Em entrevista, Olival Freire Júnior fala sobre o impacto do não investimento em ciência no Brasil
A produção científica no Brasil tem sofrido duros ataques nos últimos anos, e isso tem impacto na vida diária de todo o país. Para entender melhor o problema enfrentando pelas universidades públicas, o Brasil de Fato Bahia conversou com Olival Freire Júnior.
Cientista e pesquisador vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA), ele foi pró-reitor de Pesquisa, Criação e Inovação da UFBA e coordenador do programa de internacionalização da Capes da mesma universidade. Freire Júnior é doutor em História da Ciência e realizou estágios de pesquisa pós-doutoral nas universidades Paris 7, Harvard, MIT e American Institute of Physics.
Brasil de Fato Bahia: Professor, primeiramente, muito obrigada por ter aceitado nosso convite. Poderia nos explicar como é feita a ciência no Brasil atualmente?
Olival Freire Júnior: O modo como se produz ciência no Brasil, mas também no mundo inteiro, depende fortemente de estímulos, via de regra, públicos. No caso do Brasil, especialmente estímulos públicos, investimentos públicos na forma da compra de equipamentos, insumos para pesquisa e na forma de bolsas. Eu vou me concentrar nesse momento, na forma de bolsas. Pra você produzir ciência – e no Brasil, o grosso da ciência, do novo que é produzido, é feito nas universidades e nas instituições de pesquisa, sobretudo universidades e institutos de pesquisa públicos.
Essas instituições dependem de bolsas para treinar novos pesquisadores e, ao mesmo tempo, é nesse processo de treinamento de pesquisadores que o novo conhecimento vai sendo produzido, é preciso investimento nas bolsas, que variam desde uma bolsa de Iniciação Científica para o aluno que ainda está na graduação; nós até temos a chamada Iniciação Científica Júnior, para talentos que aparecem já na escola média. Depois da graduação, nós temos bolsa para mestrado e para doutorado – a formação típica de um pesquisador envolve, além da graduação, dois anos de mestrado e quatro anos de doutorado. E bolsas de pós-doutorado e de pesquisa.
Debaixo do rótulo de bolsas de pós-doutorado, na verdade, temos duas realidades diferentes: primeiro, a bolsa de pós-doutorado que é para estabilizar o jovem doutor até que ele encontre uma posição permanente, esse é um conceito, inclusive, que é global. Se você chegar nos Estados Unidos ou em qualquer outro país, uma bolsa de pós-doutorado será exatamente isso: uma bolsa para um período imediatamente após o doutorado. E nesse período o que é que o jovem pesquisador faz? Ele produz mais pesquisa.
Mas a bolsa de pós-doutorado serve também para uma outra finalidade: um pesquisador já mais ou menos experiente, já com uma posição definida em uma instituição, ele faz um estágio de pesquisa, que chamamos estágio de pós-doutoramento, onde ele vai aprender uma nova técnica, se familiarizar com uma nova perspectiva, realizar uma pesquisa que, por alguma razão, ele tem dificuldade de conduzir na sua própria instituição. Então, as bolsas de pós-doutorado são uma espécie de oxigênio para a vida do pesquisador.
Com esse detalhamento que apresentei aqui da pesquisa, pode-se dizer que boa parte da produção da pesquisa, do conhecimento novo no mundo, depende desse sistema de bolsas para atrair os jovens talentos para a produção da ciência. Isso é por uma razão muito simples, porque o cientista não tem, necessariamente, uma inserção imediata no mercado. Como eu falei, você forma um cientista [após] quatro anos de graduação, dois de mestrado, quatro de doutorado. É preciso estabilizar financeiramente essa pessoa, enquanto ela está nesse processo de formação. Ela pode até depois, eventualmente, atuar no mercado.
Se você pega empresas brasileiras, como por exemplo a Petrobras, tem um número muito grande de pessoas com doutorado. Mas não é necessariamente assim no mercado. Em várias outras profissões você põe o pé no mercado qualificado apenas com a graduação ou com uma especialização, muitas vezes chamada de MBA. Então, nosso sistema de bolsas visa exatamente estimular e estabilizar financeiramente a formação desses pesquisadores que, enquanto estão sendo formados, estão produzindo o melhor das nossas pesquisas.
