Futebol bem-feito demanda mais que boa vontade. Exige saber trabalhar com a paixão enquanto combustível, mas de forma racional enquanto ação
Por Cesar Grafietti – InfoMoney
O futebol vende paixão. Podemos debater uma série de produtos e conceitos por trás do futebol: que ele é entretenimento, que disputa espaço com serviços de streaming, games e falastrões de redes sociais. Mas a verdade é que o futebol vende algo que nenhum desses outros negócios pode vender: paixão.
Alguém pode ser apaixonado por uma série, um filme, um ator, uma banda. Mas nenhum deles se trata de um negócio em que as paixões são confrontadas semanalmente e, muito menos, são únicas. Podemos gostar de várias bandas, atrizes, séries. Podemos gostar mais ou menos de um álbum, um show, uma temporada de série. Podemos também criticar nosso time, reclamar da derrota, questionar a gestão, mas não mudamos de camisa.
Justamente por lidar com paixão é que a gestão no futebol é única.
Costumo dizer, de forma grosseira, que quando pensamos em gestão todas as indústrias são mais ou menos parecidas em 70%. Atenção às pessoas, aos clientes, cuidado com as relações de compra e venda, tecnologia, proteção de mercado, expansão de mercado e por aí vai.
Mas há sempre uns 30% que são específicos, que demandam conhecimentos que se adquirem em anos de estrada e que fazem a diferença entre o bom e o mau gestor, entre o sucesso e o fracasso.
No futebol é igual. E a dificuldade em tratar bem sua gestão é muito mal dimensionada pela maioria das pessoas. Inclusive por muitos que estão dentro de clubes, no Brasil e no exterior. Porque gestões deficientes não são um clássico brasileiro.
Estudando o mercado europeu em diversos projetos nos últimos cinco anos, fica claro que, exceto por uma lista pequena de clubes, a grande maioria é gerida de forma pouco animadora. E falo de 1ª e 2ª divisões de países relevantes no cenário mundial.
Mas antes que nossos dirigentes se animem: isso não é bom e explica alguns movimentos que vemos no esporte.
O primeiro deles é a chegada de investidores americanos aos clubes europeus. Acostumados a uma visão amplamente voltada ao negócio e para a busca de eficiência, americanos tentam impor um ritmo de melhorias que incomoda a velha casta de dirigentes clássicos do futebol, com a aplicação de práticas mais estruturadas de gestão e o uso de tecnologia em diversas áreas, desde o scouting até à relação com os torcedores.
O segundo movimento é a ideia de que é preciso ter escala para rentabilizar o investimento. Não cabe mais ser dono de um clube, porque há inúmeras vantagens competitivas no compartilhamento de estratégias e pessoas. Por isso, vemos o crescimento dos multiclub ownerships (MCOs).
No Brasil, vemos ambos os movimentos em conjunto, com a chegada da Eagle de John Textor, da 777 Partners e seu modelo um tanto particular e, agora, o City Football Group com o Bahia. De certa forma, dá também para incluir Ronaldo e seu Cruzeiro nessa conta, dado o estágio feito no Valladolid.
Bem, chegou a hora do tradicional “Momento Provocação”: como é gerir um negócio movimentado pela paixão? É tão fácil assim?
Não, não é. Diferente do que alguns incautos já disseram por aí, não se trata de gerir “um grande RH”. Definição típica de quem não entendeu onde se meteu e simplificou o tema para parecer inteligente.
Claro que, na simplificação da simplificação, estamos falando de uma atividade humana. Ou seja, gerir pessoas e conflitos é parte do problema, mas jamais é limitado a isso. Trata-se de uma atividade cuja disputa de mercado começa do zero todos os anos, e na qual o sucesso de uma temporada não garante sucesso na seguinte.
O futebol é uma indústria em que cada vez mais as receitas são variadas, baseadas em performance, com fluxos de caixa erráticos e concentrados no final das temporadas e que. por isso mesmo, gera um incentivo perverso ao investimento descontrolado no início do ano, visando reforçar a equipe para vencer e fazer mais receitas que sejam capazes de pagar os investimentos descontrolados do início da temporada.
Ou seja, trabalha-se na irracionalidade buscando uma justificativa racional.
E como lidamos com paixão, uma derrota vira uma catástrofe, que demanda a administração de um grupo pouco amistoso chamado torcida organizada, que basicamente atrapalha ao invés de ajudar, especialmente nos momentos em que a gestão precisa de tranquilidade para reverter cenários desfavoráveis.
Como não lembrar do imponderável, da bola que não entra por acaso e que resulta em milhões de reais escorrendo pelas mãos? Como ignorar que parte da gestão é cuidar e formar jovens que estão longe de casa e vivem no futebol um sonho que será realidade para menos de 5% deles? Ou de possibilitar que meninas tenham estruturas dignas e atenção na formação para, quem sabe um dia, se tornarem profissionais?
Cuidar dessa paixão que vira negócio é complexo. A grande maioria dos gestores não está preparada para isso, pois enxerga o futebol como um hobby, agindo como um torcedor que se preocupa com a quarta-e-domingo, com a contratação que acalma a imprensa e a torcida, com a demissão do treinador, que já havia sido contratado sem critério e junto com tantos atletas que chegaram sabe-se lá por quê.
Muita gente acredita de fato que trabalhar no futebol é tão fácil como discutir a escalação do seu time na mesa do boteco. O pior é que essas pessoas agem assim mesmo. Mas futebol bem-feito demanda mais que boa vontade. Exige saber trabalhar com a paixão enquanto combustível, mas de forma racional enquanto ação.
Cesar Grafietti Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafiettiAqueles que entenderem isso serão os que se destacarão e sustentarão a paixão de muitos. É preciso maturidade e inteligência para renunciar ao poder em troca de eficiência. Um dia, quem sabe, não precisaremos mais discutir isso. Enquanto esse dia não chega, torça para que o acaso proteja sua paixão.
Texto publicado originalmente em InfoMoney
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