem tirar nem pôr, este é o retrato preocupante de um Brasil secularmente desigual, difícil de gerenciar e carente de governança participativa . Onde estão os estadistas?
De quebra, em lugar de continuar trabalhando para a retomada de investimentos e empregos, somos assaltados por mais um ataque da habitual insegurança jurídica de quem empreende e gera empregos na Zona Franca de Manaus. São as surpresas da política pequena, eleitoreira e tão em voga em tempos de temporada de caça ao voto do cidadão. Diante, porém, desse modelo do franciscanismo rasteiro do toma lá dá cá, é proibido capitular. Muito menos devemos adotar essa metodologia do divisionismo fabricado. Isso esfacela nossas forças e enfraquece nossos propósitos, criando ressentimentos e comprometendo a percepção das necessidades emergenciais da cidadania. Irmãos que abandonam o diálogo e rompem com irmãos, numa confirmação da efetividade e da perversidade dessa fórmula tacanha e falaciosa.
Por isso não podemos nos dispersar nem perder o foco de prioridades dos problemas reais, tanto institucionais como a explosão dos dramas sociais. Os níveis de violência não param de crescer, assim como o desemprego e a epidemia dos distúrbios emocionais. Haja depressão e suas sequelas psicossomáticas. Não é pra menos. São problemas agravados com a pandemia, mas anterior e posterior a ela em frequência e gravidade. Seja amaldiçoado esse conflito político que transformou pessoas e grupos em inimigos entre si, marcados pela total indiferença com o sentido da brasilidade e da unidade em favor do bem comum.
E a cultura das desigualdades crônicas do país se associa naturalmente ao paradoxo da fartura de uns poucos com a penúria da maioria, que vemos crescer nos estudos acadêmicos sobre o descarte de alimentos, a cultura do desperdício que opta por jogar no lixo as sobras da fartura revestida de indiferença social e da exclusão da maioria. Eram 19 milhões de brasileiros que estavam passando fome antes da pandemia. Com a COVID-19 o desperdício de alimentos – que joga fora uma quantidade de comida que poderia alimentar 12 milhões de pessoas por ano – só aumentou. Um autêntico apartheid alimentar, constrangimento difícil de aceitar, urgente de resolver.
Estes dados são de dois estudos publicados em 2021 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Eles mostram que o desperdício de alimentos é um grave problema ambiental e social que precisamos combater com urgência. Entramos do quinto mês do ano com a inflação nas alturas dos dois dígitos. Custo de vida elevadíssimo e o desemprego estrutural se ampliando na busca dos sufrágios a qualquer custo.
“As pessoas não têm consciência do quanto desperdiçam e do quanto poderiam não desperdiçar. Com isso, nossos recursos naturais vão se esvaindo e, por outro lado, muita gente segue passando fome”, lamenta a nutricionista Renata Valentini, embaixadora do movimento Stop Food Waste Day, contra o desperdício, em sua quarta edição pelo país afora. O que está acontecendo com a espécie humana, por onde começar para mudar a feiúra dessa paisagem irracional?
Estamos trabalhando, como entidades representativas do Polo Industrial de Manaus, no âmbito de nossa Ação Social Integrada, para avaliar o papel de nossa responsabilidade social no contexto de nossas múltiplas trincheiras. Impõem-se algumas mudanças na gestão solidária do movimento e na profissionalização de seus passos, tendo em conta o caráter estrutural de nosso desafio. Como diziam os antigos: primeiro as coisas primeiras, ou seja, o nível estrutural de que precisamos para assegurar as múltiplas demandas das quais estamos rodeados. E o cuidado estrutural começa pela re-união de forças, cumplicidade de propósitos e reforço munições de luta. Em todo e qualquer momento, porém, precisamos de novas doações – insistimos – para não interromper a distribuição de alimentos.
Nossas crenças na dignidade das pessoas se tornam, assim, fontes das boas energias, a chamada sabedoria fraterna. Foi assim que fizemos quando estávamos aturdidos no início do enfrentamento da pandemia. Portanto, nós já sabemos que podemos e as providências que devemos tomar e avançar. Sempre com as mãos dadas, as mangas arregaçadas e o coração tranquilo. O título desta reflexão homenageia Tancredo Neves, nosso herói da mobilização e da unidade nacional. “Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão”.
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