E que ciência é essa que estamos falando? O que está sendo feito nas universidades e como isso está presente no cotidiano das pessoas?
A ciência que é produzida no Brasil é muito diversificada. Você tem desde pesquisas na área de saúde, por exemplo. A gente viu recentemente o quão importante foi para o Brasil ter capacidade desde identificar rapidamente qual era o tipo de vírus circulando no Brasil. A gente teve particularmente uma equipe em São Paulo que imediatamente identificou que se tratava do coronavírus.
Passando pela qualificação técnica de uma agência como a Anvisa. A gente viu que alguns dos julgamentos sobre a liberação ou não de vacinas dependiam de seções da Anvisa. Um técnico da Anvisa, via de regra, é alguém com formação científica. Até o planejamento da saúde pública. O planejamento de uma campanha de vacinação, por exemplo, é um procedimento profundamente inspirado na ciência, numa área específica da ciência que é a epidemiologia.
A capacidade atual que o Brasil tem seja de produzir aviões, seja de produzir soja com elevada produtividade, seja a capacidade de explorar petróleo no pré-sal, todas essas atividades dependem fortemente de gente com formação científica, com formação técnico-científica avançada. Muito dessas pessoas que trabalham nessas áreas têm mestrado e doutorado.
Mas nas áreas das ciências humanas e sociais também temos enormes contribuições para o entendimento da sociedade brasileira. Eu fico aqui em dois exemplos, primeiro Paulo Freire, um educador que desmistificou o que era o processo de alfabetização de um jovem e, particularmente de um jovem adulto. E as ideias de Paulo Freire se tornaram patrimônio universal. É absolutamente comum você hoje numa universidade nos Estados Unidos ou em qualquer país europeu e encontrar centros de estudos dedicados às teorias de Paulo Freire.
Ou, do outro lado, hoje nós compreendemos melhor o que é o fenômeno do racismo e do racismo estrutural na sociedade brasileira, em grande parte, devido aos estudos de sociólogos, historiadores, antropólogos, que, em particular, desmistificaram o chamado período da pós-abolição, mostrando que o problema da escravidão no Brasil não se encerrou com a emancipação dos escravos em 1888, com a Lei Áurea. Efetivamente, nós temos todo um período, que hoje, para os historiadores, se chama de pós-abolição. E é o estudo desse período feito por historiadores, sociólogos e antropólogos, que mostraram que os libertos não tinham acesso à educação, a um conjunto de outras possibilidades de formação técnica, não tinham acesso à terra, não tinham acesso à renda.
Então, tudo isso que hoje nós discutimos no Brasil como política de reparação pode ser entendido como herança de problemas não resolvidos no período do pós-abolição. As décadas que se seguiram à abolição, na qual a mão de obra escrava, particularmente para as lavouras de café em São Paulo e Rio de Janeiro, foi substituída pela migração de mão de obra europeia e também asiática. A compreensão primeira disso veio de historiadores e de antropólogos. Um deles, o Florestan Fernandes, por exemplo. A contribuição, portanto, da ciência para o entendimento do Brasil, para o entendimento da nossa realidade é extremamente diversificada.
Temos falado nos últimos tempos sobre a possibilidade de um apagão nas ciências no Brasil. Explica pra gente o que exatamente é esse apagão.
É que nós temos tido uma sistemática redução do financiamento à ciência desde 2016, ainda no governo Temer, e de maneira absolutamente acentuada desde o início do governo Bolsonaro, portanto, os anos 2019, 2020 e 2021. Essa redução do financiamento tem tido um efeito, tanto na redução do número de bolsas – e eu vou me limitar agora ao aspecto bolsas – quanto no congelamento do valor das bolsas.
O congelamento é importante, porque nós temos bolsas há quase uma década no mesmo valor. Com a inflação, essas bolsas se tornaram hoje tremendamente não competitivas. E como um estudante, quando aceita uma bolsa, ele se obriga a ter exclusivamente aquele vínculo, não pode ter um outro contrato, um contrato trabalhista, por exemplo, o que acontece? Hoje está se tornando difícil atrair bons talentos que troquem a bolsa por uma posição no mercado.
Nós estamos deixando de atrair jovens talentos para alimentar esse processo que eu me referi aqui da formação de cientistas. Isso tem levado muitos cientistas formados aqui no Brasil a se mudar para outros países, não é? Qual o impacto disso a longo prazo para a a ciência e para a vida do país? Esse problema já chamou a atenção de várias lideranças da comunidade científica brasileira, porque nós estamos vendo os primeiros sinais de um fenômeno que se chama evasão de cérebros.
Nós tivemos um fenômeno semelhante no Brasil há cerca de 60 anos, na altura de 1960, devido exatamente a uma combinação de inflação e salários congelados e condições de trabalho precárias para o trabalho científico. Muitos pesquisadores brasileiros buscaram o exterior e ficaram no exterior, alguns voltaram décadas depois. O fenômeno foi extremamente importante. Você vai encontrar um livro, extremamente importante, do antropólogo baiano Tales de Azevedo, “A Evasão de Cérebros”, examinando esse problema.
O congresso nacional fez uma CPI, na altura de 1965-1967, sobre esse problema. À época, o CNPq chegou a organizar um projeto, com resultados limitados, chamado Operação Retorno. Então, nós tivemos essa experiência no passado, e o nosso maior temor é que nós já temos sinais de uma nova onda de evasão de cérebros. Ora, gente, evasão de cérebros é você reduzir, retirar de uma da sociedade, de um dado país, aquela juventude melhor qualificada. Porque, via de regra, quem vai para o exterior é o jovem pesquisador já com doutorado ou que faz o doutorado e não volta para o Brasil.
Portanto, é algo como, se eu puder fazer uma comparação, você querer preparar o Brasil para disputar uma copa do mundo e você pega os melhores talentos na faixa dos 16-20 anos de idade, leva todos para um outro país e nacionaliza eles em um outro país. Acabou o futebol do Brasil no dia que a gente tiver uma coisa como essa no país. Porque os melhores, ainda para ficar no exemplo do futebol, eles serão peneirados – por isso, exatamente o termo que as escolas de futebol usam – para selecionar os melhores talentos. E isso acontece também na ciência.
Então, o nosso receio hoje é de uma nova onde de evasão de cérebros no país. Essa evasão ocorre pelo congelamento no valor das bolsas, pelo número limitado de bolsas, mas também por um outro fator que eu praticamente não comentei aqui, que é a ausência de financiamento para compra de equipamentos, para compra de insumos, tudo isso que configura o que a gente chama de condições de trabalho. Tudo isso leva o que a gente chama de um jovem talento pesquisador a ficar desanimado, desestimulado, com a perspectiva de continuidade do seu trabalho no Brasil e buscar, assim, o exterior.
A Capes anunciou mudanças no sistema de avaliações dos cursos de pós-graduação – uma decisão que, inclusive, foi levada à Justiça, e se encontra num processo de judicialização sobre essa decisão. Que mudanças são essas? Elas também impactam nesse desmonte da educação superior?
Nós vivemos atualmente uma crise profunda em uma das principais agências de fomento à tecnologia no Brasil, que é a Capes, que é uma agência, na verdade, de formação, de apoio, de avaliação da formação de mestres e doutores.
O atual governo trocou o ministro da Educação tantas vezes que a Capes hoje se encontra completamente desorientada e com o processo de avaliação dos cursos, que é uma peça essencial na formação da ciência brasileira, paralisado. Ele foi paralisado por uma ação judicial, mas o modo como a agência, a direção da Capes tem reagido também não tem contribuído.
Então, nós vivemos hoje uma crise de credibilidade. Agências como Capes, CNPq, assim como agências como a Anvisa, agências reguladoras, dependem fortemente de uma coisa chamada credibilidade da agência. E a credibilidade da Capes hoje está em risco.
Fonte: Brasil de Fato
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